Os desafios socioambientais nas periferias de cidades grandes são muitos. Falta de espaços verdes, dificuldade para comprar alimentos sustentáveis, grandes distâncias entre emprego e trabalho, entre outros. São problemas antigos que perpassam diversas gestões e gerações, muitos deles causados, em parte, pela própria ação conjunta entre entes públicos e privados. Para solucioná-los, no entanto, as posturas oficiais são insuficientes. Sobra para organizações autônomas buscarem formas de preencher o vácuo, a partir das realidades das próprias pessoas, de baixo para cima e das periferias para o centro.

 

Tem gente com fome

Um dos maiores problemas socioambientais no Brasil é a fome. Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), quase 60% dos brasileiros passam por algum grau de insegurança alimentar. Além disso, segundo o mesmo levantamento, a região Sudeste é a com maior contingente de pessoas que passam fome, com destaque para o estado de São Paulo, com 6,8 milhões de pessoas nessa condição. No centro do avanço da fome, está a alta no preço dos alimentos. Nos últimos 36 meses, os valores subiram em 37%

As razões para os preços altos são diversas. Mas uma delas, que recebe pouca repercussão, diz respeito à concentração fundiária no Brasil. Ocorre que, segundo levantamento da OXFAM Brasil, quase metade das terras pertencem a 1% da população, em regra para produção agressiva, geralmente em sistema de monocultura para a exportação, e com o uso de práticas muitas vezes insustentáveis. Pequenas propriedades, por outro lado, ocupam parcelas de terra muito menores e produzem cerca de 70% dos alimentos consumidos no país. Há pouca terra para a agricultura familiar e produção de alimentos no Brasil. 

E a competição por terra entre a pequena e grande propriedade é uma realidade. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, 2,2 milhões de postos de trabalho da agricultura familiar foram perdidos por conta da mecanização e do aumento da concentração fundiária. Isso ocorre, em parte, com apoio do governo, que parece priorizar a produção agrícola de larga escala para exportação. Apesar das condições de empréstimo público para pequenos produtores oferecerem taxas de juro um pouco mais baixas, a maioria dos créditos agrícolas (R$ 203 bi vs R$ 33 bi) são direcionados a médias e grandes propriedades (e não às pequenas que produzem a maior parte dos alimentos).

Segundo a opinião de pequenos agricultores, essa falta de cuidado e investimentos impacta negativamente o preço dos alimentos. “Com a queda drástica no investimento para o setor, já prevíamos que haveria um desabastecimento. Temos alertado isso desde 2017. Desde então, nós vimos a área produzida, a produtividade e os estoques públicos caírem. É a crônica de um desastre anunciado” avalia, em entrevista para o jornal Metrópole, o frei Sérgio Görgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ou seja, em suma, a ação de grandes fazendas privadas, em conjunto com a política pública de empréstimos, é um dos fatores que contribui para o avanço da fome no Brasil.

Movimentos contra a fome

O próprio MPA se esforça para mobilizar a produção agrícola em pequenas propriedades produtoras de alimentos. Agem contra a corrente para promover a alimentação no Brasil. A partir do projeto Plano Camponês, por exemplo, organizam a luta por uma política pública diferente, baseada em uma transição agroecológica, com uma agricultura com menos agrotóxicos, maior respeito pela natureza, e coordenada a movimentos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Para além da pressão política, organizam trocas, oficinas e cursos entre pequenos agricultores para fomentar a produção sustentável de alimentos. Ou seja, não apenas demandam ações do poder público, mas também mostram como a pequena agricultura poderia funcionar, da base para o topo.

Outro movimento que atua em sentido parecido é o MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra). A organização possui como missão histórica a luta pela reforma agrária. Isto é, pela redistribuição de terras agrícolas, no sentido de o problema da concentração fundiária que, como visto, impacta nos preços dos alimentos. Além de oficinas e mobilizações no campo pelos direitos dos pequenos agricultores, o movimento se consolida como o maior produtor de arroz orgânico na América Latina. Mas a luta enfrenta resistência de forças públicas e privadas. “Nos últimos 40 anos foram assassinados no campo quase 2 mil trabalhadores rurais, lideranças, jornalistas e deputados que apoiam a reforma agrária” comenta João Pedro Stédile, coordenador nacional do MST, em entrevista para o Canal UOL.

Nas cidades, também, coletivos se mobilizam por comida e pela natureza. É o caso, por exemplo, do Coletivo “Autonomia Zona Norte“. O grupo nasceu durante a pandemia da covid-19. É uma união entre o Coletivo Do Estradão, que há 5 anos cultiva uma floresta urbana na comunidade do Jardim Filhos da Terra – Serra Pelada; e o Coletivo Cestas ZN, grupo de consumo responsável e periférico. Entre as ações desenvolvidas pelo coletivo, está a promoção do plantio agroecológico e o oferecimento de cestas e almoços à população periférica. Assim buscam contribuir para promover a sustentabilidade e reduzir a fome na periferia da Zona Norte de São Paulo.

Outro exemplo de ação nascida na periferia contra a fome e por agricultura sustentável, é o restaurante vegano Da Quebrada. O local compra todos os seus insumos de iniciativas agroecológicas de periferia, utiliza integralmente os vegetais utilizados, além de oferecer treinamento gastronômico, responsável e justo, a mulheres de baixa renda de periferia, sempre de forma a priorizar o compromisso social sobre o lucro.

A natureza como produto

Outro grande problema socioambiental, especialmente em cidades grandes, se dá pelas temperaturas altas e oscilantes. Estas, também parecem fruto do formato de desenvolvimento e uso dos recursos públicos. As ilhas de calor, fenômeno ambiental que afeta cidades grandes como São Paulo, são um fenômeno urbano fruto de poucos espaços verdes e da poluição exacerbada. Em São Paulo, conforme análise da Revista de Geografia da USP (GEOUSP), o desenvolvimento da cidade priorizou áreas verdes em regiões de maior poder aquisitivo. “áreas [verdes] estão concentradas na zona central de São Paulo, sobretudo em áreas de melhores níveis socioeconômicos. Neste sentido, [o geógrafo Aziz] Ab`Sáber (2004b) relata a insuficiência de espaços verdes na periferia da metrópole paulista em contraste às áreas mais nobres “, diz trecho do artigo. Como visto, a ausência de áreas verdes intensifica o problema das ilhas de calor. Como a concentração delas está em áreas mais nobres, o problema ambiental acaba, também, afetando mais as pessoas mais pobres em periferias.

A concentração de áreas verdes ocorre, em parte, devido à especulação imobiliária. Segundo outro estudo do GEOUSP, na cidade “onde a natureza se torna rara (…)  o acesso a este ‘recurso’ [,as áreas verdes,] ou ‘bem’ se torna extremamente elitista e definido em função do poder econômico. A natureza, que deveria ser um valor de uso, se torna um valor de troca no mercado imobiliário. Desta forma, a natureza na cidade, para o mercado imobiliário, se torna apenas um atrativo financeiro”. Ou seja, os espaços verdes se tornam atrativos para vender imóveis de alto padrão. Aos mais pobres, que não podem pagar por este produto, parece restar a selva de pedra. 

Muito disso ocorreu com o auxílio de recursos públicos. Programas que deveriam auxiliar os mais pobres, como o “Minha Casa, Minha Vida”, por exemplo, podem ter sido desvirtuados e expandido a especulação imobiliária. É essa a  opinião de Ermínia Maricato, uma das mais experientes urbanistas do país e secretária executiva do Ministério das Cidades nos primeiros anos do governo Lula. “Tivemos um movimento imenso de obras, mas quem o comandou e definiu onde se localizariam não foi o governo federal, e sim interesses de proprietários imobiliários, incorporadores e empreiteiras”. 

Em São Paulo, o problema da especulação imobiliária continua atual, e reforçado pela ação do poder público. Nesta quinta, dia primeiro de junho, foi aprovado na Câmara Municipal da cidade, em primeira votação, a revisão do plano diretor estratégico, lei que determina diretrizes para o desenvolvimento urbano da cidade. A aprovação está sendo criticada por urbanistas e movimentos sociais. Principalmente por eles entenderem que o texto favorece a especulação imobiliária em detrimento da população mais pobre. Se esse for o caso, parece pouco provável que áreas verdes deixem de ser tratadas como um produto para os mais ricos. 

Resumindo o circuito que promove as ilhas de calor, projetos de moradia e a leniência da administração pública acabam por servir à especulação imobiliária que, por sua vez, agrava a concentração de áreas verdes em algumas áreas nobres, e prejudica o bem estar em regiões mais pobres. Ou seja, tem-se, novamente, a junção da ação pública e privada, no sentido de servir a um ideal de desenvolvimento urbano e econômico às custas da população pobre das periferias.

Esse mesmo desenvolvimento que priorizou a especulação imobiliária, também contribuiu para grandes distâncias entre trabalho e moradia, especialmente para a população mais pobre. Segundo estudo da USP (Universidade de São Paulo), em São Paulo, 70% das pessoas gastam mais de uma hora no trajeto entre residência e trabalho. Além disso, apenas 16% dos postos de trabalho com trajetos a menos de uma hora são ocupados pelas faixas com menor renda. Conforme fala em entrevista para a Revista Exame do professor pesquisador da USP Jaime Tadeu Oliva, que pesquisa sobre a temática,

“A cidade de São Paulo é muito espalhada e o estado não intervém para impedir a especulação imobiliária que encarece o centro. (…) A periferia fica cada vez mais distante.”

Aqui, novamente, a ação de coletivos de baixo para cima parece resistir. O Autonomia Zona Norte, por exemplo, Nasceu de uma floresta urbana, na periferia de São Paulo. O grupo cultiva os seus alimentos em sistema agroflorestal que auxilia na preservação de trecho de área verde de Mata Atlântica em região periférica. Além disso, realizam projetos como o POT (Programa Operação-Trabalho), que estimula pessoas de baixa renda desempregadas a buscarem emprego em iniciativas agroecológicas, inclusive mais próximas de seus locais de residência. Ou seja, lutam pela mudança a partir da base.

O público e o privado

Em resposta a esses problemas socioambientais, há iniciativas públicas para tentar dirimi-los. Mas as ações claramente não são o bastante. O que se pode constatar de uma maneira muito simples: a maioria desses problemas não são novos. Como visto, já desde 2004 o geógrafo Aziz Ab’Saber denunciava a concentração de espaços verdes em áreas nobres em São Paulo. Quanto à fome, apesar do problema recentemente ter se intensificado, a concentração fundiária que contribui para ela é uma questão de séculos de história, já presente desde a colonização e das “capitanias hereditárias”, estabelecidas em modelo de grande produção agrícola voltada para a exportação. A iniciativa pública, realmente, parece não dar conta de solucionar estes problemas. E no centro da ineficiência temos, mais uma vez, responsabilidade do governo em conjunto com grupos particulares.

Segundo relatório de 2010 do próprio Tribunal de Contas da União, é possível que fraudes em licitações entre o público e o privado, estejam no centro de boa parte da inércia pública em solucionar os problemas da população. “A Controladoria-Geral da União tem identificado que o principal tipo de corrupção na execução dos recursos públicos é a fraude em licitações e contratos, em geral com o uso de empresas inidôneas”, conclui o relatório. Desde o relatório medidas teriam sido tomadas para coibir futuras fraudes. Mas é possível que elas não tenham sido o suficiente. Por exemplo, em 2020 o Ministério Público acusou, em São Paulo, o que parecem ter sido fraudes nas licitações entre a capital do estado e as empresas privadas de ônibus da SPTrans. O valor do suposto ilícito poderia chegar a 1,8 bilhões de reais. A apuração da reportagem não conseguiu encontrar sanções resultantes dos processos. Vale lembrar que a questão da mobilidade urbana está no centro de como a população, especialmente nas periferias, se relacionam com a cidade. Inclusive com os espaços verdes.

Soluções de baixo para cima

Se o público e o privado falham em sanar os problemas das cidades, coletivos autônomos e populares se mobilizam para preencher o vácuo. Mas isso não significa, necessariamente, deixar de cobrar responsabilidade do poder público. É o que demonstra a ação de grupos como o “Perifa Sustentável“. O coletivo busca mobilizar a ação da juventude periférica, em favor de soluções capazes de atender às demandas das periferias brasileiras. Algumas das ações do grupo incluem mobilizar protestos, iniciativas de voluntariado e ações diretas da população organizada em nome de sustentabilidade social e ambiental. O grupo busca, entre seus propósitos, demandar ação do poder público. Mas não se trata de “confiar” que as instituições trarão as respostas por conta própria. E sim de cobrar e propor soluções efetivas para problemas que, no fundo, o próprio governo ajudou a criar.

É difícil superestimar o poder de ação e mobilização de iniciativas populares. São muitos coletivos autônomos dedicados em promover a mudança socioambiental de baixo para cima. E quando esses coletivos se unem, o potencial de mudança pode ser amplificado. Por exemplo, a Autonomia ZN recentemente promoveu a venda de suco de uva produzido pelo MST, grupo organizado por pequenos agricultores. Isso fortalece o poder desses produtores que, no Brasil, como demonstrado, produzem a maior parte dos alimentos. O Perifa Sustentável, por sua vez, recentemente aceitou um convite da ONG Greenpeace para participar de uma websérie sobre iniciativas sustentáveis. O Greenpeace possui grande tamanho e repercussão e, ao produzir materiais do tipo, ajuda a divulgar e amplificar o potencial de mudança de iniciativas menos conhecidas. Em ambos os casos, tem-se a construção entre grupos autônomos dedicados em lutar por mudanças a partir da base, de baixo para cima e das periferias para o centro.

Os problemas socioambientais no Brasil parecem seguir um padrão: foram criados, ao menos em parte, a partir da ação conjunta entre Estado e grandes grupos privados. A busca por soluções para os problemas socioambientais pode ter como ponto de partida as periferias e a população colocada em situação de carência. Há potencial de transformação eco-social em larga escala. Seja a partir de ações coordenadas entre vários projetos, ou mesmo a partir da cobrança e articulação com o poder público. Mas se não houver organização e pressão a partir da base, pode ser pouco provável que haja força política e social para promover as mudanças que o povo precisa. Se quisermos criar um mundo que funcione para todas e todos, precisamos ter algo claro em resposta aos grandes desafios: a solução está nas mãos da população.

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