19 milhões de brasileiros estão passando fome, segundo o estudo “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil”, realizado em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). E mais de 116,8 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar. Um retrato que volta a assombrar o país – que, em 2014, havia saído do Mapa Mundial da Fome. De um lado, o Brasil é o 4º maior produtor de grãos do mundo, de outro, ocupa a 10ª posição dos países que mais jogam comida fora, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da organização britânica de resíduos WRAP.
O contexto da pandemia aumentou a fome no mundo, que passou por um agravamento dramático em 2020 e atinge 155 milhões em 55 países, segundo o relatório “O vírus da fome se multiplica: uma receita mortal misturando conflitos armados, covid-19 e crise climática acelera a fome no mundo”, da Oxfam. Diante das evidências, será necessário esforço para o mundo honrar a promessa de acabar com a fome até 2030, considerando-se a ODS 2 da Agenda 2030 das Nações Unidas.
Mas o que explica a volta do cenário da fome no Brasil? “As Políticas Públicas foram desmontadas”, indica Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, entidade que atua com lideranças conforme as necessidades de cada região. Segundo o diretor, estas são consequências estruturais e a pandemia apenas agravou a situação. O desmonte das Políticas Públicas foi apresentado no “Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030”, estudo realizado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), coalizão formada por 57 organizações e fóruns de todo o país.
A falta de Políticas Públicas também é compartilhada por Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos (WFP). Vale lembrar que o programa da ONU foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz de 2020 pelos seus esforços em combater a fome e por sua contribuição para melhorar as condições de paz em zonas de conflito. Daniel, que também é diretor do Centro de Excelência contra a Fome no país, afirma que “Tudo é ocasionado por Políticas Públicas que não tiveram uma continuidade. Não existe nada por acaso”.
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Essa leitura também é compartilhada por Luciana Chinaglia Quintão, economista e fundadora da ONG Banco de Alimentos, associação civil que auxilia pessoas em situação de insegurança alimentar através do combate ao desperdício de alimentos. Segundo Luciana, “A infraestrutura social, política e a economia é fraca, o que colabora para o atual quadro”.
Pobreza triplica no Brasil e a exportação de alimentos decola
A pandemia, a falta de emprego e o fim do Auxílio Emergencial compõem a fórmula que fez com que o número de brasileiros que vivem na pobreza triplicasse em seis meses, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV). O número de pobres saltou de 9,5 milhões, em agosto de 2020, para mais de 27 milhões, em fevereiro de 2021.
Em meio a esse cenário, está o agronegócio, alvo de discussões quando o assunto é o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) e o contraste com o aumento da fome no país. Para Kiko, há uma mudança no olhar político, que está mais focado em produzir para exportar do que alimentar a própria população com qualidade: “Em um momento de crise, como regular esse mercado? Não há força política no congresso para fazer isso”. O diretor-executivo da Ação da Cidadania acredita ser necessário um modelo que consiga pensar no alimento como algo coletivo.
Esse argumento pode ser melhor explorado no artigo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”, assinado por Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb. No documento, os geógrafos desmascaram a versão de que o agronegócio é a maior força econômica do Brasil. “O agronegócio usa diversas estratégias para construir o consenso na sociedade brasileira de que é o setor mais dinâmico, moderno e importante da economia. No entanto, uma análise detalhada dos números do agro revela outra realidade. A de um setor que recebe muito e contribui pouco com o país”, afirmam os dois geógrafos no estudo.
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Contudo, vale destacar que o faturamento com as exportações do agronegócio brasileiro em junho alcançou recorde, de US$12,11 bilhões, o que representa uma alta de 25% em comparação com US$9,69 bilhões de junho de 2020, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Desperdício de comida e desigualdades regionais
O desperdício de alimentos é um dos grandes desafios pendentes para que a integridade da segurança alimentar possa ser alcançada. Daniel Balaban explica que, “No Brasil, a falta de estrutura faz com que muitos alimentos sejam desperdiçados. Desde produção, colheita, até transporte, comercialização e consumo final das famílias. A maioria dos desperdícios não está nas famílias, porque elas estão mais conscientes”.
Segundo o representante da WFP, seria necessário modificar o sistema de transporte para reduzir os desperdícios. “O melhor formato seria o ferroviário, como os países desenvolvidos fazem. Muitas vezes, o alimento se perde, porque precisa estar refrigerado. Não-raro, o próprio caminhão não está refrigerado adequadamente e um potencial problema na estrada faz com que ele perca toda a carga”, explica. No Brasil, 41 mil toneladas de comida são jogadas fora por dia, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos. Para Luciana Chinaglia Quintão, há falta de gestão do governo, pois “O desperdício é uma desordem social”.
Vale ressaltar ainda que no Brasil as desigualdades também são regionais. Segundo o estudo realizado pela Rede PENSSAN, o Nordeste é a região mais afetada, com 7,6 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar. Daniel explica que “O Brasil nunca se desenvolveu por igual e por inteiro. Então, temos bolsões de desenvolvimento. Devido à história e aos processos brasileiros, a região Nordeste foi delegada em segundo plano, junto com a região Norte”. Luciana, por sua vez, destaca que “O Nordeste é um país dentro do Brasil”.
Além disso, o Nordeste foi a região mais afetada em rendimento do trabalho pela segunda onda da pandemia, segundo o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, o rendimento efetivo do trabalho recuou 7,05% no primeiro trimestre deste ano, comparado ao mesmo período de 2020.
Pandemia gerou recessão brutal e prejudicou acesso a alimentos
Os preços dos alimentos subiram no mundo inteiro e ajudaram a impulsionar a inflação global. Segundo dados da FAO, os preços pelo mundo já subiram quase 33% no último ano. Por sua vez, a recessão no Brasil tem diversas justificativas. Uma delas é a inflação que afeta gêneros alimentícios básicos desde o ano passado, como também a seca no país, o aumento do dólar, instabilidade política, aumento do desemprego.
Diante da triste realidade que os números mostram, Daniel Balaban indaga: “O Auxílio Emergencial acabou e o Brasil, assim como o mundo, não mudou. O índice de desemprego está altíssimo e as pessoas farão o quê para se alimentar?” Para ele, o caminho pode ser a articulação social. “Ela deve ser feita com sociedade civil organizada, municípios, Estados, iniciativas privadas e uma ação forte dos governos. Somente ação do Estado vai evitar uma catástrofe maior”.