Realizar 800 reformas em quase quatro anos de atividade é um feito e tanto. Ainda mais para uma startup, como é o caso do Programa Vivenda. E ainda mais quando o público-alvo do negócio são pessoas da classe D, cuja renda não lhes permite financiar o reparo de uma casa pagando parcelas maiores do que R$ 200 ao mês.

Mais que um feito, é uma façanha: centenas de reformas feitas em favelas de São Paulo a um custo médio de R$ 5 mil cada uma, parceladas em até 30 vezes. Trocando em miúdos: “Você entrega a reforma em 7 dias, mas só recebe em 30 meses”, resume Marco Gorini, cofundador da Din4mo, consultora parceira do Vivenda. “Existe aí um problema gravíssimo de capital de giro.”

A construção de um novo modelo

Entre maio de 2014, mês das primeiras obras, e fim de 2017, esse foi o desafio essencial dessa que é a mais relevante empresa de habitação no cenário dos negócios de impacto social no Brasil. “Operávamos sem ter um modelo de financiamento estruturado”, diz Fernando Assad, sócio-fundador do Programa Vivenda.

Várias foram as fontes usadas para manter o negócio de pé. Basicamente uma combinação de crowdequity, modelo que permite que vários pequenos investidores apliquem no negócio, e empréstimos bancários, tanto para pessoa física quanto para jurídica.

O problema era na hora de ganhar escala, pois se esbarrava na já conhecida desconfiança dos investidores. “Falamos com os cinco principais bancos e o argumento era sempre o mesmo: diziam que faltava literatura de crédito para avaliar o comportamento do cliente”, lembra Fernando.

“Risco” é quase sempre a palavra que ressoa nas entrelinhas quando investidores ouvem falar de negócios de impacto social. Ciente disso, Vivenda e Din4mo, parceiros desde 2016, pensaram em uma solução que gerasse confiança no mercado de capitais. “Já que o financiamento não viria pelos bancos, precisaremos buscá-lo diretamente com os investidores”, pensou Marco, da Din4mo. O projeto contou com o apoio decisivo, também, do Fundo Zona Leste e da parceira com o Grupo Gaia.

Foi quando a securitizadora Gaia entrou na história e as três empresas, juntas, desenvolveram a primeira experiência de blended finance de impacto social no Brasil.

O que é Blended Finance?

Na falta de tradução melhor, pode-se dizer que o blended finance é uma forma de financiamento misto que combina capital de fundos filantrópicos com o de investidores tradicionais – os primeiros, atuando como uma espécie de mecanismo de segurança para minimizar os riscos que o segundo poderia estar sujeito.

Na prática: “foi emitida uma debênture em duas séries, uma que chamamos de ‘mezanino’, através de uma oferta privada, e outra de ‘sênior’. Esta última através de uma oferta restrita, regulada pela instrução 476 da CVM [Comissão de Valores Imobiliários]”, explica Marco.

Em linhas gerais, debênture nada mais é que um valor emitido por empresas e que garantem um retorno, em juros, ao investidor. É um instrumento de captação de recursos comum para que empresas financiem seus projetos.

A primeira série, equivalente a 40% do total captado, vem de investidores filantrópicos. É a série de maior risco, aquela que sofrerá as primeiras perdas no caso de inadimplência. Já a série ‘sênior’ é toda ela distribuída para investidores do Itaú Private Banking. Esta última é a dos investidores tradicionais, atraídos pela segurança decorrente da presença de títulos financeiros do ‘mezanino’, aqueles dos investidores filantrópicos. Somando-se os recursos, o total captado alcançou a cifra de R$ 5 milhões, que ficaram sob a responsabilidade da Gaia.

E o que mudou para o Programa Vivenda?

Desde janeiro de 2018 as operações do Vivenda agora funcionam assim: ao fim de cada mês, a empresa faz a cessão dos contratos de financiamento assinados com as famílias e recebe da Gaia, à vista, os recursos necessários para o cumprimento das reformas fechados naquele período.

Cada uma daquelas reformas de R$ 5 mil agora podem ser feitas com total segurança de caixa. Quem se ocupa de receber e gerenciar as parcelas de financiamento dos clientes é a securitizadora. Com isso, o Vivenda livre para proporcionar moradias mais dignas e em melhores condições de salubridade a de famílias de baixa renda.

Mais do que apenas uma garantia de estabilidade financeira à startup, as debêntures sociais são também uma maneira de alavancar o negócio e o impacto social. Os títulos foram emitidos para um prazo de 10 anos, mas os investidores só receberão sua parte a partir do sexto ano, ou seja, 2023.

Até lá, o capital permanecerá sendo reinvestido na própria operação, multiplicando por oito poder de fogo desses títulos: “A gente faz esses 5 milhões virarem 40 milhões”, resume Fernando. O que foi, por sinal, também um forte argumento para atrair o investidor filantrópico, com explica Marco, da Din4mo: “se esses R$ 2 milhões  captados na cota mezanino fossem para doação, conseguiríamos fazer 400 reformas. Com esse novo modelo, conseguiremos fazer 8 mil reformas no período.”

A expectativa do Vivenda para os próximos cinco anos agora é multiplicar por dez o total de obras feitas nos últimos quatro, o que resultará em mais de 30 mil pessoas beneficiadas. Com isso, Fernando Assad espera que os investidores finalmente entendam que um negócio de impacto social pode ser, sim, com o perdão do trocadilho, um bom negócio.

A experiência com as debêntures sociais tem só 6 meses de atividade, mas já permitiu a realização de 200 reformas nesse período, além do equilíbrio das contas das duas lojas do Vivenda na periferia de São Paulo. Um modelo que pode, inclusive, inspirar empresas de outros segmentos, como saúde e educação.

Criando um paradigma

Fernando acredita que o momento é dos mais propícios: “antes o investidor olhava para o retorno do investimento. Hoje ele avalia o risco. Agora está surgindo uma nova variável, que é o impacto que ele causa”. Se ainda há alguma desconfiança, como é usual em tudo o que se refere a negócios inovadores, aí está o blended finance como uma solução que pode deixar mais seguros os investidores tradicionais.

Há outras, e outras surgirão, mas é fato que o interesse por negócios que ajudam a transformar o mundo em um lugar melhor está crescendo. “Já estamos ouvindo que há uma demanda por esse tipo de investimento e os bancos não têm o que oferecer”, diz Fernando. “Essa é a literatura que nós estamos criando.”

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