Estar bem consigo mesmo pode ser algo simples de falar, mas complexo de alcançar. A dificuldade pode começar nas palavras. Todos queremos Viver Bem ou Bem Viver? É a mesma coisa? Não. Existe aqui uma diferença que vai muito além da ordem gramatical e da sintaxe da frase. Há um conceito por trás do Bem Viver e descobrir melhor o significado e as diferenças podem te levar para caminhos de felicidade bem distintos. A tão desejada plenitude pode depender do que a sua mente buscar. E é bom ficar atento, pois sua cabeça pode te trapacear.
Há quem prefira escolher uma carreira com propósito como a chave da plenitude e da satisfação pessoal. Ou ainda, há quem escolha a maternidade, uma casa na montanha e ter um cachorro, como ideais para ser feliz. O dinheiro, por exemplo, pode representar satisfação, conforto, poder e até solidão. E para complicar a equação do bem-estar e da felicidade, o sonho pode mudar a cada fase da vida e de acordo com as experiências e o ambiente ao redor. Como diz o ditado, a única certeza da vida é que ela muda. Logo, o conceito de bem-estar também pode ter mudado na sua mente e provocado transformações dentro de você. E isso pode ser um bom sinal.
Para compreender o Bem Viver é preciso olhar para dentro e perceber o que está fora. Isso te levará a entender melhor o conceito filosófico e exercitá-lo, por uma vida mais consciente e conectada consigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente em que vive. A diferença fundamental do lugar em que o “Bem” completa a frase está aqui. O Bem Viver está dentro de você e o Viver Bem está no externo. Você pode trabalhar em uma ONG, seguir páginas inspiracionais nas redes sociais, viajar para lugares incríveis, frequentar a academia, se alimentar de maneira saudável, plantar uma árvore, ter um filho e até escrever um livro. E tudo isso, sem dúvida, te proporcionará momentos de felicidade. Mas também podem trazer síndrome de burnout, síndrome do pânico, depressão e crises de ansiedade. Como? A sua mente pode explicar.
Para entender melhor, enxergue as mulheres
O mundo presenciou um grande trauma coletivo com a pandemia. Além das milhares de vidas perdidas, as pessoas adoeceram psicologicamente e a saúde mental passou a ser um assunto relevante na sociedade. Segundo a OMS, o Brasil é o país que tem mais pessoas com sintomas de ansiedade no mundo e, em especial, as mulheres. Esses transtornos são potencialmente maiores para elas em razão das desigualdades de gênero que transpassam nossa cultura e sociedade. Muitas mulheres buscam tratamento nos consultórios de terapia, pelos sofrimentos enfrentados no dia a dia, como relata a psicológa Anna Luisa Frimm.
“A mulher, infelizmente na nossa cultura, ainda se encontra em desvantagem em relação ao homem. É comum elas se queixarem de uma sobrecarga em relação a organização da vida familiar. Assim, vivem estressadas, ansiosas, relatam dificuldades para “desligar”, curtir o momento presente. estão sempre com pressa, procurando conciliar os afazeres da vida moderna, criação dos filhos, organização da casa, e o trabalho.”
Por isso, uma simples viagem para desfrutrar com a família pode ser feliz e ao mesmo tempo estressante. Por que? Há possibilidade de trazer bons momentos, mas também um gatilho de burnout para elas. Pode significar mais trabalho para preparar as atividades, responsabilidades de zelar pelo conforto e segurança da família e, claro mais ansiedade. O julgamento sobre o cuidado dos pequenos, por exemplo, sempre recai mais sobre elas. Afinal, é papel da mãe cuidar e do pai prover, não? Não, mas a maioria acredita que sim e essa sobrecarga da maternidade sobre as mulheres acaba gerando culpa e preocupação. A pandemia desnudou as desigualdades fora e também dentro de casa. Muitos conflitos, separações e feminicídios vieram à tona na medida que a cultura patriarcal cobrou ainda mais os papéis femininos. “Os transtornos de ansiedade são de certa forma, um reflexo de nossos tempos. A mensagem implícita é: trabalhe muito, seja excelente profissional, mãe presente, esposa carinhosa e não esqueçam de cuidar de si mesma”, afirma Anna.
Por essa razão, uma das formas de entender a diferença entre o Bem Viver e o Viver Bem acontece por compreender a desigualdade de gênero entre nós.
O Viver Bem não resolve o problema. Viver Bem pode estar na academia, no consumo, no trabalho. A busca por Viver Bem apenas alivia as tensões das mulheres. É preciso buscar um entendimento mais profundo sobre os fatores determinantes do sofrimento ou da má qualidade de vida delas. Não é algo que elas devam resolver sozinhas. Todos devem participar da solução, incluindo os homens que, querendo ou não, também herdaram essa dívida e são obrigados a enfrentar o problema, seja compreendendo o machismo, bem como desconstruindo-o. Isso é um dos preceitos do Bem Viver. Entender que todos têm os mesmos direitos – de fato – e compreender que os problemas e as soluções são coletivas, não individuais. Ou a sociedade busca fomentar a igualdade ou as minorias estão fadadas a conviver com a saúde mental abalada. É disso que se trata.
É uma ilusão confortável imaginar que a saúde mental é algo que depende somente de cada um. Uma teoria mais crítica da psicologia defende justamente que é a forma e o modelo como uma sociedade está estruturada, o grande responsável pelos males que vivemos. Assim como no caso das mulheres que sofrem mais, isso não se dá em razão de questões apenas biológicas, neurológicas, hormonais ou nutricionais. Sim, comer alimentos ricos em triptofano, como castanhas, queijos e ovos ajudam a liberar endorfina e o bem-estar, mas o que fazemos com os valores culturais cultivados entre nós? Não seria o patriarcado, por exemplo, e não o período menstrual, um importante causador da má qualidade de vida delas?
Sabemos que não basta respirar fundo para se acalmar e achar que o problema dos males do mundo são de ordem individual. São de todos. O mundo e o sistema até vão oferecer castanhas, ansiolíticos e opióides para atenuar as dores e as angústias causadas pela forma que vivemos, mas não tratarão a causa. Ou seja, o Viver Bem pode ser a solução para o sistema, mas talvez não para você. Muitos psicológos associam diversos transtornos mentais como bipolaridade ou outras novas patologias mentais como decorrência do próprio capitalismo. “Pobreza, desigualdade, estar sujeito ao racismo, ao sexismo, à demissão e à uma cultura competitiva, aumentam a probabilidade de sofrimento mental”, segundo Jay Watts. E Mark Fisher complementa dizendo que “o capitalismo alimenta e reproduz as oscilações de humor da população em um nível nunca antes visto em outro sistema social”. Mais uma vez, a pandemia não é causa. Apenas mostrou o nosso sistema gerador de desigualdade entre ricos e pobres e, portanto de ansiedade e infelicidade entre nós.
Ou seja, se você achou que bastava entender que não alcançaria a felicidade comprando um carro novo, saiba que o buraco é mais embaixo. É preciso outro grau de consciência para entender e buscar a paz espiritual e ter qualidade de vida. O Bem Viver é buscar essa consciência a partir de si, procurando compreender que fazemos parte de um todo, incluindo outros seres humanos e não humanos habitantes do planeta chamado Terra. Entendeu? Bem Viver é simples mas requer profundidade filosófica e espiritual. Um exercício da consciência que cobra a fatura sobre você no mundo.
“O Bem Viver – enquanto filosofia de vida – é um projeto libertador e tolerante. Sem preconceitos nem dogmas”. – Alberto Acosta
Não adianta largar tudo e viver com a roupa do corpo ou mudar para a Índia. O mundo globalizado é também o mundo desigual. O adoecimento mental, a crise climática, o racismo, a fome, a desigualdade social e os outros problemas sociais, também são dilemas éticos e políticos que influenciam o estado de espírito, aqui e em qualquer lugar. A ciência já comprovou que nós, os humanos, ao vermos nossos semelhantes em situações piores na qual nos encontramos, também sofremos. Há exceções, mas ser mal não é a regra. (O livro Humanidade de Rutger Bregman fala sobre isso). O que ocorre é que, em algumas situações, a mente normaliza o sofrimento para não sofrer intensamente. A mente prefere não ver alguém dormindo no frio na rua a acreditar no fato.
Mas, se você busca ampliar a consciência em busca de mais qualidade de vida, irá inevitavelmente se deparar com o sofrimento. Nesse momento, pode perceber como a fuga em busca do Viver Bem pode fazer mal para todos. O Viver Bem pode ser o mal-estar da civilização dessa era na medida que não nos deixa compreender o que precisamos como sociedade ser, para que todos tenham bem-estar. Sim, nossa mente foi educada e de certa maneira nos trapaceou. Ainda dá tempo de Bem Viver. Mais cedo ou mais tarde, praticaremos isso.
A busca coletiva do cada um por si
Se você fizer uma busca no Google, a palavra Bem Viver, o buscador apresentará vários apartamentos à venda. Não se engane, aqui é mais uma vez o sistema vendendo Viver Bem como Bem Viver para confundir o seu cérebro. Não caia nessa. É preciso pesquisar mais para entender o conceito e filosofia de vida do Bem Viver, ou Teko Porã, termo em Guarani que significa, literalmente, o “belo caminho”, do qual a palavra é originária. (O livro Bem Viver de Alberto Acosta aprofunda o assunto e a filosofia). É um modo de ver e viver dos indígenas da América andina que defende, que todos estamos conectados e devemos buscar harmonia com a natureza ao redor. É uma cosmovisão que se opõe ao desenvolvimento que destrói direitos humanos e direitos da natureza. Uma ideia que está dentro de todos nós, e que encontra consonância com pensamentos de outras culturas e pensamentos, mas que foi esquecida.
É possível enxergar esses preceitos no budismo e nas palavras de Dalai Lama: “É preciso sentir-se responsável pelos indivíduos, comunidades e povos que compõem a família humana como um todo”. Ou ainda nas frases de um dos seres humanos mais famosos do mundo, Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros”. O Bem Viver é um modo e uma forma enxergar a si, os outros e a natureza. Extrapola ideologias. É uma maneira de encontrar soluções socioambientais para problemas reais. Os negócios de impacto que não tem solidariedade e não resolvem dilemas éticos dentro do seu modelo de negócio são, nada mais, que soluções de mercado. Existe um desejo de mudança dentro do capitalismo, para que ele se torne mais consciente, igualitário ou menos desigual, mas parece que a vontade de mudança do mundo das pessoas não vai somente nessa direção. Vai em uma direção mais profunda e de autoconhecimento que gerará uma mudança coletiva planetária.
Existem teorias que indicam que se 30% da população buscar alcançar uma consciência genuína, o mundo é capaz de mudar. Ou seja, se 3 em cada 10 pessoas não se deixar enganar por mentes traiçoeiras do Viver Bem, conseguimos mudar o mundo. Segundo Dalai Lama: “Há um grande e crescente desejo de mudança no mundo: mudança que inaugura um compromisso renovado com os valores éticos e espirituais”. Será que o capitalismo tem consciência disso? Nós criamos o sistema que vivemos e nós que também podemos reformá-lo ou substitui-lo. Pode não ser simples e cheio de dificuldades, mas o primeiro passo é a consciência de cada um.
Há diversas formas de buscar essa consciência e o autoconhecimento é um caminho. Passa pelo alimento que comemos, pela roupa que vestimos, pela forma que investimos ou compramos, e também pela forma com enxergamos o mundo. É fundamental cada um, dentro da diversidade que se encontra, procurar uma bússola interna capaz de conseguir a autocompaixão, compreender-se a si mesmo e ficar em paz. Segundo a psicoterapeuta Cris Ferraz Prade, “Estar no mundo de forma compassiva é uma atitude que favorece nosso mundo interno e externo. Nos ajuda a construir relações afetivas autênticas e respeitosas, favorece pertencimento e segurança, promove experiências com sentido e propósito”. Somos seres complexos movidos por desejos, impulsos e passados.
Se você quer mudar o mundo e transformá-lo em um lugar mais justo para todos, é preciso Bem Viver consigo mesmo. Compreender para ter consciência e agir na medida da humildade que cabe a cada um de nós. Mas não se iluda. O mundo está mudando e a mudança é profunda. Somos seres intensos e complexos. A solução está na busca da realidade no meio do caos. De respostas com mais afeto e menos razão. Comece a amassar seu interior, dominar sua mente e abrir-se para o caminho sem volta, sem falsas e simples verdades. Quem bem viver, verá!