O projeto Mandacaru é um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia causada pelo novo Coronavírus. O projeto tem como objetivo arrecadar recursos financeiros e materiais para as equipes de saúde. Com a criação do neurocientista Miguel Nicolelis, que é também coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, o Mandacaru pretende criar o maior instituto virtual de pesquisa científica da história do Brasil.

Nesta conversa, Nicolelis explica como funciona a iniciativa, a atual situação da pandemia no Brasil e em outros países, além de como as medidas de flexibilização podem aumentar os casos e óbitos nas próximas semanas. Confira a entrevista.

Clique na imagem para ampliá-la, Crédito: Equipe de Arte Aupa.

AUPA – Qual é a importância de investir no setor de pesquisa e existirem Políticas Públicas para apoiar a pesquisa e o desenvolvimento científico?
Miguel Nicolelis O Brasil só começou a dar importância ao setor de pesquisa durante essa emergência global. Sem pesquisas públicas, baseadas em desenvolvimento científico, não conseguimos desenvolver uma vacina, por exemplo. Então, a importância de investimentos já começa por aí.

Aupa – Qual é a relevância da divulgação científica e da realização de um projeto como o Mandacaru no Nordeste?
Miguel Nicolelis – O projeto está sendo essencial desde o começo de abril, quando propomos a criação. A minha ideia não era só ter uma rede de cientistas, como muitas que foram criadas pelo mundo a fora, mas de ter uma complementação desse trabalho científico, com profissionais de comunicação, artes gráficas e redes sociais. Afinal, era evidente, desde o início, que nós teríamos, além da batalha sanitária e cientifica, uma batalha da comunicação. Eu acho que o Mandacaru inovou muito na sua missão científica, a missão de divulgação científica.

Aupa – Como você analisa esse momento de nova alta de casos da Covid-19? As medidas de flexibilização estão corretas?
Miguel Nicolelis – O Brasil fez tudo errado. Boa parte do que foi flexibilizado ocorreu no momento errado. São Paulo, por exemplo, nunca passou por um lockdown e é onde tratamos horário de shoppings, bares, parques e restaurantes como mais importantes do que a prevenção e números de casos e óbitos. Então, a flexibilização no Brasil foi incorreta e, mesmo nos lugares onde a flexibilização foi correta, a hesitação em retornar as medidas de isolamento social, no momento em que os casos começaram a aumentar, jogou contra. Entendemos que todo mundo está cansado do vírus e que, talvez, seja uma medida impopular, mas é em um momento desses que se precisa de liderança.

Uma política que não tenha medo de ir contra medidas que podem ser impopulares, pois estas são as únicas ferramentas disponíveis para evitarmos um número de mortes maior.

AUPA – Como podemos conter o contágio do vírus, sem o relaxamento das medidas de proteção, com a chegada da vacina no Brasil?
Miguel Nicolelis – Nós nem temos a vacina ainda e não sabemos qual vacina vamos usar. Provavelmente, surgirão várias vacinas ao mesmo tempo – no Brasil, pelo menos duas. Ainda não temos uma definição do resultado de uma delas, pois a CoronaVac ainda não divulgou seus resultados – todos ainda são preliminares; então, estamos colocando os carros na frente dos bois. O governo federal não planejou, meses atrás, o que iria fazer e o jeitinho brasileiro está sendo aplicado em uma crise sanitária, onde as consequências serão terríveis. Estamos nos aproximando, novamente, de mil óbitos por dia e é muito possível que os números de casos dupliquem nas próximas semanas com as festas de final de ano.

AUPA – É possível afirmar que o Brasil emendou as ondas da Covid-19? Houve algum momento de superação da primeira onda?
Miguel Nicolelis – O Brasil ficou em um platô, durante vários meses, que começou a cair, mas, ao final de outubro, voltou a subir. Então, as liberações desenfreadas no meio de uma pandemia somadas às campanhas eleitorais, à votação, aos jogos de futebol e todos os outros absurdos que testemunhamos, fizeram com que, entre o final de outubro e começo de novembro, os casos voltassem a subir – e, consequentemente, houve uma subida no número de óbitos. Além disso, estão acontecendo discussões infinitas sobre se é segunda onda ou ainda o pico da primeira onda. Não faz diferença. A realidade é que os números estão crescendo e precisamos focar em diminuir os casos. Portanto, essa segunda onde pode ser pior que a primeira no Brasil.

AUPA – O que falta ao Brasil para evitar essa possível segunda onda? O que faltou para evitar a primeira?
Miguel Nicolelis – Faltou um governo federal, com uma mensagem clara à população. Faltou também a preparação do Brasil antes do vírus chegar aqui, pois tivemos tempo [o primeiro caso de Covid-19 aconteceu em 1º de dezembro de 2019, em Wuhan, na China; o primeiro caso brasileiro confirmado aconteceu em 26 de fevereiro de 2020, em São Paulo].

Faltou usar a estratégia nacional e as ferramentas que o mundo todo tinha noção que seriam úteis. Cada governo estadual agiu sozinho e cada um teve que atirar para um lado.

AUPA – Como você vê o financiamento às pesquisas no nosso país? Você acha que falta maior proximidade ou entendimento da população acerca da cadeia científica necessária para o desenvolvimento de uma vacina, por exemplo?
Miguel Nicolelis – Isso é um problema crônico de como a ciência é vista. Quando eu estudei isso em 2014, o investimento máximo no Brasil era na ordem de 1,15% do PIB, sendo que os grandes países científicos no mundo, como os Estados Unidos, aplicaram durante décadas 5% do PIB em ciência e tecnologia. Contudo, não é uma questão apenas de dinheiro: a sociedade precisa entender a relevância do trabalho científico de alto nível. Os cientistas brasileiros vivem hoje em meio a uma burocracia em relação ao financiamento, e, assim, a ciência nunca chega a ter um contato com a população, pois o sistema não permite que os cientistas tenham como se comunicar com as pessoas.

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