Foi em 1999 que o movimento juvenil, que promovia eventos de hip-hop no Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo, recebia um nome. A Banca. “Naquela época, era uma questão de sobreviver, conquistar território e espaço, fortalecer uma identidade e não tinha pretensão nenhuma de se tornar uma organização ou viver dela”, recorda Marcelo Rocha, o Dj Bola. Bola foi um dos principais nomes no movimento que retirou do Jardim Ângela o triste título de bairro mais violento do mundo, conforme foi considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1996.
Quase 20 anos depois, A Banca se tornou uma produtora cultural-social de impacto que utiliza música, cultura hip-hop, educação e tecnologia para fomentar a realização de sonhos e o empreendedorismo dentro da periferia. Em 2007, a iniciativa participou da Expedição Artemísia, que seleciona projetos de impacto de jovens empreendedores. Naquele ano, A Banca estava entre as finalistas, recebendo apoio técnico e financeiro para a sua implementação. “Foi quando tivemos contato com esse conceito de negócios sociais e rolou uma identificação”, conta DJ Bola. “A gente não queria que o nosso sonho morresse por falta de grana e dificuldade em acessar editais. Precisar de filantropia não é tão simples, é bem concorrido. Por isso, a partir do momento que nós conhecemos esse conceito de negócio com impacto, percebemos que aquilo tinha a ver com o que acreditávamos.” Hoje, A Banca tem CNPJ de associação, com título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip).
Em uma conversa exclusiva para a Aupa, DJ Bola nos contou sobre as transformações d’A Banca, sua parceria com a Artemísia e FGV-cenn, que resultou na Aceleradora NIP, Negócios de Impacto Periférico, e nos deu sua definição para a palavra impacto.
Na realidade, a gente busca ser o protagonista. Fazer a ponte de a cidade ser uma via de mão dupla, um ambiente onde a gente possa trocar, ir e vir, se conectar. Hoje a ponte é um simbolismo da separação entre a cidade desenvolvida e a quebrada.
AUPA A Banca foi criada em 2000 como uma produtora musical, cultural e social. No que ela se transformou, na sua opinião? E como foi essa transformação?
DJ Bola Em 2007, começamos a nos fortalecer como uma organização. Até aquele momento, a gente estava na garagem dos meus pais. Ficamos ali por 12 ou 13 anos, sendo que os primeiros projetos, os primeiros discos e o primeiro plano de negócio foram feitos em uma garagem. Quando passamos na Artemísia, em 2007, começamos a reformar esse espaço. Aqui não tinha água, não tinha luz, não tinha essa lousa, cadeiras ou móveis. Viemos para cá e começamos a reformar esse espaço e agora, aqui, é nossa sede. Sobre fomentar o conceito de negócio de impacto levou dez anos para conseguirmos fazer isso na “quebrada”. Quando conhecemos o conceito, começamos a participar e a buscar lugares que falassem dessa temática. Além disso, quando a gente estava nesses lugares não víamos pessoas que moravam na quebrada como protagonistas do processo de desenvolvimento desse conceito. A gente ainda era visto como beneficiário, usuário ou um cliente para alguma inovação social que era criada do outro lado da ponte, para falar da dor que eu vivo aqui todo o dia.
Essas foram as provocações que a gente foi fazendo nesses lugares. Em paralelo, fazíamos reuniões e encontros mensais aqui na quebrada, trazendo pessoas que já vivessem de algum negócio desse sentido ou tivesse algum negócio com ação de impacto, para falar da sua experiência para gerar uma discussão sobre esse conceito que ainda não é difundido dentro da quebrada. A Aceleradora Nip é uma das frentes que estamos tocando esse ano, colocando em prática mesmo, que inclusive, ano retrasado foi acelerada pelo ICE [Instituto de Cidadania Empresarial]. Já no ano passado, realizamos o Fórum de Negócios com Impacto na Periferia, primeiro fórum realizado na quebrada. Começamos o ano com o fórum em março, e encerramos com a aceleradora fazendo busca e seleção de negócios com impacto aqui dentro.
AUPA Qual foi a maior dificuldade que já enfrentou nesses 18 anos?
DJ BOLA São várias. Mas talvez a primeira dificuldade fosse olhar internamente para nós, olhar para gente quanto indivíduo, quanto pessoas com barreiras, preconceitos, medos, a fim de desconstruir isso e conseguir se relacionar com uma galera que vive em uma condição social e econômica diferente da nossa. Outra é conseguir, de fato, sobreviver do nosso sonho. Nosso viés é cultura e música e, viver disso, não é nada fácil, ainda mais, trazendo esse conceito de negócio de impacto. Tivemos que nos reinventar, ter muita resiliência para conseguir estar dentro do mercado e vivos, até hoje, por questões financeiras.
Além disso, tem o desafio de descobrir como fomentar ainda mais o conceito dentro da quebrada e trazer mais pessoas para dentro desse ecossistema. Tem muita tecnologia, informação e investimento acontecendo para pensar sobre nossa vida, e a gente não participa disso. Muitos coletivos e movimentos sociais deixaram de fazer suas ações na quebrada por falta de política pública. É um desafio colocar essa galera para se questionar: ‘Por que não oferecer algum tipo de serviço? Por que eu tenho que trabalhar para os outros 44h por semana e só fazer aquilo que eu amo no meu tempo vago?’.
Quando a gente busca negócios da quebrada para acelerar, entendemos que já tem impacto ali, por comprar, por exemplo, coisas daqui, contratar pessoas daqui.
AUPA Sobre o NIP, quais foram os critérios para realizar as acelerações?
DJ BOLA A Banca já realizou diversos projetos e incubamos algumas pessoas que já trabalharam com a gente. Com a NIP fazemos a aceleração, que é outro olhar para esses negócios de impacto. Lançamos a aceleradora, em 2018, encerramos a primeira turma semana passada com cinco negócios acelerados. Explico por que não quisemos incubar: nós entendemos que existem outras organizações fazendo isso. Um exemplo é o Empreende aí, que está fazendo incubação com empreendimentos da quebrada. A gente quis fazer um recorte para negócios que já existem e já estão em andamento na quebrada.
Então, o desafio é maior, porque é algo que já está estabelecido. Já tem o seu jeito de fazer, já tem sua cultura, seu modo de lidar com as planilhas, com entrada e saída de dinheiro, como lidar com funcionário. Importante falar que acelerar não é apressar a pessoa e, sim, trazer conteúdos, informações, tecnologias e conexões estratégicas para melhorar o desempenho do negócio aumentando, assim, o impacto. Muitas vezes, o termo acelerar gera um desconforto, porque já vivemos “acelerados”, mas, na realidade, é acelerar o empreendimento.
AUPA Como é o modelo de aceleração?
DJ BOLA São encontros presenciais a cada 15 dias, um encontro on-line individual com cada negócio e “mentoria” no processo. Após quatro meses de aceleração, os negócios têm acompanhamento do mentor durante seis meses. Ao final do programa de quatro meses, os Nip’s, que elaboraram um bom plano de ação, poderão receber um investimento de 20 mil reais sem retorno, ou seja, fundo perdido.
Estamos em busca e seleção início da segunda turma. Estamos focando nos territórios da Zona Sul, distrito Jardim Ângela, Campo Limpo e Capela do Socorro. É bem provável que, ano que vem, a gente atenda a outros territórios de São Paulo, em outras periferias. Decidimos começar nesse território para aprender, validar algumas coisas, refinar a ideia para conseguir ir para outros lugares. Um passo de cada vez.
AUPA Como é a relação de trazer instituições como a Artemísia ou a FGV para a periferia?
DJ BOLA A gente sempre provocou a Artemísia e todos do meio que movimentam esse ecossistema do lado de lá para fazer algo aqui na “quebrada”. Mas devido a tantas provocações durante esses anos e a outras pessoas que também questionam, a Artemísia começou a perceber que 99% do portfólio da maioria das incubadoras, aceleradoras e organizações de inovação social são negócios com impacto ambiental e social que não são da quebrada. São liderados por homens brancos que têm seus privilégios. Não existe mulher na liderança, não tem negro ou diversidade de gênero. Portanto, a Artemísia começou a se inquietar com isso e, a partir disso nos juntamos.
A gente já estava fazendo essas discussões por conta própria na quebrada, trazendo pessoas e etc. Entre eles, trouxemos o Daniel, da VOX Capital, para falar de fundo de investimento. A gente veio fomentando esse conceito, aqui dentro, com o olhar da quebrada. Aqui, os negócios não são tradicionais como os do lado de lá. Não tem muitos negócios com tecnologia, ligados à saúde e educação. Existem, sim, alguns projetos que, de alguma forma, se interessam por esses desafios, mas não são tantos negócios assim. Ainda mais, se posicionando como um negócio de impacto. Por isso, a gente começou a trazer esse movimento para cá e fazer barulho aqui. Acredito que isso foi ecoando. Conversei com a FGVcenn [Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios] e me disseram que essa ação era um sonho, mas o Centro não tinha propriedade para realizar, porque não era da quebrada. Por isso, juntamos A Banca, Artemísia e FGV para pensar em uma aceleradora para negócios de impacto na periferia.
O portfólio da maioria das incubadoras, aceleradoras e organizações de inovação social são negócios com impacto ambiental e social que não são da quebrada.
AUPA Então vocês buscam dar o protagonismo para a periferia?
DJ BOLA Na realidade, a gente busca ser o protagonista. Fazer a ponte de a cidade ser uma via de mão dupla, um ambiente onde a gente possa trocar, ir e vir, se conectar. Não sei até quando isso vai acontecer, mas hoje a ponte é um simbolismo da separação entre a cidade desenvolvida e a “quebrada”. Por isso, a gente quer fazer das pontes um lugar de troca. Muitas pessoas me perguntam como a gente está fazendo isso, acham fantástico criarmos a aceleradora e tal.
E não tem segredo: o que a gente fez foi tentar trazer essa metodologia que já existe há muitos anos. Muitas delas são internacionais com vários termos em inglês. A gente quer trazer toda essa bagagem para ser aplicada nos negócios que estão na periferia e são da periferia. A magia disso é a junção de três organizações que vivem outras condições, mas têm objetivos em comum. Com essa junção, trazendo esse conceito para focar nos negócios que são da quebrada em uma narrativa aconchegante. Não em uma narrativa de brainstorm, B2B, uma confusão que, às vezes, distancia. Acredito que esse é o diferencial, é o brilho da parada. Além disso, é um gargalo que o ecossistema de negócio com impacto não conseguiu chegar até hoje. É só olhar para todas essas aceleradoras: quase ninguém da quebrada passou pelos processos ou, então, isso é novo.
AUPA Qual é a sua definição de impacto?
DJ BOLA Acredito que o impacto, em si, é uma coisa mística, porque eu só o vejo em longo prazo. Ele não se dá a médio prazo e nem curto. O impacto, de fato, é a transformação que a vida da pessoa sofre. Por isso, eu posso dizer que fui impactado pela cultura hip-hop, pela música e por esse conceito de negócio de impacto. Eu tenho 37 anos, há mais de 20 anos estou fazendo a mesma coisa. Portanto, isso me impactou, eu sou uma prova de impacto. Para os negócios que são da quebrada e estão na quebrada, eles não precisam se preocupar com os termos, agora. Primeiro, se eles estão fazendo e são daqui, o impacto já está acontecendo na vida deles. É preciso se preocupar em ficar de pé, em pagar as contas, porque essa é nossa maior dificuldade. Quando a gente busca negócios da quebrada para acelerar, entendemos que já tem impacto ali, por comprar, por exemplo, coisas daqui, contratar pessoas daqui. Por isso, queremos fortalecer a questão de conquistar mercado, conquistar território, refinar modelo de negócio e trazer ferramentas para que as pessoas possam continuar acompanhando e monitorando o desenvolvimento. Depois, veremos a curva de aprendizado e o impacto que teve na vida delas.