A pergunta sobre qual será o futuro do trabalho levanta visões utópicas e distópicas. A relação do homem com o trabalho no passado foi marcada pela escravidão e pela exploração, mas também pela emancipação e pelos direitos sociais. Com a globalização e o avanço das tecnologias tudo se mistura e deixa o ambiente ainda mais complexo. Afinal, o que significa a palavra emprego hoje?
O mundo do trabalho moderno fez surgir alguns fenômenos como a uberização ou home office, tendências que parecem ter vindo para ficar e confundir ainda mais os múltiplos significados do que é trabalhar. Poderia um trabalho oferecer liberdade, e ao mesmo tempo precariedade? Para muitos trabalhadores de diferente metrópoles pelo mundo, sim. Expostos a falta de emprego e obrigados a se tornar empreendedores de si mesmo, os trabalhadores se submetem a fazer qualquer coisa por falta de algo melhor. Se somarmos o desemprego, grandes plataformas digitais, sindicatos fracos e pouca intervenção estatal, o copo vazio do trabalhador parece estar quase seco para quem só quer pagar as contas no final do mês.
Com ou sem carteira de trabalho, com ou sem direitos, empregado ou empreendedor, o contexto de fragilidade extrapola as relações de trabalho e invade a própria vida, como afirma socióloga do trabalho, Marta Bergamin. “A precarização do mundo do trabalho é, no final, a precarização da própria vida. Se você tem um trabalho precário, com remuneração baixa, você vai morar e viver em piores condições”. Marta se refere a crise social quase permanente ocasionada pelo desemprego ou pela falta de oportunidades cada vez mais estruturantes no Brasil e no mundo. Fato que o contexto da pandemia descortinou deixando evidente como as desigualdades atingem mais trabalhadores pobres e vulneráveis. Depressão e burnout formam a outra ponta do mesmo problema.
Mas, se por um lado há uma engrenagem de moer gente e um poder econômico que coloca indivíduos reféns a lógica do crescimento a qualquer sacrifício humano e planetário, há também um copo meio cheio formado pela resistência a tudo isso. Existe um movimento no qual pessoas simplesmente deixam de trabalhar para viver. Parece contraditório, surreal e sim, a maioria de nós trabalha por que precisa e ponto. Mas aqui estamos falando que existe uma narrativa potente sobre o significado do trabalho a ser superada. As amarras mentais disseminadas por séculos em frases como “O trabalho dignifica o homem” ou ainda “Basta trabalhar duro para conquistar as coisas”, fizeram muitos estragos em todos nós. Meritocracia misturada com propósito e uma pitada de empreendedor de si mesmo, pode te levar ao inferno e levar a glória para o patrão que, sem você saber, pode até ser um algorítmo.
Essa transformação no sentido do trabalho pode vir com mais intensidade para os jovens. Eles vivem a crise de futuro com o trabalho e podem ser os mais afetados por tudo isso. Vem de baixo para cima a percepção de que não faz muito sentido trabalhar em algo que não gosta para conquistar as coisas. E mais, ganhar pouco, e ainda sustentar uma lógica em que uns terão mais à custas de outros, e no final de tudo, o planeta está derretendo pelo PIB que precisa crescer. Ou seja, o jovem vai pagar a conta de um planeta em colapso e de um mundo sem emprego com a tecnologia fazendo as tarefas humanas. Talvez ele não queira isso hoje, como relata o estudante Thomaz Alves, de 20 anos.
“Olha, um trampo ideal para mim é um lugar que primeiramente eu goste de fazer as coisas. Eu priorizo mais isso do que quanto dinheiro vou ganhar. Isso para mim é o principal. E um trabalho que não tenha uma carga muito pesada e consiga trabalhar o psicológico. Hoje eu preciso estudar e me dedicar, e mais pra frente eu gostaria de ter liberdade e ter meu próprio negócio.”
A visão de equilíbrio do trabalho de um jovem entra em conflito com a lógica de episódios de trabalho extenuante para muitos adultos. Saúde mental e suicídio são temas presentes nas corporações que buscam mudanças em suas estruturas defasadas e cheias de hierarquia. O LinkedIn é palco desse debate. De fato, inclusão e diversidade nas equipes, assim como mais autonomia para as pessoas é a ordem do dia, mas o buraco segue lá embaixo, ou melhor, lá atrás no passado. Sejam empresas ou trabalhadores, todos seguem a anos luz de um trabalho mais conectado com as aspirações humanas e condizentes com nossa época. Segundo o futurologista Carlos Piazza, estamos na 5ª revolução industrial enquanto as organizações ainda seguem padrões no século passado.
“A visão fordista das empresas ainda atrapalha demais a percepção real do local e do tempo exato de onde estamos agora. Estamos vivendo a 5ª Revolução Industrial, uma convergência homem/máquina, cada um trabalhando em seu melhor. Mas ainda permanece a visão “curtoprazista” patológica das empresas, pautando trimestres, tentando tirar tudo no curto prazo e deixando as mazelas para longo prazo.”
Piazza acredita que a internet e as tecnologias impactaram – e seguirão impactando – de tal maneira nossa relação com o trabalho que no futuro o trabalho deve se voltar para subjetividades mais humanas. “O retorno à humanidade é o resultado das máquinas empurrando o ser humano para o lugar pelo qual ele nunca deveria ter saído: o fato de ser tão somente humano. Nossa única obrigação é ser feliz, nada mais. É preciso entregar para as máquinas tudo que amou fazer e no lugar disso entender definitivamente que a vida não é algo que se tem que ganhar. Muitos perdem ao querer ganhar.”
A perspectiva parece ser um colírio para os olhos e faz o copo ficar cheio novamente, mas a realidade ainda impera, e no Brasil, é ainda mais perversa com os mais vulneráveis, reféns da falta de políticas públicas do Estado que inclua os que mais sofrem com a desigualdade. O último país a abolir a escravidão no mundo também não fez inclusão dos trabalhadores negros, que permaneceram sem condição de escolha até hoje. Eles não tem o poder de escolha do Thomaz e nem podem esperar o futuro de esperança do Piazza chegar. São os mais pobres que sofrem mais e que não podem escolher para além de um prato de comida, como relata Rafael Graça, 35 anos, trabalhador registrado que conseguiu fugir de informalidade e ter a segurança garantida pela carteira de trabalho.
“Eu não tinha garantia de trabalho nenhum dos pedreiros para quem trabalhava de bico. Em caso de acidente era ruim para manter a alimentação da família. Eu prefiro estabilidade da carteira assinada da firma para poder escolher o que vamos comer e conseguir pagar as contas. Só mexemos no salário para roupas e passeios. É bem melhor que autônomo, ainda posso fazer os bicos de final de semana.”
Rafael é parte da população que precisa de garantias e direitos sociais advindas do trabalho formal mas que encontra cada vez menos esse tipo de emprego. O país já tem metade da força de trabalho na informalidade e a tendência é que vai crescer. A precariedade sempre fez parte da vida dos mais pobres e a “sevirologia” nas periferias veio muito antes da palavra empreendedorismo existir. O vai e vem, entre emprego e bico é estruturante, como afirma Natália Di Ciero Leme, gerente de programas da Fundação Arymax, coordenadora do estudo sobre Retrato do Trabalho Informal no Brasil, desafios e caminhos de solução. “A presença da informalidade não é algo recente ou inusitado. Ela acompanha o Brasil já no início da formação do seu mercado de trabalho e divide as ocupações em extratos de qualidades distintas, desde situações de subsistência e alta vulnerabilidade, cada vez mais comuns, até ocupações bem remuneradas e protegidas”. Natália afirma ainda que a formalidade e a informalidade se alternam em períodos de crise econômica. O estudo aponta para quatro tipos no Brasil e as possíveis soluções em inclusão produtiva para cada perfil. A publicação constata como o avanço do padrão tecnológico e do sistema produtivo poupa a mão de obra e não cria novas ocupações e também como a pressão por redução de custos e o aumento da produtividade tem impulsionado a adoção de práticas de ocupações em que existe a “informalização da formalidade”.
Entre copos meio cheios ou meio vazios, empregos formais ou informais, passado e futuro, o trabalho e seu sentido se moldam e seguirão transformando nossas vidas. Não cabe perguntar quais as profissões do futuro e sim como será o trabalho no futuro que queremos. Talvez ainda estamos perdidos na transição entre algo que não morreu e o que ainda não nasceu. O importante é refletir sobre o sentido que as pessoas buscam em fazer algo e não o que o sistema quer que façamos. A tecnologia é algo criado por humanos e mesmo que nossa realidade seja atravessada por algorítmos, ainda resta o lado humano frente a máquina de fazer sentidos do capital. Os sem carteira e sem identidade de hoje serão os agentes econômicos e sociais do futuro. O trabalhador brasileiro seguirá buscando alternativas e sentidos entre empreender por necessidade ou precarizar-se por subsistência. No meio da deriva e em busca de renda e de identidade no mundo de likes, todos perseguem também a realização, a autonomia, o dinheiro, a segurança, a estabilidade e a liberdade. O trabalho pode entregar tudo isso.