O impacto dos Yanomamis

Os Yanomamis resistem, celebram e constroem sua autonomia. Nos 30 anos da homologação de suas terras, comemoram a rota de ecoturismo na maior montanha do Brasil e se armam de saberes ancestrais contra o garimpo. Conheça e aventure-se no interior da Amazônia a partir expedição rumo ao Yaripo e deixe-se impactar pela magia Yanomami.

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 EXCLUSIVO: Expedição Yaripo 

Toda ação humana gera impacto. Seja positivo ou negativo, nossas pegadas deixam rastros e não há como não interferir no planeta. Surgimos e impactamos o espaço e os seres que nos cercam. Existir é a própria razão de ser e conviver com os outros.
Mas, e quando nos esquecemos de algo tão simples? O que é preciso fazer para se reconectar e recobrar a consciência? Como impactar a mente e fazê-la pensar?
Enquanto essa inquietação me levava para longe de casa, sobrevoando a maior floresta do mundo, o impacto já acontecia. Seja pelo CO2 do combustível,  pela fotossíntese da floresta ou pelo futuro impacto que os anfitriões iriam me causar com seus ensinamentos.
Sabia que voltaria ressignificado após 10 dias. Era dia 28 de março e eu participava da expedição da retomada ao Yaripo, ou o Pico da Neblina. Um projeto de Ecoturismo desenhado pelos Yanomamis que acabava de reabrir a rota na selva.
O turismo no local ficou proibido por 20 anos. A entrada de visitantes estava fechada desde 2003, quando o Ministério Público proibiu a visitação ao Parque Nacional. Assim como hoje, a ganância pelo ouro invadiu a terra Yanomami e causou destruição e violações.
Após o trabalho coletivo entre os Yanomamis e diversas organizações como AYRCA, ISA, ICMBIO, FUNAI, entre outros, um plano de visitação foi aprovado e, no início de 2022, finalmente as portas do monte sagrado se abriram ao ecoturismo sustentável. Isso ampliou a expectativa dos anfitriões e de nós, visitantes. E, a partir de agora, divido as experiências e aprendizados de impacto socioambiental no país Yanomami ao lado dos guardiões da floresta e na luta contra um tipo de pensamento que aprisiona a todos nós.
 
 
A CABEÇA PENSA ONDE OS PÉS PISAM

A experiência em campo pelo interior da Amazônia e a conexão com os Yanomamis sob intensa provação do modo de vida ocidental, me fizeram abrir os olhos e refletir sobre palavras como sustentabilidade e meio ambiente. Conceitos criados por quem não cresceu na floresta. A intensidade da expedição traz dores físicas e outros pensamentos. O terreno acidentado, mudanças de clima, a região inóspita e chuvas torrenciais, além das condições limitadas de alimentação e refúgio, fazem a nossa mente perceber outra realidade. Os 2.995 metros de altitude e 70 km só podem ser superados com (e graças aos) Yanomamis. A humildade perante a selva e a montanha são pré-requisitos e os protetores da floresta são os guias para quem busca conhecer e se conectar com algo mais profundo que uma trilha exótica no meio da floresta amazônica.

A Aupa estava presente na expedição, representada por mim. Ao lado da equipe do Fantástico (TV Globo) com os jornalistas Sônia Bridi e Paulo Zero, e também geólogos, indigenistas, montanhistas e guias de aventura, formamos o grupo de visitantes da segunda equipe da retomada. No total, éramos 37, 13 visitantes e 24 yanomamis. A primeira turma havia caminhado há uma semana, mas das 10 pessoas, 3 desistiram no segundo dia da trilha. Fatores como desidratação, pouco preparo físico e mental, podem fazer montanhistas experientes desistirem no caminho. Nossa expedição começou dia 2 de abril, após dois dias de aclimatação na Cabeça do Cachorro, como é conhecida a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Nos 10 dias seguintes não havia mais conexão com celular e um comboio de Jipes Bandeirante levou a equipe para dentro da floresta. Após cruzar a linha do Equador e percorrer cerca de três horas de estrada de barro, a expedição chegou no Igarapé Ya Mirim, onde voadeiras nos esperavam. A partir daquele ponto, eram mais 5 horas pelas estradas fluviais da Amazônia até a aldeia de Maturacá, local que os Yanomamis acolhem os turistas. Foi a primeira noite que dormí em rede, na sede da Associação AYRCA, e o impacto e a transformação começaram dentro de cada um de nós.

“A visitação é uma atividade com potencial de impactar positivamente as comunidades Yanomami, como alternativa de geração de renda sustentável, em contraponto ao garimpo, além de valorizar a cultura e o modo de vida tradicional dos povos indígenas e proporcionar inclusão de gênero e geracional.”  Luciana Uehara, coordenadora do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade Parque Nacional do Pico da Neblina

 O CAMINHO É MAIS IMPORTANTE QUE O CUME

O primeiro dia de caminhada durou cerca de 5 horas e uma distância de 8km até o  acampamento. Nos dias seguintes, trilhamos a média de 7 horas e 9km. O Cume estava a 5 dias de distância e havia pouco espaço para desistência, pois isso atrapalharia o grupo. A tensão estava entre nós, mas a segurança com eles, os Yanomamis. É instigante sentir como a dificuldade estava conosco e não com eles. Adversidades como dormir em redes, tomar banho frio nos rios, caminhar longos períodos ou não almoçar, são capazes de mudar percepções de vida. A privação é um ensinamento em si e o impacto de perceber o quanto estamos despreparados em relação à eles, mostra como vivemos separados da sustentabilidade que acreditamos. 

A sensação é de desconexão com a natureza, às vezes cultuada em embalagens recicladas. O modo de vida confortável das cidades traz conforto e também ilusões. A idealização da sustentabilidade que perseguimos até 2030 parece estar longe da solução climática dentro do ecossistema da própria selva. Enquanto debatemos sobre o carbono e o transformamos em mercado, os Yanomamis protegem a Floresta. Parece uma tela surrealista entre dois mundos em conflito. E qual solução será melhor? Vai depender do que idealizamos e queremos.

 

O choque cultural entre o meu mundo feito de sofá sustentável e o dos Yanomamis é um segundo ensinamento. Certo estranhamento entre nós e eles fazem parte da trilha rumo ao monte sagrado. Nos primeiros dias, o jantar foi feito em local e hora separados. Olhares entre indígenas e visitantes se cruzavam desconfiados. Também dormimos em estruturas de acampamento separadas e a troca era limitada. A sensação de Casa Grande e Senzala me veio à cabeça, mas o tempo foi desfazendo essa imagem e o caminho me ensinando e nos aproximando. 

Andar juntos é mais importante que chegar ao cume. Os Yanomamis que nos acompanhavam estavam lá para nos ensinar isso. São os porta-vozes das plantas e dos animais. Nos apresentam e nos convidam a entender como se reconectar com a natureza, com eles e com nós mesmos. O conhecimento da selva é espiritual e ancestral. Eles nos contam sobre seus antepassados. Falam cantando, conversam e dão risadas antes de dormir. Colhem folhas, frutos e cogumelos nativos. Pescam e caçam. Mandioca, banana e água amarela do rio fazem parte da dieta. Ainda encontram ovos de cor turquesa e recolhem breu branco durante o dia para acender o fogo vermelho que cozinha os alimentos e aquece a noite. Na hora de dormir, o que no início era um leve incômodo em razão do ruído e risos yanomamis, se transformou em sorriso em meu próprio rosto. Dormi melhor a cada noite ao perceber como a felicidade pode ser simples, como o fato de rir antes de dormir, e mais eficaz que tomar um ansiolítico para relaxar. Sem perceber, fomos aprendendo e sendo impactados pelo modo de vida deles.

“nosso povo yanonami tem a floresta viva. isso significa vida saudável, sem doenças nas comunidades. caçamos, pescamos, trabalhamos e colhemos frutos da floresta. enquanto estamos na selva, fazemos fogueiras para assar peixe, carne de caça e para nos aquecer. a quentura do fogo nos protege contra as doenças da mata”

José Mario Pereira Goes  
Presidente da AYRCA – Associação Yanonami do Rio Cauaburis e Afluentes
Yanomamis preparam refeição que incluía peixes, cogumelos, frutos colhidos na trilha

A LUTA CONTRA NOSSO MODO DE VER O MUNDO

Minha bota começou a rasgar no terceiro dia. A umidade da selva, o uso intenso e certo grau de negligência, me colocaram em risco. Não tinha botas reserva, e não existia outra alternativa que não fosse buscar uma solução local para o risco não planejado. Ouvi histórias de quem teve que voltar ou perdeu todas as unhas do pé por usar botas inadequadas. Estava tenso. Mas, depois de dividir o problema e conseguir ajuda alheia, consegui remendar a bota com linhas de nylon e travas de plástico. Me tornei costureiro amador e cheguei ao final. Trouxe as botas como forma de relíquia e símbolo da adaptação ao risco e transformei o par em vaso de planta na Serra da Mantiqueira.
 

Risco é uma palavra em alta hoje. Talvez porque estamos sujeitos a mais riscos ou por ser uma palavra atrelada à investimento. No vocabulário atual ainda se fala muito sobre retorno, propósito, causa, sustentabilidade, impacto socioambiental, empreendedorismo e outras tantas palavras positivas. Falamos e vemos o mundo que acreditamos ser bom talvez porque o mundo não esteja tão bom assim. 

Até a Amazônia virou hit, # e palavra chave no SEO do Google. Seguimos criando abstrações para tudo e tudo cabe para mudarmos o mundo e sermos felizes. Afinal, de fato, tudo pode ter realmente seu lado bom. Não há problema em fazer limonada com limão, o problema é achar que limão é ruim e que só podemos fazer limonada com o fruto. É limitante, mas também característico de nossa época. Buscamos satisfação e exigimos o melhor que a vida pode nos dar. E, se possível, sem risco. Nosso modo de vida e pensar prefere uma escolha sem renúncia, mas a realidade diz que fazer uma coisa necessariamente condiciona à outra.

Construímos um mundo sem perrengues para nós, mas suportamos o perrengue alheio com abstrações e ilusões que nos fazem sentir melhor. Pergunte a um Yanomami sobre a importância do investimento ASG (baseado nos fatores Ambiental, Social e de Governança) e ele vai te devolver a pergunta. Não por que não sabem o significado da sigla, mas por não compreenderem a pergunta sobre a importância de cuidar do lugar onde se vive e de fazer a coisa certa com os outros. É tão óbvio quanto espiritual para eles.

Os Yanomamis enxergam o mundo de outro jeito em comparação ao nosso. O sonho e a oratória são fundamentais em sua cultura. A ancestralidade e o bem viver se conectam com o entorno de forma mística. Rivalizam com nossa racionalidade, criatividade e satisfação. Naturalmente, ambos podem coexistir e aprender. Foi assim antes, e provavelmente seguirá. Os povos e culturas se moldam entre si em uma metamorfose orgânica cultural. A própria atividade turística proposta pelos Yanomamis e pela qual vivenciei uma experiência e transformação, é prova dessa simbiose entre modos de pensar. E uma reflexão não sai da minha cabeça após a ebulição mental que senti com a vivência depois de subir o Yaripo: não é um grande risco imaginarmos uma Amazônia que não é real? seria uma oportunidade em forma de abstração de impacto movido à investimento sustentável? o impacto socioambiental positivo que acreditamos, medimos, embalamos e consumimos, é o mesmo dos Yanomamis ou de quem vive na Floresta? Não tenho a resposta, mas a Amazônia que senti em meus pés é real. Terra sagrada para os Yanomamis e cheia de minérios e desejos que despertam nossa cobiça ou nossa fantasia.
 

O IMPACTO REAL

De volta à São Paulo e ao modo de vida vigente, comprei um risoto delicioso no supermercado. Meu corpo e mente foram novamente tragados pelas comodidades e desejos tão bem desenhados, pensados e criados por meus conterrâneos da civilização. A tentação é fácil e confortável como um sofá sustentável. Não é contraditório questionar o sistema e viver dentro dele. Aceitar e negociar não significa endossar a realidade imposta. É uma questão de tática e sobrevivência física e mental ter consciência e tomar a pílula certa. A maioria de nós, irá experimentar a pílula azul e vermelha da matrix muitas vezes durante a vida, a depender do grau de nossa inquietação. Mas voltando ao risoto. Era feito de shimeji yanomami colhido de forma sustentável  por uma empresa ética e certificada em cooperação com uma associação indígena local. Estava ótimo e acompanhei com um bom vinho tinto. Esses Yanomamis vivem despertando a nossa consciência.

Os dados da expedição foram realizados pelo geólogo Luiz A P Souza @laps_photosandphotos/

As viagens ao Yaripo são promovidas em parceria com operadoras de turismo e são 3 as empresas credenciadas para realizar as expedições. A Aupa contratou e esteve com a Ambiental Turismo. @ambiental_turismo/

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