O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC), divulgado no início de agosto, acendeu o alerta: se o mundo não reduzir as emissões de gases de efeito estufa para a atmosfera, é provável que o aquecimento global ultrapasse a marca de 2ºC até o final deste século, com grandes chances de alcançar 1,5°C já nos próximos 20 anos.
O importante papel das florestas para a regulação do clima é tema recorrente no debate público. Mas esse equilíbrio está em constante ameaça com o avanço do desmatamento, especialmente na Amazônia.
“O desmatamento das florestas libera uma quantidade absurda de gases de efeito estufa – fora a própria poluição que vem das queimadas, entre várias outras consequências, que não são boas”, afirma Natalie Unterstell, presidente da Talanoa, think tank dedicado à política climática.
O desmatamento é um dos vários problemas que a Amazônia tem enfrentado. Seja pelas mudanças nos órgãos responsáveis por manter a floresta em pé ou pelos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, a agenda política ambiental do país tem colocado em risco a conservação desse bioma e dos povos que ali habitam. Confira nesta entrevista, as reflexões de Natalie Unterstell sobre o atual momento e as perspectivas de mudanças deste cenário.
AUPA – Vivemos uma onda negacionista, em que chefes de Estado questionam a importância do combate ao aquecimento global e até negam a existência da mudança climática. Quais os impactos dessas posturas para democratizar o discurso sobre os efeitos desses fenômenos para a população?
Natalie Unterstell – Os mercadores de dúvidas existem há muitas décadas. Eles utilizam uma técnica de plantar dúvidas sobre o que estamos vivendo. Essa técnica se mostrou muito efetiva, pois eles conseguiram atrasar uma regulação em diversas frentes. No caso da indústria do tabaco, por exemplo, quantas pessoas não devem ter morrido por doenças associadas ao fumo porque acreditavam que fumar fazia bem à saúde? É o mesmo para a questão climática. Por anos a indústria de combustíveis fósseis vendeu a ideia de que precisávamos do carvão – porque as pessoas pobres só teriam energia pelo carvão, que era abundante e barato. Mas, sabemos hoje, que a eólica é mais barata que o carvão e nunca tivemos essa dependência. Entretanto, eles – a indústria – foram muito efetivos, tiveram recursos e foram capazes de fazer esse jogo de influência no alto nível. Isso aconteceu globalmente, não apenas no Brasil ou nos Estados Unidos.
O cientista Michael E. Mann, autor do livro “The New Climate War”, costuma dizer que são os “inativistas”. Esse termo pode ser aplicado à indústria do petróleo e do gás, que afirma que o problema é muito difícil de resolver e usa o discurso de que não há o que possa ser feito. O impacto disso hoje é muito ruim, principalmente no Brasil, pois, durante muito tempo, tivemos uma matriz de energia relativamente limpa, temos muitas hidrelétricas e tínhamos muita utilização de biocombustíveis nos transportes, por exemplo. Mas isso está mudando, pois os “inativistas” estão fazendo com que as pessoas aceitem que passemos para uma energia mais suja na matriz brasileira. Outro ponto é que os lobbies desses segmentos são muito poderosos e capitalizados. Há um jogo muito pesado de interesses que fez com que, durante muito tempo, lideranças políticas, até progressistas, não se posicionassem contra.
Em contrapartida, as tecnologias limpas – eólica e solar – estão crescendo exponencialmente, e os investidores já estão percebendo que conseguem se beneficiar desses novos mercados. E o mercado sente quando uma tecnologia se torna obsoleta e, com isso, começa uma dinâmica de olhar para essas oportunidades e defender políticas domésticas mais agressivas. E, como consequência, as energias consideradas mais sujas estão perdendo mercado e suporte regulatório. Essa onda negacionista está desesperada para segurar isso, mas, na prática (no mercado) já viramos a página e é muito evidente que, quem ficar no petróleo e no carvão, ficará para trás.
AUPA – O Governo Federal retirou do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) a atribuição de divulgar os dados sobre alertas de incêndios e queimadas em todo o país. Agora, essa função foi direcionada ao Instituto Nacional de Meteorologia, o Inmet, vinculado ao Ministério da Agricultura. Como essa decisão afeta os dados que serão captados e divulgados?
Natalie Unterstell – O grande problema dessa mudança é que ela está associada a um conjunto muito amplo de alterações que estão sendo feitas desde janeiro de 2019, o que causa muita instabilidade, não necessariamente no monitoramento, mas no uso dessas informações para cumprimento das leis ambientais.
O que me preocupa é a instabilidade e certa desmoralização do INPE. Tivemos um caso no ano retrasado do presidente da instituição que foi tirado da posição por discordâncias (Ricardo Galvão foi demitido em agosto de 2019). Estamos em uma crescente de desmoralização e isso é muito ruim a longo prazo, pois a instituição vai perdendo força. E, por outro lado, no curto prazo, não sabemos se estes dados estão sendo úteis para, de fato, coibir crimes e prevenir queimadas – que é o objetivo principal.
Embora tenham características diferentes, ambas as instituições (Inpe e Inmet) têm mandado para fazer monitoramento, mas é um pouco estranho fazermos essa mudança no meio da estação de seca e de queimadas. Então, os questionamentos são: “qual foi o planejamento? De onde isso está vindo? Por que isso agora?”. É muito instável. Na prática, a questão dos dados não é simplesmente ir lá e “passar o pen drive”, tem uma construção que está obscura sobre como acontecerá.
AUPA – Com a saída de Ricardo Salles do comando do Ministério do Meio Ambiente e a entrada de Joaquim Leite (antigo titular da Secretaria da Amazônia e Serviços Ambientais), o que muda na política ambiental do país?
Natalie Unterstell – Foi positivo que o Salles tenha se desvinculado da posição. Ele realmente não estava à altura do cargo. Acho que foi tardia essa saída, pois foram causados muitos danos nesses dois anos e meio. Por outro lado, isso não corrige a política bolsonarista ambiental e de mudança do clima. E tampouco acho que há interesse do Governo de corrigir os sinais que estão sendo dados.
Já faz mais de dois meses que o Ricardo Salles saiu e não tivemos alteração de curso. Não houve nenhum pronunciamento do novo ministro em relação a quais serão suas prioridades. Sabemos de bastidores que ele continua interessado nas mesmas agendas e abordagens, por exemplo, de manter o Fundo Amazônia paralisado. Então, não tenho expectativa de mudança no curso das políticas ambientais. O que podemos esperar de diferente é que o Joaquim Leite parece ser uma figura menos confrontativa e explosiva do que o Ricardo Salles, mas as ideias são as mesmas. Não devemos considerar que algo de novo vá acontecer por vontade ou virtude deste Governo.
AUPA – Na Cúpula do Clima, em abril deste ano, o presidente Jair Bolsonaro fez promessas para alcançar a meta de neutralidade de carbono em 2050. Ao mesmo tempo, o Brasil está longe de cumprir as metas firmadas no Acordo de Paris. Como é possível pressionar para que essas metas se tornem realidade?
Natalie Unterstell – Essas metas não são deste Governo ou de Governo, mas sim, da sociedade brasileira. Então, qual o objetivo que nós, brasileiros, queremos fixar para a descarbonização do nosso país nesta década? Acho que esta é a principal pergunta. Temos uma profusão de metas de empresas, Governos estaduais, Prefeituras, vários atores estão se posicionando imbuídos em implementar a descarbonização total até 2050.
É muito importante que os diferentes atores passem a pensar juntos nessa visão de mudança do clima e desenvolvimento para o Brasil nesta década.
O que queremos implementar? Se chegarmos às visões será mais fácil cobrarmos quem tem autoridade.
Sobre as responsabilizações, caso essas metas não sejam cumpridas, vale lembrar que nós estamos em uma democracia. Há diversas ações judiciais no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) cobrando a omissão e as falhas na implementação desses compromissos. Então, hoje, está nas mãos dos juízes essa responsabilização. Ainda: o Brasil é signatário da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima da Organização das Nações Unidas e, inclusive, houve uma carta das organizações da sociedade civil brasileiras denunciando a falta de cumprimento das regras do Acordo de Paris.
Não está faltando denúncia, mas acredito que precisamos, para além desse Governo, saber o que queremos fazer.
AUPA – Ainda sobre eventos, temos a COP 26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de Glasgow) em novembro. Todd Chapman, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, afirmou que o Governo brasileiro deve ir para um evento com um pacote pronto sobre como alcançar as metas que já assumiu. Com o cenário atual, o que você espera acerca da participação do Brasil?
Natalie Unterstell – Só haverá acordo na COP se todos os países alcançarem consenso. Por isso tantos parceiros internacionais estão vindo ao Brasil tentando mobilizar o Governo Bolsonaro para chegar com propostas razoáveis à COP 26. O mundo precisa do Brasil, portanto, o país precisará se posicionar.
Hoje, o que sabemos que é prioridade do atual Governo – mas, talvez, isso mude até lá: o Brasil quer acordo sobre o art. 6 do Acordo de Paris, referente ao mercado de carbono; e há ainda uma cobrança sobre a questão do financiamento climático. Então, essas são as duas principais linhas que o Brasil tem trabalhado. Acredito que, junto com os seus principais aliados (China, Índia e África do Sul), o país também irá cutucar os países ricos e tentar se defender.
Infelizmente, esse jogo de empurra é ainda muito presente neste Governo. É um jogo amplo e os países ricos têm muito a fazer, obviamente. Nós não somos os únicos que não fizeram a lição de casa. As posições são históricas e vemos uma resistência em criar, inovar e apresentar propostas mais ambiciosas. O que me preocupa, e me envergonha, é que o Brasil vai chegar com péssimos resultados.
E depende do Estado para ser coibido, não podemos contratar instituição privada para cuidar de floresta pública.
Outro ponto crítico é o desmatamento acumulado. São décadas de desmatamento. Até os anos 1970, havia 1% da floresta desmatada na Amazônia, hoje são 20%. Se passarmos de 25%, a floresta entrará em colapso. Uma pesquisa divulgada em julho deste ano pelo INPE e outros pesquisadores revela que já temos áreas da floresta amazônica, no Sudeste dela, que estão nesse processo – que pode ser irreversível. Nesse ponto, não sei em qual Brasil vamos viver. A Amazônia segura nossa agricultura e exerce todo um papel de regulação climática para o mundo. Imagina essa floresta entrar em colapso? E isso está diretamente ligado à falta de fiscalização, ao cumprimento das leis. É estratégico que a nossa fiscalização ambiental funcione e seja respeitada.AUPA – O Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, conhecido como “PL da Grilagem” foi aprovado na Câmara dos Deputados e está em curso no Senado Federal. Se aprovado, quais retrocessos ele traz para a política ambiental do país?
Natalie Unterstell – A principal ameaça deste projeto de lei é dar incentivos para a invasão de terras, retirar madeira e depois vender essa terra como se fosse privada, é um processo muito ligado ao desmatamento e está sendo estimulado. Gera expectativa de que quem grila terá a terra regularizada. É como dizer: “Grile o quanto antes, pois você terá uma bênção do Estado depois”.
É ruim, pois temos vários sinais de que está acontecendo essa corrida às terras públicas. Esse projeto de lei, se aprovado, irá consolidar a noção de que também não há só um incentivo agora, mas que as pessoas que grilam e desmatam podem ficar tranquilas, afinal elas serão perdoadas.
O Presidente Jair Bolsonaro afirmou que iria acabar com a indústria da multa, mas o que ele está fazendo é criar a indústria do perdão, tanto no caso da grilagem como no desmatamento.
AUPA – O termo “passar a boiada” foi utilizado por Ricardo Salles (ex-ministro do Meio Ambiente), durante reunião ministerial, para afrouxar regras ambientais durante a pandemia. Você acredita que esse objetivo foi alcançado? Em um Brasil pós-pandemia, quais são as perspectivas de impacto dessas ações?
Natalie Unterstell – Não tenho dúvida de que o Governo Bolsonaro tentou passar muitas boiadas, mas tenho visto uma reação espetacular da sociedade civil, das empresas, dos investidores, dos Governos Estaduais. Graças a isso, muitas boiadas que chegaram na porteira tiveram que voltar. Uma das boiadas que o Salles tentou passar no CONAMA foi barrada no Supremo Tribunal Federal. Outra que ele propôs sobre praticamente desautorizar a Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) também foi barrada nos estados com o Ministério Público.
Mas, agora, estamos com a iminência de que as piores boiadas aconteçam. O Governo Bolsonaro tem um fortíssimo aliado no Congresso Nacional, que é o Centrão, e as propostas legislativas, que eles não conseguiram passar em dois anos e meio, estão pautadas para regime de urgência nesse próximo semestre.
É um momento muito perigoso. Talvez mais perigoso do que esses últimos dois anos e meio. É preciso fortalecer a pressão principalmente no Legislativo.
AUPA – Você faz parte do projeto Política por Inteiro, que monitora a agenda ambiental de Políticas Públicas no país. Em um momento em que as fake news estão tão presentes, qual a importância de ferramentas de monitoramento como essas?
Natalie Unterstell – Tentamos separar o que é ruído e o que é sinal. Nosso trabalho principal não é necessariamente checar fatos. Fazemos um acompanhamento, em tempo real, dos sinais que o Governo está dando, observando medidas e decretos. Estamos analisando se é algo para se preocupar ou não. Vale dizer que todo mundo já fazia um pouco de monitoramento, mas isso teve que ganhar uma nova dimensão, uma escala muito mais ampla, no Governo Bolsonaro – que, por sua vez, trabalha com sobrecarga sistêmica, então é muito ruído. Foi necessário criar essas ferramentas para entendermos o que está acontecendo. É muito importante ter várias pessoas atuando nesses campos, apoiando o jornalismo e o ativismo. Nosso papel é só ajudá-los a falar com mais propriedade sobre o que precisa ser falado.
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