Desde que o mundo é mundo, a cultura do “faça você mesmo” continua provando que é possível fabricar, construir, reparar e alterar as soluções já existentes em nosso cotidiano. Com o advento da internet, o movimento ganha uma derivação maker culture – cultura maker, em tradução livre, ou a famosa frase “vai lá e faz” – onde novas tecnologias, como computadores, robôs e impressoras 3D dão suporte para produtos mais sofisticados, sustentáveis e com menor custo de produção.
No próprio ecossistema de impacto, ser um maker ou fazedor (em português) pode lhe endereçar ao caminho dos negócios de impacto. De acordo com a Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto, se identifica um empreendimento de impacto iniciativas que buscam resolver um problema social e/ou ambiental e munidas de uma solução criativa, sustentável, colaborativa e escalável.
Em um contexto de pandemia, como a que vivemos com o novo Coronavírus (Covid-19), organizações, centros e núcleos de pesquisa se tornam makerspace – espaços de criação -, auxiliando no combate ao vírus e fornecendo novas ideias para suprir demandas alarmantes, como a falta de equipamentos em hospitais no país, segundo a Associação Médica Brasileira.
Trata-se de um empenho que envolve diversos atores e instituições da sociedade civil, com o objetivo de ajudar de alguma forma no combate ao Coronavírus, sejam soluções para quem está na linha de frente dos hospitais ou mesmo para o restante da população. Por exemplo, desde o dia 24 de março, 200 reeducandos(as) do sistema prisional do Estadão de São Paulo estão confeccionando máscaras descartáveis de proteção. A Secretaria da Administração Penitenciária adquiriu insumos para produção de 320 mil unidades dessas peças, que são feitas de TNT duplo e sob protocolo de entrada para garantir higienização das peças e segurança dos trabalhadores. As máscaras serão vendidas a preço de custo.
Alinhados no propósito e na colaboração
O open source (código aberto na tradução) é um dos aliados neste movimento global de produção de EPIs e outros materiais de uso hospitalar ao redor do mundo. É possível criar um modelo de máscara, por exemplo, disponibilizar o código e as instruções e permitir que pessoas do mundo todo repliquem, testem e aprimorem o modelo, para que outras tantas possam também fazer o mesmo e continuar o remix. É o que fez as redes da Prusa Printers, por exemplo, e também do Instituto Me Viro, de Brasília, com as máscaras face- shield. A organização brasileira é voltada à construção colaborativa de projetos, para aprendizagem de habilidades e tecnologias “faça-você-mesmo” (do it yourself ou, simplesmente, DIY).
Diante da pandemia, o Me Viro disponibilizou espaço, recursos e máquinas para o desenvolvimento de soluções que auxiliam tanto na proteção de profissionais da saúde quanto na aparelhagem necessária aos hospitais. São máquinas de corte a laser, impressão 3D e routers CNC em busca de soluções socioambientais para atender a urgência que é o Coronavírus. O modelo está disponibilizado para download, com vídeos explicativos no Youtube e no Instagram da organização. Vale ressaltar que estes protetores faciais podem ser higienizados e reutilizados. Esse modo, a comunidade de makers pode produzir em seus territórios as máscaras e direcioná-las aos hospitais das respectivas cidades. Na página oficial, do Me Viro é possível solicitar as máscaras, se você é um profissional da saúde, ou ainda ajudar com esforços de pesquisa, desenvolvimento, produção e distribuição dos equipamentos. É bem-vinda também a ajuda com doação financeira ou de materiais.
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A parceria feita entre a Pivoart, o atelier de idéias Feito a Laser, Vitor Motomura e Alex Fisberg (estes dois últimos são membros da Maniê Consultoria para Impacto) é um dos braços dessa rede de makers voltados ao impacto social positivo e à produção das máscaras face-shield para proteção de agentes de saúde. Para financiar o projeto, que começou com recursos dos próprios envolvidos para produção, foi aberta uma campanha no Benfeitoria. A prioridade da distribuição são hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBS) que podem se inscrever preenchendo este formulário. E as primeiras 500 máscaras já tiveram destino: o Hospital São Paulo.
A iniciativa parte de dois pontos urgentes para muitos brasileiros: o medo de quebrar (tanto a Pivoart quanto o Feito a Laser são pequenos negócios) neste momento de isolamento social e projeção de acentuada crise socioeconômica e também a vontade de ajudar. Entram também nesta soma: a necessidade de um fluxo de caixa para a produção das máscaras e a falta de verba dos hospitais aliada à burocracia. “A idéia foi captar dinheiro pelo crowdfunding e falar com várias empresas, para que possam auxiliar na distribuição aos hospitais, ao menos”, explica Fisberg. O custo médio de cada máscara é de R$25,00, com material e mão de obra. Enquanto as duas empresas de arte cuidam da produção das máscaras, Fisberg e Motomura fazem a captação, o contato com os hospitais, a distribuição e a logística.
A demanda é grande e as máquinas não param: por dia são feitas entre 300 e 400 máscaras. Com recurso e material disponíveis, é possível ajudar também outros makers e parceiros com laser disponíveis e que estão na rede. “Caso as nossas máquinas não dêem conta da produção, a intenção é captar recursos para apoiar outras pessoas que estão produzindo as máscaras, comprando delas e doando para quem precisa”, explicam na chamada de financiamento coletivo. A articulação e a transparência estão também na prestação de contas: foi feita a parceria com o Instituto Sincronicidade, que será o proponente responsável por receber o dinheiro do financiamento, comprar os materiais e contratar a Pivoart e o Feito a Laser.
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O projeto social Hígia é mais um exemplo do trabalho coletivo unindo sociedade civil e pesquisa. Seu corpo de mais de 500 colaboradores espalhados pelo Brasil também produz protetores faciais por impressão 3D. Estes protetores de rosto e pescoço são doados às instituições de saúde e servem como um complemento à proteção para estes profissionais. O projeto foi idealizado pelo grupo Women in 3D Printing Brazil e conta com o apoio de INCT-BIOFABRIS (Unicamp), CTI Renato Archer, corpo clínico do Hospital São Paulo e Hospital das Clinicas de São Paulo, além de organizações da sociedade civil, como o CoronaTrack. Estes parceiros realizaram as orientações e a validação do produto.
O valor estipulado por máscara é R$10,00, mas a intenção não é comercial. “Estamos fazendo os protetores faciais como uma doação, pela equipe voluntária. Estamos em busca de doações para alcançar o objetivo e entregar os protetores no maior número possível”, explica Natacha Harumi Ota, terapeuta ocupacional. Para montar o aparato de biossegurança para evitar o alto risco de contaminação, o projeto Hígia conta com uma equipe multidisciplinar, que alia profissionais das áreas de saúde, do Design e da Engenharia. “Antes da criatividade, precisamos entender a demanda existente, conhecer as necessidades da sociedade. O foco foi otimizar o projeto para que ficasse eficiente, rápido de produzir, econômico e acessível. Assim, é possível oferecer um serviço de qualidade, onde podemos atender o foco do problema com segurança e eficiência, além de validação”, completa Mayra Vasques, cirurgiã-dentista
Universidades engajadas
Uma parceria entre as instituições Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), através de seus pesquisadores, foi possível criar um novo teste para detectar a COVID-19, mais rápido (em cinco minutos o resultado) e barato (custando até R$ 45). O novo exame, ainda em processo de aprovação, usa amostras sanguíneas para atestar positivo ou negativo para o vírus, o teste tradicional – e usado em vários países, inclusive no Brasil – coleta secreções do nariz e boca e é importado do Japão, o que eleva seu custo e tempo de entrega.
Na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), o “Inspire” é a iniciativa desenvolvida para atender as futuras necessidades por respiradores pulmonar. Para uso de emergência, a solução é 15 vezes mais barato – cerca de R$ 1 mil – e em duas horas é montado. Inteiro com peças nacionais e controlado por um software aberto (open source), o ventilador segue em teste, em laboratório, antes de seguir para os hospitais públicos utilizar em pacientes.
Em São Carlos, interior de São Paulo, o Instituto de Física de São Carlos (IFSC) doou à Santa Casa da Misericórdia de São Carlos rodos com radiação ultravioleta para a descontaminação dos pisos do hospital, o equipamento foi desenvolvido pelo Grupo de Óptica do IFSC. Também, a mesma solução é estudada para descontaminar por completo órgãos humanos para transplante, em conjunto com a Universidade de Toronto, no Canadá.
A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul também tem se destacado na produção de EPIs para abastecer os hospitais da região. Para cumprir este objetivo foi criada a Frente de Impressão 3D, liderada pelo professor Lucas Bellinaso, docente do curso de Engenharia Elétrica. As máscaras são impressas e montadas para proteger da face ao pescoço de profissionais da saúde. Mais de 150 protetores faciais já foram distribuídos ao Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e também outras unidades de saúde e forças de segurança em Santa Maria. Um trabalho todo feito em equipe: a montagem final da máscara fica por conta da Gerência de Ensino e Pesquisa do HUSM e a distribuição é feita pela Polícia Civil. Para solicitar os protetores faciais, clique aqui.
O grupo gaúcho ainda desenvolveu um molde para injeção de plástico, em um trabalho feito junto ao Colégio Evangélico Panambi. A previsão é que, a partir de abril, 4.800 protetores sejam fabricados diariamente. Uma maneira de suprir materiais hospitalares indisponíveis no mercado, devido à grande procura. O HUSM ainda está desenvolvendo uma solução para reposição de peças dos respiradores que estejam indisponíveis no mercado e também uma proteção para sejam seguramente intubados pacientes com Covid-19.
A Universidade também se mobiliza para o reparo de respiradores artificiais, diante das necessidades do combate ao Coronavírus nos hospitais. Professores do Centro de Tecnologia da UFSM e médicos da cidade se uniram para recuperar, adaptar e desenvolver novos respiradores para as equipes de saúde – tudo a baixo custo.
Para continuar o presente e fortalecer o futuro
Na luta contra a epidemia no Brasil, pesquisadores e pesquisadoras vêm sendo agentes importantes para iniciativas com impacto positivo no país. Por outro lado, ainda há necessidade de insumos – recursos financeiros – para ampliar e aprimorar seus estudos. É o caso do Programa USP Vida, fundo de apoio a universidade paulistana, voltado para pessoas (físicas e jurídicas) que tenham interesse em fazer contribuições diretamente para as pesquisas desenvolvidas pela instituição, como vacinas e equipamentos.
Buscar soluções com impacto social positivo é urgente, sobretudo em tempos de pandemia. E, neste momento, destaca-se a importância de parcerias, transdisciplinaridades para encarar os problemas e também a união da sociedade civil com organizações e núcleos de pesquisas voltados aos desafios impostos pelo Covid-19. Seguir as medidas de isolamento social e higiene é um dever de todos. E se der para mobilizar parceiros, práticas sustentáveis, inovação social, tecnologia e total conexão com a realidade do entorno, melhor ainda.
DIY: faça sua própria máscara, seguindo orientações do Ministério da Saúde
*Com colaboração de Fernanda Patrocínio.