DOSSIÊ ÁGUA 2: entre o negócio de impacto e o direito à vida (parte 2)

Na segunda parte da série "Dossiê Água", a AUPA traz o caso da água AMA da Ambev, uma iniciativa de acesso à àgua potável inserida dentro de um modelo de negócio. Conheça também as relações do Estado Brasileiro e o papel das agências nacionais sobre esse direito essencial à vida.

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O CASO DA ÁGUA AMA

A água AMA, da Ambev, também é uma iniciativa inserida no debate e nas ações acerca do acesso à água potável. Segundo a empresa, o projeto trata da comercialização de água mineral natural engarrafada, cujo 100% do lucro obtido nas vendas é revertido para projetos de acesso à água potável para a população do Semiárido brasileiro. Na página oficial é possível acompanhar o lucrômetro em tempo real – a cifra registra lucros que ultrapassaram três milhões de reais [6/5/2019]. “Os projetos que investimos possuem diferentes formatos e adequam-se conforme a necessidade de cada comunidade. Para isso, contamos com a parceria da Fundação Avina, ONG que articula ações de desenvolvimento sustentável na América Latina”, comenta Filipe Barolo, gerente de sustentabilidade da Cervejaria Ambev. Segundo dados do Ministério das Cidades (2018), mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e 100 milhões não têm saneamento básico.

nota: a reportagem não conseguiu informações sobre a porcentagem de garrafas que retornam para reclicagem (fotos: divulgação AMBEV)

Após a realização de diagnóstico das comunidades locais, com auxílio de parceiros destas localidades, avalia-se cada caso e escolha-se uma solução. Os projetos podem ser perfuração e poços profundos para captação de água, placas solares para baratear o custo de distribuição – e também garantir a sustentabilidade ambiental, revitalização de sistemas de distribuição inoperantes e/ou construção de cisternas em escolas, juntamente com sistemas de reuso de águas cinzas (água residual não industrial, proveniente de processos como lavar a roupa, a louça ou tomar banho). Por fim, as soluções podem ser também o manejo de hortas e capacitações em meio ambiente.

Lançada em 2017, Barolo explica que a AMA é um dos principais negócios com esse tipo de impacto social feito por uma grande empresa no Brasil. “A ideia surgiu em 2016, depois que participamos de um curso de negócios sociais do Yunus Social Business. O desejo era criar algo que fizesse parte do nosso portfólio e que causasse impacto positivo no mundo”, comenta ele – na ocasião, a Ambev ainda não tinha uma marca de água. Entre a ideia e o lançamento do projeto, a empresa levou quatro meses e, resultados de 2017, já indicaram que a empresa vendeu 3,1 milhões de garrafas de água de 500 ml. No ano de 2018, esse número saltou para 9,4 milhões. Sobre os resultados sociais e as pessoas impactadas pelo projeto, o gerente comenta que, “Hoje, já alcançamos todos os estados que compõem a região do Semiárido brasileiro, com 28 projetos em andamento e, entre abril e maio deste ano, vamos concluir outras iniciativas que vão elevar o número de beneficiados para 35 mil pessoas”.

As comunidades selecionadas para participarem do projeto e receberem os incentivos passam por treinamentos, conduzidos por parceiros locais, a fim de ajudar na gestão de sistema de água, bem como mantê-los em condições apropriadas para o uso – a mensuração dos resultados e do impacto, assim, é feito pelo acesso da população à água potável. “Dentro do modelo de gestão dos projetos, implementado nas comunidades, os próprios moradores elegem um responsável por gerenciar o sistema de água, que será remunerado mensalmente por seu trabalho, com recursos provenientes de pagamentos feitos pelas famílias que utilizam o recurso”, destaca Barolo. “Dessa forma, valoriza a água, para que seja utilizada de forma ainda mais sustentável. As comunidades ganham acesso à água e também independência”, comenta.

Placa solar instalada com o apoio do projeto no município de Aiuaba (CE), no sertão de Inhamuns, distante 435km da capital (fotos divulgação AMBEV)

Marcado pela escassez hídrica, o Ceará teve seis projetos financiados em áreas rurais, com instalação de poços profundos e painéis solares (microusinas de energia solar para barateamento do custo de distribuição da água). Os sistemas produzem de 10 a 15 mil litros de água potável por hora, abastecendo cada comunidade ininterruptamente. As iniciativas consistem em sistemas de água gerenciados por uma associação de comunidades, o SISAR (Sistema Integrado de Saneamento Rural. “O SISAR criou um modelo comunitário autossustentável para gestão de sistemas de bombeamento de água, reconhecido pelo Banco Mundial como um dos melhores sistemas de gestão de água rural do mundo”, afirma o gerente.

Nos primeiros estudos, feitos pela própria Ambev e relacionados aos impactos das ações do projeto AMA e ao IPS (Índice de Progresso Social, um indicador que combina uma série de validações sociais e ambientais), evidenciam melhoras relacionadas à água e saneamento, como saúde, mas também mede inclusão, principalmente, na vida das mulheres. “Elas conquistaram mais liberdade. Antes, eram as principais encarregadas de buscar água em locais distantes, perdendo até seis horas por dia com a tarefa. Agora, com mais tempo disponível em suas rotinas, elas podem dedicar-se a outras atividades, como capacitação e trabalho, para gerar mais renda às suas famílias”, conclui Barolo.

A ÁGUA E O ESTADO BRASILEIRO

No último dia 11 de abril, o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Segurança Hídrica  (PNSH), um estudo sobre os principais problemas do país relacionados à água – faça o download do plano aqui. O plano traz projeções para 2035 e trata de segurança hídrica em quatro dimensões: econômica, humana, ecossistêmica e de resiliência. Um dos objetivos do PNSH é reduzir os impactos, via intervenções, de potenciais perdas associadas a atividades, como a indústria e a agropecuária. O documento foi produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).

Instalações do complexo administrativo da Agência Nacional de Águas (ANA) (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Pensar a água é também retratá-la enquanto um direito social e o PNSH pode ser um instrumento constitucional importante para assegurar a água como direito dos brasileiros. Vale ressaltar que o acesso à água potável é um direito humano fundamental, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2014, a Assembleia Geral votou a favor de resolução que confere o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico como direitos assegurados. O acesso à água potável e ao saneamento básico também está retratado nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), também da ONU.

É em razão dessas garantias e da necessidade de água para o desenvolvimento das civilizações que, comumente, este recurso natural é pauta de interesse público, da iniciativa privada e, naturalmente, de incidência na esfera política. Em 2019, por exemplo, o debate sobre processos de dessalinização na região do Semiárido brasileiro voltou à tona na esfera federal, com aproximações diplomáticas e de negócios entre Brasil e Israel em relação à pesquisa e de tecnologias para dessalinização e irrigação da região.

O Programa Água Doce, do Ministério do Meio Ambiente, existente desde 2004, trata de uma iniciativa do governo federal em parceria com instituições estaduais, municipais e também da sociedade civil, e tem como objetivo estabelecer uma política pública permanente “De acesso à água de qualidade para o consumo humano, incorporando cuidados técnicos, ambientais e sociais na implantação, recuperação e gestão de sistemas de dessalinização de águas salobras e salinas”, segundo o site oficial do programa. O debate público sobre o tema é amplo e envolve vários atores. Estão no cenário os interesses geopolíticos por trás de uma potencial parceria estrangeira e como estas iniciativas afetariam a soberania nacional, incluindo os estudos/das pesquisas brasileiras. Há também a reflexão sobre de que maneira as iniciativas do Programa Água Doce e de negócios de impacto – como os exemplificados nessa série de reportagens–, podem contribuir para a solução dos problemas de acesso à água potável e ao saneamento básico. O debate deve seguir.

Nessas políticas, encontra-se também a transposição do Rio São Francisco, a partir do Projeto de Integração do Rio São Francisco com a Bacias do Nordeste Setentrional (PISF), cujo objetivo é garantir segurança hídrica a 12 milhões de brasileiros, distribuídos em 390 municípios, nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, onde a estiagem é frequente. Em 2017, as águas do rio São Francisco chegaram à Paraíba, trazendo garantia de acesso à água para cerca de um milhão de pessoas, segundo o Ministério de Desenvolvimento Regional. O projeto trata da maior obra de infraestrutura hídrica do país, dentro da Política Nacional de Recursos Hídricos. Ainda existem incertezas sobre as políticas do atual governo federal, mas o território permanece com a demanda. No Nordeste, concentram-se 28% dos brasileiros e 3% da disponibilidade de água em território nacional – o Velho Chico detém 70% de toda oferta de água da região, revelando-se, assim, uma alternativa viável para o projeto, segundo o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), tendo suas avaliações técnicas e de impacto ambiental e econômico a cargo do Plano Decenal da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, concluído pela Agência Nacional de Águas (ANA).

Foto da 2ª Estação de Bombeamento do Eixo Norte do Projeto de Integração do Rio São Francisco em Cabrobó / PE (Beto Barata/PR)

Já na região da Grande São Paulo, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e a BRK Ambiental (empresa privada de saneamento básico) fomentam o projeto Aquapolo. A iniciativa trata de um empreendimento para produção de água de reuso industrial, fornecendo 650 litros por segundo de água de reuso para o Polo Petroquímico da região do ABC Paulista. A região metropolitana paulista apresenta o chamado estresse hídrico, pois a Bacia do Alto Tietê precisa dar conta de 39 municípios – cerca de 20 milhões de habitantes. Isso significa sete vezes menos água por habitante do que a ONU recomenda como mínimo aceitável. Vale lembrar que a região é recentemente marcada por índices escassos no reservatório e São Paulo tem um rio morto que corta a cidade, o rio Tietê.

Os exemplos, experiências e iniciativas relatadas na série “Dossiê Água: entre o negócio de impacto e o direito à vida”, servem de base para gerar reflexões e abrir caminhos na complexa trilha entre o poder público e a iniciativas privada, mas evidenciam dois problemas estruturais: a desigualdade na distribuição e no acesso à água. E jogam a responsabilidade da solução no diálogo entre políticas públicas aliadas às organizações e iniciativas de cunho privado, onde estão inseridos os negócios de impacto. Ao final, o que todos desejam é obter água a partir de necessidades locais e gerida de forma sustentável. O papel dos negócios sociais e de impacto social diante deste contexto é fundamental e uma saída para este desafio demanda ações concretas locais e integradas entre todos os atores do ecossistema, principalmente com a comunidade. Cada um com seu papel para garantir o direito básico de acesso à recursos naturais, utilizando tecnologias sociais e mecanismos de impacto positivo sustentável para ultrapassar gerações e assegurar água para todos.

Para ler a primeira parte clique aqui

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