O Brasil é o nono país mais desigual do mundo, segundo dados do Índice de Gini, coletados em 2018. É ainda o segundo país com maior concentração de renda de acordo com um relatório disseminado no final de 2019, pela Organização das Nações Unidas (ONU). A pandemia do coronavírus escancarou e intensificou uma série de questões sobre os processos de desigualdades vivenciados há anos pelos espaços periféricos do território nacional. Diante de um cenário instável na economia do país, este texto foi criado em uma tentativa de compreender alguns ângulos desse grande problema sistêmico que é a fome.
A alimentação é o fator de mudança na vida de milhões de pessoas. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, declara que 116,8 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar, isso corresponde a mais da metade da população brasileira. Dentro dessa estatística, há ainda 19,1 milhões de cidadãos e cidadãs que passam fome.
Considerando a complexidade da temática, decidi colocar meus olhos e ouvidos atentos a uma região específica: o distrito do Grajaú, no extremo sul de São Paulo. Entrevistamos a Luciana Aparecida, moradora e ativista no bairro, Arlindo Neiva, dono do Mercadinho do Neiva, também no Grajaú e Lúcia Guerra, pesquisadora especializada na área de nutrição, com foco em insegurança alimentar e nutricional. A partir desses olhares, comecei a traçar meu percurso de compreensão sobre algumas das questões alimentares que nos circundam.
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Luciana Aparecida, do Lu.ReciclAlimentos.
Atravessando o distrito
Essa reportagem começa com uma travessia. Coloquei os sapatos naquele dia de garoa fina. Quase oito quilômetros separavam a Estação Grajaú, localizada logo na entrada do distrito, até a Ilha do Bororé, meu destino final. Luciana havia marcado de me receber na Casa Ecoativa, projeto do qual ela faz parte há três anos. O local fica depois da balsa e o ônibus que vai até lá sai a cada meia hora do terminal. O horário combinado era às 10h30, mas o ônibus das 10h não passou…
O Grajaú abriga 387.148 habitantes, segundo dados do SEADE, divulgados em janeiro de 2019. Em seus 92 km² de extensão, a região acolhe diferentes realidades em seu território e traz consigo dificuldades estruturais que todas as periferias paulistanas têm: desemprego, violência, fome, falta de infraestrutura e de transportes de qualidade.
Esse distrito, no entanto, é marcado pela presença de grandes artistas e ativistas que criam redes de apoio nos setores da cultura, educação, ecologia e alimentação. O Grajaú transborda arte, em todas as suas dimensões, e tem um jeito próprio de resistir às ausências do Poder Público. Luciana é um exemplo disso, engajada na luta por uma alimentação de qualidade para todas, todos e todes, nossa entrevista já começou diferente.
Quando nos encontramos, Luciana trouxe ingredientes para o preparo de um almoço vegano e me pediu para atravessar a rua e pegar algumas folhas de ora-pro-nobis. Ela apontou para uma árvore e me disse que eram “Aquelas folhas verdes do lado de lá”. Eu, totalmente leiga, fiquei por um tempo procurando por elas e, no fim, acabei pegando algumas folhas que, depois descobri, eram de batata doce.
A verdade é que antes da entrevista começar, eu tive uma pequena aula sobre PANCs (plantas alimentícias não convencionais) e aprendi que grande parte delas possuem um alto valor nutricional e podem ser encontradas com facilidade no bioma da Mata Atlântica, que compõe grande parte do extremo Sul de São Paulo.
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Mulheres da Ilha de Bororé na confecção de doces da Casa Ecoativa.
Leia também: Alimentos são “pra” ver ou “pra” comer: o que é que Parelheiros tem?
Jornalismo na cozinha
Com todos os ingredientes em mãos, liguei o gravador e ela me entregou um avental. Luciana me disse que a entrevista seria diferente e que, enquanto conversávamos, ela me ensinaria a fazer uma panqueca de ora-pro-nobis com recheio de coração de bananeira. O preparo do alimento começou e a conversa também.
Luciana é mãe de quatro filhos e uma de suas filhas teve dificuldades para ganhar peso, foi por isso que ela começou a buscar informações sobre alimentação saudável. Ela relembra que, durante esse processo de aprendizagem, chegou a usar muitos descartáveis e uma de suas experiências profissionais a fez rever algumas práticas. Luciana conta que “Essa virada de chave em relação à alimentação veio por eu ser uma catadora de material reciclável. Eu tive a oportunidade de fazer um dos trabalhos mais lindos da minha caminhada e muitas pessoas teriam vergonha de falar, mas eu falo e falo com muito orgulho: tive a oportunidade de ser uma catadora de material reciclável por duas vezes e uma das coisas que eu mais gostei nesse processo foi de ter participado desse projeto, junto com a Casa Soma. Eu fazia a recepção das pessoas e dos materiais e, depois, trocávamos por alimentos. Os nossos clientes (que traziam os resíduos) eram da Favela do Alto da Alegria.”
Ela continua dizendo que “É uma galera muito vulnerável e ter aquele ponto de descarte dos resíduos e troca por alimentos, cursos e outros brindes, minimizava o impacto no local decorrente das enchentes que têm naquele lugar”.
Unindo consciência ecológica e questões alimentares, Luciana criou o projeto Lu ReciclAlimentos, que tem como proposta criar e disseminar pratos nutritivos feitos à base de plantas alimentícias não convencionais. Dentro do contexto de catadora de materiais recicláveis, ela questionou a quantidade de lixo que era produzido por cada família e, a partir daí, passou a estudar escolhas sustentáveis para cozinhar de maneira mais ética e consciente.
Durante a conversa, Luciana reflete sobre questões estruturais das periferias. Ela conta que é mãe solo de quatro filhos e que viveu por dois anos com auxílio de R$320 reais do Bolsa Família e narra as dificuldades que ela e tantas outras mulheres periféricas têm ao tentar voltar para o mercado de trabalho. Hoje, Luciana trabalha com alimentação, tem curso de eletricista e de peluqueria. Engajada em diversas questões sociais, ela fez parte de um projeto de entrega de cestas básicas para famílias em situação de extrema vulnerabilidade no dia anterior à entrevista.
Moradora do Grajaú há 31 anos, Luciana narra também que, apesar do engajamento social, sua luta está também dentro de sua própria casa, já que os preços dos alimentos e das passagens de transportes continuam subindo. Além disso, ela comenta que, apesar de viver em uma área de mananciais, próxima a uma grande represa, parte do Grajaú vive uma crise hídrica severa e ela convive diariamente com a restrição de 15 a 20 litros de água por dia, muitas vezes, insuficientes para cozinhar, lavar, tomar banho e utilizar em outras questões domésticas.
Luciana luta por uma alimentação de qualidade para o seu território e suas receitas, inclusive, já alcançaram até outros países. Ela comenta que “É difícil saber que tem tanta gente passando fome, enquanto temos tantos alimentos nutritivos tão perto (no extremo Sul de São Paulo)”.
Próxima parada: Mercadinho do Neiva
Depois de tudo que a Luciana me contou sobre sua trajetória na gastronomia periférica, fui buscar outra perspectiva sobre a alimentação. Entre o Terminal Grajaú e o hospital público que também leva o nome do bairro, encontrei o Mercadinho do Neiva e conversei com o Arlindo Neiva, dono do estabelecimento, sobre a história do local e o impacto da alta dos preços durante esse período.
Ele conta que o mercado existe há mais de 30 anos, mas que ele está sob o comando do local há nove anos. Arlindo conta que o estabelecimento funcionou durante todo o tempo da pandemia e que no começo de 2020 não houveram tantas dificuldades para a sobrevivência do negócio, porém, segundo ele “O pior está sendo agora, porque teve a alta dos preços e isso está afetando não só esse mercado, mas a maioria dos pequenos empreendimentos. Entra naquela lei bem antiga de quem tem mais, prevalece”.
Arlindo narra que, durante o período de pandemia, ele viu muitas padarias fecharem no ano de 2020 e que, atualmente, ele tem visto essa dificuldade nos pequenos mercados também, isto porque há uma imprevisibilidade na margem de lucro no setor de alimentos. “A gente termina não tendo uma base real, porque você compra um produto por um valor, aí você joga a sua margem em 30%, mas quando vai vender, essa margem diminui. Você tem que tirar dinheiro pra poder repor os produtos”, segundo o dono do Mercadinho do Neiva.
O que dizem as pesquisas?
Entendendo a complexidade das questões alimentares, não só no distrito do Grajaú, mas em todas as regiões periféricas da cidade de São Paulo, fui em busca de mais informações que pudessem trazer um melhor entendimento da situação do nosso país. Conversei com Lúcia Guerra, doutora em Ciências pelo Programa de Nutrição em Saúde Pública, da Faculdade de Saúde Pública da USP e com estágio de pós-doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Ela se dedica aos estudos dos direitos humanos à alimentação, segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar.
Quando questiono sobre a situação de insegurança alimentar no Brasil, Lúcia traça uma retrospectiva dos direitos alimentares que foram adquiridos nos últimos anos e comenta que “Saímos do mapa da fome em 2014 e esquecemos de ficarmos atentos às questões que envolvem a alimentação”. A pesquisadora diz ainda que os investimentos para o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), foram cortados consideravelmente, assim como houve um corte significativo no Sistema Único de Saúde (SUS).
Ela alerta para as ausências do Poder Público em relação à populações que seguem com alta vulnerabilidade em pandemia e diz ainda que “Os movimentos socias tiveram e seguem tendo um papel muito importante nas conquistas no campo da alimentação”. A pesquisadora ressalta que não vê soluções possíveis que venham das esferas governamentais, mas que acredita no poder do conhecimento popular para uma mudança estrutural na alimentação do nosso país, que partirá de exemplos da coletividade para, só então, alcançar grande visibilidade em locais de poder.
(Não) comer é um ato político
As periferias lidam com diversos tipos de negligências desde suas formações. A marginalização aparece em aspectos silenciosos, como na falta de dados estatísticos que contemplem determinados locais, ou a ausência de saneamento básico em parte do Grajaú e de outros locais periféricos que (r)existem na maior metrópole do Brasil.
A realidade vivida por Luciana e estudada por Lúcia Guerra é também vivenciada por milhões de pessoas no nosso país. A alimentação é direito básico estabelecido na nossa Constituição Federal desde 2006. Se conquistamos esse direito há 15 anos, por que ainda tem gente sem ter o que comer?
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