São hercúleos os esforços para transpor as dificuldades impostas pela pobreza e as próprias questões culturais que afastam pessoas de livros. Ainda mais desafiador no contexto da pandemia, que assola o planeta há mais de um ano. Com a necessidade de se manter o isolamento social, como fazer os livros chegarem às mãos das crianças? Como dar continuidade aos projetos de convivência entre pessoas e leitura? E, principalmente, como manter iniciativas que demandam logística, tecnologia e profissionais capacitados?
Há muitas mentes, mas também muitos corações dedicados a radiografar nossas fragilidades do ponto de vista da leitura. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2020) traz dados importantes — alguns, preocupantes — como a queda dos índices de leitura em todos os níveis sociais. Entretanto, na divisão por idade, a única faixa etária com aumento de leitores é a de crianças entre os 5 a 10 anos, que passa de 67% para 71%. Todas, pistas fundamentais para a construção de estratégias de valorização e acesso à leitura.
Mal fechamos o primeiro trimestre e a pesquisa O Brasil que lê, que intenciona registrar projetos de promoção à leitura no Brasil, já contabiliza mais de duas centenas de propostas e tem como questão norteadora a pergunta: “Quem está construindo um Brasil leitor?”.
“Essa pesquisa está sendo realizada durante a pandemia. E isso é uma boa notícia. O levantamento certamente contribuirá para que se possa responder sobre as dificuldades e os desafios que encontram os produtores dos projetos de fomento à leitura. Sem uma cartografia mínima, é como pontuar no escuro, ou elencando pontos possíveis, mas imprecisos”, afirma Marília Barcellos, professora associada e pesquisadora do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Para ela, felizmente nosso país conta com pessoas de alta competência, profissionais qualificados e que têm trabalhado para que práticas de leitura sejam ampliadas.
“As tentativas de se conhecer o quadro, o qual a leitura se encontra e contextualizá-lo, existem e devem ser valorizadas. Por isso, não consideremos a pouca leitura um problema crônico, mas, sim, a ser compreendido e solucionado em médio e longo prazos. Toda tentativa é válida, todo comprometimento merece receber atenção e ser alvo de Políticas Públicas de fomento à leitura”, analisa a docente.
O papel de fundações e institutos
Há quase três décadas, o Itaú Social acompanha o percurso de desenvolvimento do Investimento Social Privado no Brasil. Este ecossistema que reúne empresas, fundações e institutos familiares, empresariais e independentes é um importante agente propulsor de transformação na sociedade.
“Orientado por Políticas Públicas, entendemos que o repasse voluntário de recursos, para gerar impacto, deve ser realizado de forma planejada, monitorada e sistemática por meio de programas, projetos e ações de benefício público. E no caso da promoção de acesso à leitura o mesmo conceito se aplica. Nós precisamos ter o olhar atento ao impacto de tais iniciativas para a transformação social”, avalia Dianne Melo, coordenadora de Engajamento Social e Leitura do Itaú Social, do Itaú Social.
Provocar a reflexão e o pensamento, assim como a formação de educadores também é uma questão importante para a Fundação Santillana, que tem atuado em, pelo menos, duas frentes: a publicação de livros para download gratuito, entre eles, os dedicados a temas da educação, desde orientações para o trabalho de alfabetização até o debate de Políticas Públicas, passando por questões específicas de cada nível de ensino. E, na outra ponta, lives do ciclo de webinários Reflexões para um mundo pós-pandemia.
“A combinação de lives e acervo é uma estratégia bem sucedida para motivar a leitura, por parte de professores, professoras, pesquisadoras e pesquisadores, além de estudantes e familiares, de temas da atualidade”, explica André Lázaro, diretor de Políticas Públicas da Santillana.
Alguns exemplos de boas ações de fomento à leitura vêm de iniciativas públicas, como a Minha Biblioteca, da prefeitura de São Paulo, que tem similares no governo federal com o PDE Literário, e no governo do Estado, com entrega de livros novos nas mãos dos alunos.
“Ações desse tipo são vitais. Apesar de não alcançarem toda a população, podem ter grande impacto, com as crianças fazendo chegar esse efeito em seus pais e responsáveis”, resume Fábio Rogério Nepomuceno, diretor da EMEF Luiz David e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom).
Nepomuceno ressalva que as ações precisam, primeiramente, de um grande recurso financeiro; depois, de apoio essencial de professores e outros mediadores de leitura, tanto funcionários quanto voluntários. “O papel das organizações é o de mediar o acesso a esse recurso nos governos e na iniciativa privada para permitir chegar os materiais na ponta e orientar esses projetos com uma intenção clara”.
O desafio da Educação na pandemia
A Educação foi certamente uma das áreas mais impactadas pela pandemia. Hoje, a distância é o grande obstáculo. Segundo Nepomuceno, “Alguns alunos conseguiram ir à escola retirar livros didáticos, literários e apostilas impressas, mas outros não conseguiram ou ficaram com medo. Alguns alunos conseguiram acesso com PDFs nas plataformas on-line usadas pela prefeitura, mas outros simplesmente não têm equipamento e acesso facilitado à internet”.
“Nesse cenário, é óbvio que teremos um atraso massivo no acesso à informação selecionada e práticas de leitura na parte mais importante da sociedade, que são os jovens e as crianças”,
avalia Fábio Rogério Nepomuceno, diretor da EMEF Luiz David e membro da ABPEducom.
Ainda segundo o diretor, essas ações — distribuição de livros e uso da internet — devem ser ampliadas no futuro para ajudar a compensar a defasagem de acesso que as crianças estão sofrendo no tempo atual. “Urge distribuir equipamentos e chips de internet grátis (ou sinal wifi 5G e redes mesh em comunidades) para realmente garantir acesso de todos e diminuir as desigualdades. Junto com alimento e saúde, isso deve ser tratado como direito essencial”.
O desafio está posto para educadores e educadoras e para todos que atuam no campo da Educação: como tornar mais humana e próxima do cotidiano de nossos estudantes a educação em seus novos formatos? “A lição que fica é que precisamos fortalecer nossa capacidade de diálogo, ouvir com atenção, ponderar, argumentar e buscar modos construtivos de lidar com os conflitos inevitáveis da vida comum”, reflete Lázaro.
Ampliar a leitura no país é um processo bastante complexo, que passa pela formação dos profissionais da Educação, disponibilidade de acervos relevantes para os públicos, condições de vida que permitam tempo e espaço para a prática da leitura.
“As condições atuais de pobreza e escassez, crise aprofundada pela pandemia, restringem as possibilidades para que as pessoas possam se dedicar à leitura”, analisa o diretor na Santillana.
Por outro lado, Lázaro afirma que a escola tem papel fundamental ao estimular desde a infância o convívio com os livros, a prática da leitura e da conversa sobre o que se lê.
Embora seja uma atitude solitária, a leitura cria comunidades pela troca de experiências e percepções sobre o que foi lido. Talvez, neste momento, esse seja um sentido especial da leitura: fortalecer vínculos entre as pessoas, criar ambientes de compartilhamento para que nos sintamos mais próximos uns dos outros.
Com a pandemia ainda sem um final, há o esgotamento de recursos, mas também o acúmulo de experiência. Espera-se que possamos evoluir em descobertas de como lidar com isso.
“Novos modelos de gestão são aconselháveis. Como foi dito, o investimento no digital é irreversível. O desafio é não retroceder no investimento à distância ao mesmo tempo em que manter o afeto e a descoberta do presencial’, acrescenta Marília.
Entre livros e florestas
Em seus esforços, organizações como a Vaga Lume, que há 20 anos atua com bibliotecas comunitárias na Amazônia transpõe rios, literalmente.
“Atuamos em uma região com baixas condições de desenvolvimento e restritas garantias de direitos aos seus habitantes. Há aproximadamente 24 milhões de pessoas habitando a região da Amazônia Legal Brasileira e que possuem acesso limitado aos equipamentos culturais. O Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas registra 6102 bibliotecas no país, ou seja, aproximadamente uma biblioteca para cada 32 mil pessoas. E apenas 503 delas estão localizadas na região Norte do país, onde o número de habitantes por biblioteca sobe para aproximadamente 47 mil, 45% a mais”, descreve Lia Jamra, gerente de projetos educacionais da Vaga Lume.
As consequências desse cenário são claras. Dados da pesquisa IPS Amazônia/2014 apontam que o analfabetismo atinge 18,4% da população com mais de 15 anos na Amazônia, alcançando, por exemplo, 26% no Maranhão.
Apesar de ter sede em São Paulo, a força da ONG está na região amazônica, com ampla rede de voluntários locais, que são comunitários totalmente engajados com o projeto.
“A Vaga Lume sempre trabalhou muito localmente. O cenário pandêmico reforçou uma das fortalezas do projeto — a potência das comunidades e o vínculo que temos com elas, e por isso, puderam continuar desenvolvendo a leitura das suas casas”, diz Lia.