Negócios rurais podem ser, ao mesmo tempo, sustentáveis e produtivos, com ambiente equilibrado. Agora é “criar qualidade de vida vivendo com a terra”, conta Flavia Altenfelder Santos, cientista social e mulher à frente da Fazenda Malabar. Ela e o irmão, Felipe, engenheiro ambiental, recuperaram uma antiga propriedade da família para colocar a agrofloresta como sistema de produção à prova, apostar na inteligência ecológica e ver os resultados.
Os chamados sistemas agroflorestais, ou SAFs, têm como base conceitos e métodos ancestrais que, sistematizados no contexto atual, trazem soluções socioambientais concretas. A obra do agrônomo Jorge Vivan, ou o artigo do Departamento de Estudos Sócio- Econômicos Rurais (Deser) estão entre pesquisas que observam que esse processo produtivo deixa de ser alternativo e passa a ser estratégia de desenvolvimento nas comunidades.
Na pesquisa brasileira feita por Mauricio Hoffmann com dez SAFs, ao longo de dez anos, calculou-se que todos possuíam, em valores de produção anual, a média nacional para agricultura. Já na pesquisa do americano David Pimentel foi constatado que, além da perenidade, o modelo agroecológico utiliza 30% a menos de energia, água e nenhum pesticida. Um dos fatores que, na verdade, possibilita a perpetuação e o crescimento exponencial fluído e biodiverso, como é a dinâmica da natureza.
Refazenda: a trajetória da Fazenda Malabar
A história da família de Flavia é de transição, mas reiniciada do zero, ou seja, um processo de transformação da relação com a terra. Numa fazenda onde foi há anos lavoura de cana, agora, o novo ato é simples: “Manter o solo saudável, ao invés de só tirar coisas e empobrecê-lo”, comenta Flávia. O oposto do que faz o modelo tradicional que se autointitula como único agronegócio. “Um novo modo de plantar é um novo modo de encarar a vida, um novo modo capaz de criar toda uma nova lógica”, define Flavia.
A Fazenda Malabar começa a aprender na prática com um sistema de horta agroflorestal, que produz atualmente de 100 a 110 cestas de vegetais e hortaliças por semana. “São 105 famílias que a gente alimenta com 2,5 hectares de terra”, conta ela. No último agosto, depois de um ano e meio de trabalho, fecharam as contas “no justo e no fino”. A entrada de capital é de aproximadamente R$25 mil reais ao mês, sobrando apenas R$ 2 mil reais para fundos e 13º salário dos funcionários.
Por lá, o trabalho coletivo é mais leve, a proposta é fomentar outra forma, desejam o “bem viver” (princípio indígena latino americano) moderno: usam das tecnologias, querem ter tempo livre e poder viajar. Mas Flávia questiona: “Por que quem vive no campo tem que ter uma vida pouco digna? Como assim a gente criou um sistema que faz com que quem alimenta o mundo tenha essa vida?”.
Então a meta agora é aumentar os salários dos seis membros da equipe. Todos jovens que encontraram uma maneira de voltar ao campo ou que vão para lá pela primeira vez, os neorrurais. Todos participam da gestão e, entre eles, a sustentabilidade econômica é discutida a todo momento. É princípio, por exemplo, que todos ganhem o mesmo, inclusive a dona da propriedade.
“O que traz resiliência da natureza e do mercado são todas as ciências e práticas de manejo que usam menos insumos e mais processos. O mercado de commodities está fadado a desaparecer por obsolescência. ”
O modelo de circulação de produtos que utilizam é o sistema de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Quem compra garante uma encomenda mensal das cestas. Consumidores passam a se relacionar diretamente com os produtores de seus alimentos. Com todos os ativos envolvidos, o interesse mútuo se desenvolve e o ciclo todo tende a se transformar.
Para o próximo ano, a equipe da Fazenda Malabar pretende aumentar a diversidade de produtos, de consumidores e outros atores de impacto ambiental positivo. Financeiramente, o objetivo é diversificar os tipos de entrada de caixa. Como fazem outros negócios e grupos do ramo, por exemplo, com o beneficiamento em semi-industrializados e industrializados, o ecoturismo pelo entorno, ou a educação – o começo de tudo na abertura de espaços.
Práticas como a da Fazenda Malabar questionam a cadeia produtiva monocultural. Um modelo que, ainda que disponibilize alimentos à custos razoavelmente baixos, com foco no mercado exterior, prejudica a base da cadeia, os chamados “serviços ecossistêmicos”. A apropriação e desmatamento de áreas que geograficamente são limites de biomas; a perda da fertilidade; a contaminação das águas e do solo por insumos externos, são alguns fatos. E somos o país que mais consome agrotóxicos do planeta.
Marcella Lopes, economista e agroecologista, explica: “Se a gente entender que [os serviços ecossistêmicos] são fundamentais pra vida das pessoas, e pro funcionamento das coisas, da sociedade como um todo; que todas as atividades econômicas de alguma forma são dependentes; então é intrínseco, que o impacto social depende da preservação do meio ambiente”.
SAF enquanto modelo de negócio
Esse é um debate que vem sendo feito no mundo todo desde essa oposição entre crescimento econômico e não-destruição da natureza. Mas teve como marco de mudança de pensamento o ano de 1972, quando aconteceu a primeira conferência da ONU de Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, na Suécia. O caminho é largo até chegar à Agenda 2030, meta internacional pelo desenvolvimento sustentável. No Brasil, um viés para ver a problemática é por meio da recente Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura, onde se pauta conceitos congruentes como o de Economia Circular.
Entre tantos pesquisadores, técnicos, grupos, organizações e associações que trabalham dentro deste outro paradigma de produção, estão Valter e sua parceira Paula com a iniciativa Preta Terra, projeto com 15 anos. Há onze meses, o Preta Terra conseguiu parceria com o instituto de pesquisa WRI para atuar nas regiões mais remotas do Pará. A dupla tem como objetivo a aplicação da agrofloresta junto com os produtores, em qualquer situação viável cultural e economicamente para todos. “São sistemas modulares, replicáveis, aderentes e elásticos, que trazem a inteligência do sistema”, define Valter.
“O que traz resiliência da natureza e do mercado são todas as ciências e práticas de manejo que usam menos insumos e mais processos, entendendo e mimetizando na produção o que natureza faz ”, conclui Valter. “É esse o verdadeiro modelo que vai tomar todo o sistema produtivo e a matriz produtiva mundial. O mercado de commodities está fadado a desaparecer por obsolescência. ”
Em uma das experiências da Preta Terra, um plantio de base de mandioca, que antes era feito pelos produtores no sistema de corte e queima, passou a ser feito como agrofloresta. Dessa forma, aumentaram sua rentabilidade de R$ 6 mil/ha para mínimo de R$ 28 mil/ha. Às vezes, no primeiro ano de transição, pode haver uma queda, e os ciclos são mais curtos. Mas a produtividade sempre se multiplica, e a rentabilidade é exponencial.
Rafael Lima vem estudando os modelos do campo e presta consultoria de projetos com a Agrofloresta do Futuro – Empreendendo com a Natureza. Segundo ele, o sistema agroecológico tem grande redução de risco econômico e crescente independência da macroeconomia. “É o único sistema que pode recuperar o meio ambiente e gerar renda, ao mesmo tempo”, afirma, “de cinco anos para cá, se espalharam em 300%, 400% as iniciativas que estudam e procuram aplicar a agrofloresta sintrôpica”.
A inteligência do sistema está exatamente em entender as condições do local, entender tudo o que permeia; assim o próprio sistema e o agricultor fazem as mudanças necessárias ao longo do processo. A complexidade da natureza é a solução, e não o problema. Foi assim que a agroecologia foi praticada pelos povos amazônicos mais antigos, há cerca de 4 mil anos, e contribuem até hoje para o desenvolvimento sustentável da maior floresta tropical do mundo.
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