Afinal, o que LGBTs têm a ver com o ecossistema de impacto e seus negócios? Spoiler: tudo.
Uma das histórias que ajudam a pensar em como negócios sociais ou de impacto podem somar no tema é a Casa 1. Ela surgiu como ideia no final de 2015, quando o relações públicas e jornalista Iran Giusti recebia em seu apartamento jovens LGBTs expulsos de seus lares. Com a situação, ele fez um post no Facebook, que viralizou e, em dois dias, tinha mais 50 jovens pedindo ajuda. Pensando no que poderia fazer de efetivo para a questão, ele largou o emprego como redator, com a ideia de criar um espaço para ampliar a acolhida e oferecer atividades de cultura e formação.
“A ideia era: trocar meu apartamento por uma casa, ter um cômodo a mais para ter mais duas pessoas. Algo bem pequeno. Eu, porém, acabei me empolgando, fiz um financiamento coletivo e, no final de 2016, alcançamos a meta: conseguimos 112 mil reais para alugar a casa pelo período de um ano e abrigar inicialmente 8 pessoas”, conta o fundador e organizador da Casa 1. “Desde então, o projeto cresceu e passamos a ter uma articulação muito forte no campo da cultura e de impacto social, em especial, na estrutura do bairro, pois o trabalho é focado na comunidade local”, comenta ele.
Todavia, após quase quatro anos de funcionamento, Iran informou pela sua conta no Facebook que a Casa 1 fecharia as portas em dezembro deste ano. Na sua publicação, ele comenta ser a dificuldade de financiamento a principal razão para o fim do projeto. “Semana passada tive que pedir doações de alimentos não perecíveis. Dois anos de trabalho, parcerias com empresas gigantes, apoio de muita gente legal e ainda precisamos pedir arroz e feijão”, escreve Iran.
Ele também comenta como percebe um arrefecimento de políticas públicas voltadas à cultura e à população LGBT. “Diante desse governo pavoroso, do sucateamento dos serviços públicos, da escassez de editais e fontes de financiamento, da negativa das empresas a pagarem por serviços como consultoria ou então patrocínio de um projeto de pessoas LGBTs em vulnerabilidade não vemos saída senão fechar as portas”, afirma Iran.
Por dentro da Casa 1
A Casa 1 atua no bairro do Bixiga e tem estrutura para receber 20 moradores por até quatro meses – afinal é uma casa de passagem. Além disso, em outro prédio próximo ao alojamento, conta com um centro cultural, que funciona das 10h às 22h, de segunda a segunda. “Somos muito reconhecidos pelo trabalho de acolhimento, que obviamente é nosso DNA e tronco, mas vamos muito além disso. Hoje, a acolhida de jovens LGBTs é uma parte do projeto e que demanda maior dedicação dos funcionários contratados, que são voluntários remunerados com um ajuda de custo, pois ainda não temos sustentabilidade para contratação”, conta Iran em entrevista para a Aupa.
A outra parte do projeto é a formação continuada que ocorre dentro da Casa 1 e em empresas parceiras. A Casa realiza ações pontuais de formação, cultura e conscientização, além de consultorias. É durante a Parada Gay que, geralmente, a Casa realiza essas ações. Em 2017, durante a Parada, houve um faturamento de R$ 300 mil. Em 2018, o faturamento alcançou R$ 150 mil, o que demonstra um arrefecimento do mercado de publicidade e marketing das companhias para o tema LGBT de um ano para o outro. A equipe da Casa 1 conta com Iran (que não tem remuneração) e mais sete voluntários.
Duas partes compõem a Casa 1: o alojamento e o centro cultural/galpão. O alojamento tem a residência na parte de cima e três salas comerciais, na parte de baixo, sendo uma para atendimento e distribuição de roupas e produtos de higiene pessoal para população em situação de rua. A outra é uma sala emprestada ao coletivo Trans Sol, formado por costureiras trans. A terceira sala é a Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu.
O galpão Casa 1 é um centro de cultura, onde há três salas de aula, com oferta de 16 turmas de línguas (inglês, espanhol e português para estrangeiros), quatro salas de atendimento individual – em três dessas salas acontecem atendimentos psicoterápicos da Clínica Social (Clínica Social Casa 1); uma das salas está dedicada à pesquisa do PrEP Adolescente, profilaxia pré-exposição sexual para este público, que é uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Há ainda o ateliê de artes plásticas, sala de informática e um salão principal para atividades em geral.
O critério para ser morador da Casa 1 é ter entre 18 e 25 anos, ter sido expulso de casa, não ter questões severas com dependência química e/ou saúde mental e deve ser residente da cidade de São Paulo. A Casa 1 tem, em média, 10 solicitações por semana para o alojamento. A Casa realiza ainda trabalho e atendimento ao público do próprio Bixiga e é bastante comum ver dezenas de crianças no centro cultural, brincando, mexendo nos materiais, papeando e assistindo aos filmes na sala de cinema – quando a apuração ocorreu, as crianças assistiam Mulan e carregavam um balde de pipoca e refrigerantes.
No geral, as crianças atendidas residem nos cortiços do Bixiga ou nas ruas; sobre a participação delas nas atividades culturais, Giusti afirma que houve muita solicitação do próprio bairro para essa acolhida. “As crianças vinham, mexiam, pintavam e foram ótimos agentes disseminadores, que começaram a trazer os pais e vizinhos para cá, começaram a articular”, comenta o fundador. Assim, havia dois públicos para o espaço, que tem por prerrogativa trabalhar o bairro: crianças e idosos, que são as pessoas que vivem efetivamente ali, e os adultos, que usarão o espaço como dormitório. “A gente veio para ficar. Entendemos o papel socioeducativo da Casa, em todos os aspectos, inclusive, na infância. Então, hoje eles são um público muito forte, dominam bastante o rolê”, acentua Giusti.
Vale ressaltar que é preciso uma ordem para garantir impacto social e atendimento. “Nosso atendimento é universalizado, mas temos prioridade nos casos das vagas nos cursos de línguas e o preparatório para o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio): pessoas trans em primeiro lugar, seguido de mulheres negras, depois homens negros e, finalmente, pessoas brancas cis heteros. O processo de seleção considera gênero, raça e classe”, explica Giusti. A Casa 1 oferece também curso profissionalizante de maquiagem exclusivo para mulheres trans. “No custeio do curso, temos que considerar tudo: transporte, alimentação, todo o material, incluindo aquele para a pessoa começar a trabalhar depois. Então, ainda é um curso muito caro e, por isso, restringimos à parcela de maior vulnerabilidade social”, pontua ele.
É um modelo de negócio sustentável?
Giusti explica que cerca de 60% da verba é via financiamento de pessoa física, um crowdfunding que funciona intermediado por benfeitoria recorrente. O financiamento coletivo recorrente deposita mensalmente R$ 20 mil para a Casa. Até novembro do ano passado, outros 30% vinham da iniciativa privada, empresas para quem a Casa 1 faz alguma ação específica. Nesta fatia está, efetivamente, a atividade da Casa 1 que poderia ser pensada enquanto proposta de valor: promover igualdade e inclusão em empresas por meio de consultorias ou outras atividades. Mas, de novembro para cá, Iran fala sobre um “desaparecimento” de propostas e empresas parceiras, e não há perspetivas para isso tão logo. Sem esta receita, a conta não fecha, e a casa começa a entrar em um déficit mensal de R$ 15 mil.
Um dos exemplos de parceria com empresas se deu junto à PepsiCo. Em 2017, a PepsiCo lançou o Doritos Rainbow (ideia que acontece nos Estados Unidos desde 2015), em junho, o mês do Orgulho LGBT. Ao comprar o kit, que custava 20 reais e vinha com o salgadinho e uma bandeira LGBT, a verba arrecadada era doada para a Casa 1. “Trabalhamos com a PepsiCo há três anos. Eles fizeram o programa de formação de unidades de base, conversamos com o marketing sobre a questão trans e também com os trabalhadores das fábricas, foi quando surgiu o problema com ‘piadas’ homofóbicas”, comenta ele. Com as ações e mudanças houve a contratação de uma jovem aprendiz trans, a partir da própria estruturação interna da empresa.
Os outros 10% do dinheiro que banca a operação ainda vêm do bolso do fundador, decorrente de freelas e projetos especiais. E, nesses meses de dificuldade, Iran repete aquilo que é comum entre tantos outros empreendedores sociais: ele tira do bolso a grana que cobre o rombo do caixa. Sendo assim, a Casa 1 ainda não possui um modelo que garanta receita de maneira sustentável, sem contar primariamente com doações.
E por que estamos falando da Casa 1?
A começar, pelo seu importante impacto positivo. Para justifica-lo, Iran ampara-se no relatório, ainda em fase de finalização, feito para o COMAS (Conselho Municipal de Assistência Social), que é uma das principais certificações da assistência social. A estimativa é a de que, até agosto de 2018, cerca de 180 LGBTs tenham residido desde o começo da Casa. O atendimento médio é de 350 pessoas por semana – dentre atendimento de alunos, população de rua, crianças, etc. Isso significa aproximadamente 2.400 atendimentos por mês. “Considerando que algumas pessoas são atendidas mais de uma vez, esses números remetem cerca de 14.500 atendimentos em dois anos”, explica o fundador.
“Podemos ser um processo de empreendedorismo social e falar sobre impacto, mas tais termos e configurações precisarão expandir muito para que nos encaixemos”, comenta Iran GIUSTI.
Apesar de a Casa 1 apresentar uma proposta de transformação social, que atinge a população vulnerável, Iran Giusti também não considera sua atuação como negócio social ou de impacto. “Fazemos tudo certinho: declaramos e pagamos impostos, há a empresa de contabilidade e o escritório de advocacia, mas é muito difícil enquadrar as coisas”, pondera. “Podemos ser um processo de empreendedorismo social e falar sobre impacto, mas tais termos e configurações precisarão expandir muito para que nos encaixemos”, comenta Iran sobre este tipo de negócio que ele define não ter concorrentes. “Eu não estou na rua disputando a tapa a bicha [sic] mais sofrida para a Casa 1. E eu sei que é difícil encontrar nomenclaturas para estes negócios”, avalia.
A Casa 1 opera, portanto, naquela fina linha fronteiriça de atividades filantrópicas que não se adequariam a um modelo de negócios? Ou ferramentas de mercado poderiam auxiliar na manutenção e sustentabilidade da iniciativa? Se sim, como? Algumas perguntas importantes que testam os limites de até onde atuariam negócios sociais ou de impacto no empoderamento de transformadores como Iran.
Nesse momento difícil, a estratégia, por enquanto, é investir tempo e energia para expandir a estratégia de financiamento coletivo. Questionado se ele pretende apresentar a Casa 1 efetivamente como negócio para buscar captação de recursos e investimentos, Iran demonstra certa resistência. “Há tentativas nesse sentido”, afirma. “O grande problema é que o meu lugar de empreendedorismo é um pouco difícil para atrair investimento. Eu trabalho com cultura, formação e Direitos Humanos. E nós ainda vivemos em um país muito preconceituoso”.
O desejo de Giusti não é fechar as portas. A outra esperança, ainda que pequena, seria a de participar de editais de cultura e leis de incentivo. Mas Iran tem receios sobre o futuro dessas políticas nas atuais administrações federal e estadual.
Ele afirma ainda que o espaço, transformado e criado por ele e tantos outros, é onde sua vida é possível. “Eu criei um espaço para viver a minha vida. E estamos num contexto que não gosta do jeito que vivemos. É frustrante perceber que o negócio em que você se dedicou pode acabar assim”, conclui Iran. E a pergunta que fica é: como o setor de impacto pode se aproximar para auxiliar na sustentabilidade de iniciativas como a Casa 1?
ATUALIZADO EM 12/03/2019, por Tiago Mota.