“Revogaço”. Foi esse um dos principais pontos durante o evento do centésimo dia de governo de Jair Bolsonaro na presidência. Diante de quase todos os ministros que compõe seu governo, o presidente assinou dois decretos que teriam por objetivo “desburocratizar atos normativos da administração pública e reduzir gastos”. Entre eles, estava o ato normativo 9.759/19, que extingue, a partir de 28 de junho, os conselhos e colegiados subordinados à administração pública federal direta, autárquica e fundacional e com participação da sociedade civil.
De acordo com suas disposições, não correm risco de extinção os colegiados previstos no regimento interno ou no estatuto de instituição federal de ensino, nem aqueles criados ou alterados por ato publicado a partir de 1 de janeiro de 2019, apenas aqueles instituídos via decreto, ato normativo inferior ao decreto e ato de outro colegiado. Incluso nessa categoria, encontra-se o comitê da Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto), formado por 26 membros: 7 ministérios, 3 bancos públicos, 6 organizações públicas e 10 organizações da sociedade civil.
Na prática, o governo quis revogar todos os conselhos e colegiados e depois sinalizou que está disposto a análise individual. No caso do comitê da Enimpacto, esse processo avançou e um documento de pedido de avaliação para sua permanência já foi protocolado na Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação do Ministério da Economia e aguarda análise. “Já enviamos um parecer de mérito com todas as justificativas e todo o trabalho feito sobre a importância do comitê da Enimpacto. Foi preparado e já foi assinado pela equipe do secretário Caio Megale”, afirma Beto Scretas, consultor do ICE – Instituto de Cidadania Empresarial – e membro da Aliança pelos Investimentos e Negócios de impacto, grupo que compõe o comitê da Enimpacto.
A ENIMPACTO
Criado via Decreto nº 9.244 de 17 de dezembro de 2017, a Enimpacto tem como objetivo formar uma estratégia de Estado, não de governo, colocando esse tema na agenda pública, criando um compromisso institucional do país em habilitar um ambiente favorável para investimentos e negócios de impacto. Entre eles, ampliar oferta e direcionar fluxo de capital e criação de todo um ecossistema incluindo intermediários – como parques tecnológicos, incubadoras, aceleradoras.
“Esses são benefícios de mais longo prazo”, explica Marcel Fukayama, fundador e líder do Sistema B no Brasil. “De imediato, o principal benefício [em contar com o comitê] é a institucionalidade dessa agenda.”.
Em termos práticos e, no caso do comitê da Enimpacto não ser reestabelecido e o efeito do “revogaço” se manter, o que acontecerá é a perda de tal institucionalidade, engajamento dos ministérios e organizações da administração pública – como BNDES, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, entre outros – e a desconexão da agenda da sociedade civil, que tem orientado e apoiado o governo nesse trabalho.
Demonstrando a forte capacidade de articulação desse fórum, Fukayama enumera os sucessos do comitê em seu curtíssimo tempo de vida, como a elaboração de um parecer para o Projeto de Lei (PL 338/2018) do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), para criar e disciplinar os Contratos de Impacto; um parecer para a Receita Federal que busca reverter a resolução da sua coordenadoria geral de tributos que incidem sobre fundações e institutos que realizam investimento de impacto em participação societária; e a mobilização que culminou com a sanção presidencial do próprio Bolsonaro da lei, ainda que com vetos, regula a criação de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público. Fukayama completa:
“existe um trabalho que a Enimpacto contribuiu diretamente e que o comitê, esse fórum bem qualificado, foi determinante. No cenário do ‘Revogaço’, isso deixa de existir, mas o decreto que criou a Enimpacto segue firme e forte”
ECONOMIA E IDEOLOGIA
Alguns dias depois, em sua conta no Twitter, o presidente publicou: “Gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil, não se importando com as reais necessidades da população.”.
Era uma resposta a outro comentário em que se afirmava que o decreto acabaria com os “sovietes do PT”, uma vez que na esteira do “Revogaço”, anulava-se também o Decreto 8.234/2014, enunciado no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT), que instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), ambos com o objetivo de aumentar a participação social junto a administração pública. À época, Jair Bolsonaro, então deputado federal, foi um dos parlamentares que classificou o decreto como “bolivarianista”.
O deputado federal Ivan Valente do PSOL vê o decreto presidencial com preocupação e protocolou uma PDL – Projeto de Decreto Legislativo – requerendo a sustação do decreto presidencial.
“A manutenção do Decreto 9.759/19 causaria um prejuízo imenso à participação da sociedade na definição de políticas públicas, na qualificação da sociedade através da participação popular e na construção de um Estado minimamente democrático”
Frases de efeito e disputas ideológicas a parte, o que se tem de concreto é que o governo não consegue precisar qual é o tamanho da “gigantesca economia” anunciada pelo presidente. Procurada pela reportagem, a assessoria da Casa Civil também não soube confirmar, ou ao menos estimar, qual seria o valor dessa economia, justificando que ainda é cedo para dizer, pois de acordo com o artigo 9 do decreto, o governo tem até 1 de agosto de 2019 para anunciar quais colegiados, de fato, estarão extintos – incluindo o parecer técnico entregue que pede a volta da Enimpacto.
Por sua vez, Fukayama faz uma análise qualitativa sobre o custo-benefício do comitê da Enimpacto, em específico. “O custo de administração desse colegiado, pois não posso falar sobre os outros, é muito baixo para o governo e a administração pública, porque não há absolutamente nenhum custo envolvido na gestão, manutenção, acompanhamento, remuneração de membros, ou até mesmo custo logístico das reuniões. Todas as organizações da sociedade civil participam pro bono.”, afirma. “Basicamente, há o custo-hora dos servidores públicos envolvidos no colegiado, [que] comparado com o impacto positivo que esse colegiado e a própria Estratégia Nacional pode trazer, é muito maior, proporcionalmente falando, do que o custo estimado das horas dos poucos servidores do Ministério da Economia envolvidos na gestão do comitê.”.
Em texto publicado pelo Jornal Estado de São Paulo, Flávia Regina de Souza Oliveira, Fernanda Basaglia Teodoro e Adriana Moura Mattos da Silva, respectivamente, sócia e advogadas do escritório Mattos Filho, escreveram que “ainda que a extinção das instâncias participativas seja defendida sob os argumentos de economia de gastos e desburocratização do Estado, seria possível argumentar que tais justificativas têm como pressuposto que a participação da sociedade civil prejudica o funcionamento da administração pública, ao invés de auxiliá-la – ideia esta contrária aos princípios e valores previstos no texto constitucional. Em virtude dessa aparente ilegalidade por violação ao princípio da motivação e aparente inconstitucionalidade por ferir o princípio geral da participação social na administração pública, as reações ao Decreto 9.759/19 ocorreram rapidamente tanto no âmbito legislativo quanto no judicial.”.
E assim tem acontecido. No Congresso Nacional, a reação também veio a decreto. Endossando o pedido da PDL assinada por Ivan Valente, em cinco dias, nada menos do que dez Propostas de Decreto Legislativo, que visam sustar o decreto presidencial, tal qual é sua prerrogativa. “Em relação à tramitação, o PDL é remetido para uma ou mais Comissões para discussão na Casa Iniciadora, e em seguida para o Plenário, devendo ser aprovado por maioria simples (50% + 1 dos presentes). A proposição segue o mesmo processo na Casa Revisora. O PDL não é submetido à sanção presidencial, sendo sua promulgação feita pelo presidente do Congresso Nacional, isto é, o Presidente do Senado Federal (SF)”, explica um relatório produzido pela consultoria Pulso Público.
No Supremo Tribunal Federal (STF), o assunto será discutido e julgado em plenário no dia 12 de junho, graças a uma ação que o PT entrou, argumentando que o decreto de Bolsonaro ofende os princípios republicano, democrático e da participação popular, e afirmando ser necessário “considerar, de forma individualizada, a função destes colegiados e os impactos formais e materiais que a extinção, nos termos do Decreto ora impugnado, pode gerar.”.
PARECER FINAL EM 28 de JUNHO
Entre o vai e vem de decretos e a reação da Sociedade Civil, do Congresso e do STF, o processo para recriação da Enimpacto segue seu rito. Com a instabilidade que ronda as decisões de Brasília, a incerteza é grande, mas a expectativa dentro do próprio Ministério é a melhor possível: “A gente expôs os argumentos e estamos confiantes que o parecer será positivo”, afirma Lucas Ramalho Maciel, coordenador dentro do Ministério que trata da Enimpacto, em Brasília. Lucas e sua equipe prepararam três documentos: o parecer de mérito, uma exposição de motivos para o Presidente da República e uma minuta de decreto recriando o comitê. Os documentos estão na Casa Civil em análise.
Junto com o pedido para recriação da Enimpacto, outros pedidos estão aguardando análise. O mesmo Decreto 9.759/19 extinguiu e criou um rito para a recriação dos comitês e colegiados. A estimativa do governo é que passava de centenas e comitês e houve pedido para que alguns critérios fossem observados como uma quantidade menor de membros, além de otimização de recursos. “A Enimpacto não paga deslocamento nenhum e não há um desembolso por parte da administração pública. O custo de manutenção do comitê é muito baixo em relação a tudo que ele vem produzindo”, salienta Lucas. Questionado sobre os argumentos apresentados, Lucas finaliza, “Os argumentos estão muito fortes e muito contundentes. Estão muito bem escritas e elaboradas as peças. O corpo técnico fez um trabalho bem exaustivo e levantou uma pesquisa de custos para mostrar esses dados. Eu acho que vai chegar à Casa Civil e espero que o bom senso prevaleça e eles recriem”. Esperemos.