Muitos pensam nos carros elétricos como alternativa verde para o transporte de pessoas. E é fácil entender os atrativos. Realmente, eles são menos poluentes que veículos a combustão, e oferecem um horizonte de conforto individual em cidades urbanas. Mas a necessidade de produzir energia elétrica adicional para a demanda dos carros, a constante expansão do tamanho das cidades em consequência dos veículos individuais, e o direcionamento de recursos que poderiam ser investidos em outras opções de transporte, tornam os carros elétricos “lobos em pele de cordeiro”. Longe de uma panaceia, arriscam diluir a luta ambiental.
Desde a virada do século 20, carros são símbolos de modernidade, velocidade e liberdade individualista. Segundo o renomado sociólogo David Gartman, em nenhum país isso se deu com tanta força como nos Estados Unidos. “O automóvel há muito deixou de ser um veículo para transportar passageiros daqui para lá, e tornou-se uma personificação dos sonhos e desejos americanos – por liberdade, progresso, individualidade.” Diz ele em estudo. Mas esse universo de promessas mascara um problema muito grave. Segundo o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU) cerca de 20% das emissões de gases do efeito estufa no mundo se devem a veículos a combustão.
A indústria automobilística, recentemente, começou a prometer uma solução para os problemas que ela mesma ajudou a criar. Carros elétricos aparecem como panacéia. A energia que os move pode vir de fontes limpas, em teoria reduzindo a pegada de carbono. Além disso, prometem ser mais rápidos, confortáveis e seguros. Mas assim como na virada do século XX, aqui também se escondem algumas consequências.
Corrida do lítio
Em primeiro lugar, as baterias de carros elétricos necessitam de lítio, um minério extraído de forma extrativista. No presente, apesar de existirem grandes reservas de lítio, não há minas operando o suficiente para prover toda essa demanda. E construir novas minas para extrair mais lítio poderia tomar tempo. Segundo estudo da analista de dados Hannah Ritchie “Atualmente, o mundo não tem capacidade de produção em operações de mineração para atingir esse nível. E o problema é que o tempo mínimo para construir minas de lítio é de quatro a cinco anos”. Considerando a urgência da questão climática, é válido perguntar se temos o luxo de esperar esse tempo.
Além disso, as baterias de lítio possuem uma vida útil e precisam ser trocadas a partir de 15 anos depois do primeiro uso. Isso pode parecer bastante, mas significa que o problema de extração de lítio tende a ser permanente. Sempre haverá a necessidade de se extrair mais lítio. Reciclar as baterias também é um processo muito custoso, a ponto de hoje apenas 1% do lítio de baterias ser reciclado. Isso posto, é sempre possível que a indústria inove. Que descubra alguma tecnologia nova capaz de substituir o lítio de forma eficiente, ou formas mais baratas de reciclá-lo. Mas até lá, um futuro de carros elétricos para todos pode ser apenas uma fantasia (e produto de consumo).
A energia que nos move
Mas mesmo que a indústria encontre formas de prover a demanda, a transição para carros elétricos necessitaria de um aumento significativo na produção de energia. Segundo o grupo de análises e pesquisa, USA Facts, este aumento deve representar algo entre 20% e 50% da energia para promover a transição nos Estados Unidos. Lá, segundo fontes oficiais, a matriz elétrica é 60% dependente de combustíveis fósseis. Uma expansão na demanda elétrica precisaria corresponder a um aumento na participação de fontes limpas e renováveis na matriz. Apesar de ocorrerem alguns ganhos neste sentido, muito mais precisaria ser feito para garantir fontes limpas de energia para os carros elétricos. Segundo relatório de 2022 das Organizações das Nações Unidas, apesar de algum progresso tímido, “a transição energética global que o mundo esperava simplesmente não está acontecendo.”
Mesmo no Brasil a questão é um problema. Atualmente, no Brasil, boa parte da matriz elétrica vem de fontes relativamente limpas, principalmente a hidráulica. Mas com as secas (possivelmente amplificadas pelo aquecimento global), mais usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis estão sendo construídas. Entre 2020 e 2021, por exemplo, as emissões de gases de efeito estufa de usinas termelétricas cresceram 75% para suprir o aumento da demanda de energia elétrica no Brasil. Segundo estudo do IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente) com esse aumento “a participação de fontes fósseis para geração de eletricidade no Brasil passou de 15%, (…) para 20%”. Um consumo maior de energia elétrica, a partir de carros elétricos, por exemplo, poderia significar mais tensão em um sistema que já não dá conta de prover de forma sustentável.
E não há “solução mágica” no horizonte. Hidrogênio verde, por exemplo, é uma fonte secundária de energia, conforme guia explicativo da empresa pública EPE (Empresa de Pesquisa Energética). Isso significa que ainda precisa ser gerado a partir de outras fontes de energia elétrica. E cada forma primária de produção de eletricidade contém seus desafios. Por exemplo, a biomassa que compõe uma fração relevante da energia elétrica em São Paulo, requer áreas para plantio de matéria orgânica, o que pode contribuir para a degradação ambiental, conforme estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Não se trata aqui de desmerecer a geração de energia limpa. Segundo o estudo supracitado da ONU, a transição energética será fundamental se quisermos sobreviver às mudanças climáticas. Trata-se, antes, de reconhecer que produzir energia de forma sustentável não é algo simples ou fácil. Em um cenário assim,”soluções” que aumentem o consumo de energia podem não ser condizentes com o desafio que a crise climática representa.
Teremos espaço o bastante?
Mesmo se houvesse lítio e energia o bastante para que carros fossem utilizados por todos os usuários, ainda seria válido perguntar: será que nós queremos e precisamos de mais carros nas ruas? Um dos maiores problemas dos carros tem haver com espaço, e isso pode ser mais determinante do que pensamos. Segundo pesquisa da CET em 2011 a média de passageiros por carro em São Paulo era de 1,4. Ou seja, dos 5 lugares que um carro poderia transportar, a maior parte do espaço estava vazio, ocupando as ruas. Nesse sentido, o contraste é grande quando consideradas outras alternativas. Ônibus, por exemplo, segundo estudo do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento) carregam em média 15 vezes mais pessoas em um mesmo espaço.
Essa necessidade de editar espaço afeta como as cidades se desenvolvem. Segundo estudo do Laboratório Quadro do Paisagismo (Lab Quapá) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o crescimento das cidades grandes priorizou o uso de carros. “O sistema viário era concebido exclusivamente para a circulação de veículos automotivos, sem incluir pedestres e bicicletas”, explica parte do estudo. Isso significa um desenvolvimento com espaços viários grandes o bastante para caber este grande volume de carros, com destaque para a criação de viadutos em cidades como São Paulo. Carros elétricos não resolvem essas questões. Sim, podem poluir menos, mas continuam fazendo parte de uma lógica de expansão desenfreada das cidades.
Metrô, ônibus e cidades de 15 minutos
Outras soluções poderiam utilizar o espaço de maneira mais inteligente. A proposta das “cidades de 15 minutos“, do pesquisador franco-colombiano Carlos Moreno, por exemplo, propõe pensarmos as cidades do ponto de vista dos pedestres, de forma a diminuir as distâncias necessárias e aproveitar os espaços de maneira mais eficiente. Cidades assim não teriam muitos carros. Não precisariam de carros. A proposta é que seja mais cômodo apenas andar ou pedalar de bicicleta (evidentemente, com transportes e adaptações para garantir o acesso a pessoas com deficiência). Este ideal é em partes alcançado em algumas cidades e ecovilas no Brasil. Ricardo Miura, por exemplo, mora em uma ecovila em Piracanga, na Bahia, e hoje considera vender o seu carro. “Prezo muito a ideia de liberdade, e nesse ponto, o carro que teoricamente traria essa ideia, acaba sendo mais um entrave” comenta Ricardo.
Uma das principais barreiras a esta forma de organização são os próprios carros. Afinal, como demonstrado, as cidades e os espaços urbanos foram pensados ao redor deles. Como comenta o cicloativista paulistano Renato Ribeiro “substituir o carro particular que consome gasolina ou diesel não resolve o problema do trânsito. A impulsão elétrica poderia gerar bons resultados no transporte coletivo em massa”. Afirma Renato.
Outras soluções como transporte coletivo (ônibus, trem de superfície, metrôs, bondes elétricos etc) poderiam garantir o deslocamento de maneira eficiente e com menores emissões de poluentes. Mas, novamente, o uso desses modais é desafiado, e de certa forma impedido, pelos próprios carros. Seja de forma direta, como nos congestionamentos causados por veículos individuais, ou de maneira indireta com maiores distâncias tendo sido parte do desenvolvimento das cidades para acomodar o espaço dos carros.
Dinheiro verde
No fim, os carros podem não ser a solução que aparentam. Sob a promessa de modernidade, velocidade e liberdade individualista, alimentam indústrias bilionárias e prejudicam o desenvolvimento sustentável das cidades. Este modelo recebe, ainda, aportes e investimentos públicos por ser considerado “alternativa verde”. Por exemplo, em agosto de 2022, a gestão do presidente dos Estados Unidos Joe Biden aprovou a cifra de 2,8 bilhões de dólares para a fabricação de baterias elétricas (principalmente para carros elétricos). O valor é apenas um exemplo, que não inclui outros aportes bilionários, tanto a nível federal quanto dos estados, para a chamada “eletrificação” dos veículos automotores dos Estados Unidos.
As propostas sempre se baseiam na ideia de que veículos elétricos poderiam resolver as emissões de gases do efeito estufa. Mas estes valores poderiam ser melhor investidos em outras soluções (como metrô, ônibus e bicicletas). Além disso, na prática, os investimentos públicos em carros elétricos incentivam as pessoas, e mesmo o planejamento das cidades, a se prenderem aos carros, e não a outros modais. Afinal, o governo do país mais rico do mundo está indicando que seria uma saída aceitável para o aquecimento global.
Os Estados Unidos não estão sozinhos nestas posturas. A cidade de São Paulo, desde o começo de 2023, oferece um desconto de 50% no IPVA de veículos elétricos e híbridos. O governador Tarcísio Freitas anunciou intenção de expandir o desconto em uma isenção total do imposto no estado inteiro. Tampouco trata-se de tendência exclusiva de alguma ala política. A atual gestão do governo Lula demonstra intenção em investir em produção de carros elétricos no Brasil. Em qualquer caso, seja a partir da perda de arrecadação de valores, ou no investimento direto, tem-se a perda de recursos que poderiam ser investidos em outras soluções para reduzir as emissões de poluentes do efeito estufa.
Em última análise os carros elétricos podem ser entendidos como uma tentativa do capitalismo industrial moderno de abarcar a pauta climática. Uma saída para os problemas da industrialização e expansão das cidades. As fabricantes de carros, em postura em teoria alinhada aos ESGs (objetivos da ONU de justiça ambiental e social e de governança), recebem verbas para solucionar um problema do qual fazem parte. Mas não há sentido em falar de ESGs enquanto grande parte da população é obrigada a passar horas no trânsito em ônibus ou metrô, questão, como exposto, que se deve em grande parte à própria presença dos carros (elétricos ou não). Ainda mais, os carros elétricos representam a ideia de que todos os problemas podem ser resolvidos a partir do consumo individual de um novo produto moderno. O “cavalo de Tróia” trás para o centro das questões climáticas uma “alternativa” que poderia atrasar a implementação de outras soluções mais efetivas. Talvez, mascare uma pílula difícil para parte dos governos e da população engolir: se quisermos sobreviver às mudanças climáticas, poderemos ter que desistir dos carros como um dos principais meios de transporte individual.