“É um campo que ainda tem muito de falar e pouco de agir. Ainda temos muita espuma.” O alerta para o ecossistema de negócios de impacto no Brasil não vem de qualquer um. Edgard Barki é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e doutor em Administração de Empresas pela mesma instituição. Ele é um dos braços acadêmicos fortes que têm puxado a discussão sobre negócios de impacto e outras ramificações do chamado capitalismo consciente ou capitalismo com propósito.

Em entrevista à Aupa, Edgard comenta sobre o que pode significar para os sistemas econômicos essas tendências que buscam mitigar os efeitos colaterais do capitalismo — a desigualdade de renda sendo o mais crítico deles. Por outro lado, com ponderação ímpar, também aponta para alguns perigos, ou “espumas”, que todo o falatório sobre negócios de impacto pode gerar. “O meu receio particular é que a gente transforme tudo isso em um grande social washing”, compartilha Edgard.

“Mudanças sociais disruptivas são raras. Muitas vezes são mudanças incrementais que vão ocorrendo entre uma geração e outra.”

AUPA | Podemos descrever essas tendências de reforma do capitalismo como um Zeitgeist, assim, um espírito do tempo? Ou você ainda tem a sensação de que se tratam de movimentos ainda em gestação e não fazem parte das principais discussões econômicas?

EDGARD BARKI |  Ainda não é mainstream, com certeza. É quase como se fosse o apêndice do capitalismo, é um apêndice pequeno. O problema é que todo mundo que atua no campo pensa igual. Então temos a falsa sensação de que todo o mercado está com essa mentalidade. Na verdade, é uma parcela, e eu diria uma parcela pequena. Porém, eu que atuo há mais de dez anos no campo, vejo que essa parcela é exponencialmente maior do que já foi. E quando se observa a mobilização de governos europeus, grandes empresas e terceiro setor nesse sentido, pode-se imaginar que essas tendências ainda podem crescer. O meu receio particular é que a gente transforme tudo isso em um grande social washing.  Seria só dar uma pintura social na empresa para mostrar que você tem um impacto, que você se preocupa com a sociedade, mas continua com velhas práticas na condução mais central dos negócios. São os dois lados que podem acontecer.

AUPA | O que foi necessário para que empresas pudessem ver a chamada “base da pirâmide” menos como mercado consumidor e mais como protagonista de negócios? Ou ainda há campos para se avançar nesse sentido?

EDGARD BARKI |  Não, acho que ainda há muito campo para avançar nesse sentido. Se olharmos nua e cruamente, você vê que grande parte das empresas vê a base da pirâmide apenas como um grande mercado consumidor. Por outro lado, ainda bem que há algumas vozes que alertam: “espera aí, o que estamos fazendo?”. Quando se discute as ideias do [Coimbatore Krishnao] Prahalad, que foi o primeiro que tratou mais da base da pirâmide, há críticas por ele ter uma visão muito ligada a multinacionais vendendo para a população de baixa renda. Mas, no meu ponto de vista, apesar de efetivamente as críticas serem válidas, ele colocou uma questão diferente: como podemos ter um capitalismo mais equitativo, em que essas pessoas também possam consumir? Isso faz sentido por si só, mas a crítica é que não adianta só o consumo. Também devemos trabalhar para desenvolver, diminuir concentração de renda, etecetera. Mas, enfim, as ideias vão amadurecendo.

AUPA | E, na sua visão, os negócios de impacto contemplam esse amadurecimento?

EDGARD BARKI | Acho que sim, no sentido de que você dá luz aos problemas da sociedade e tenta de alguma forma saná-los por meio de negócios que também nascem de baixo para cima, e não das grandes corporações. Mas ainda, até esse momento, a gente vê que os protagonistas continuam sendo os homens brancos de classe alta. Como que a gente consegue fazer com que a base da pirâmide vire protagonista? Por isso eu gosto muito dessa ideia de negócio de impacto que vem da periferia. Em vez do empreendedor social que vem da Faria Lima falar sobre a favela, o empreendedor social que vem da favela fala sobre a favela e tenta resolver os problemas da favela. É realmente uma mudança de foco. Mudança dos protagonistas.

E acho que, de novo, são evoluções. E é assim que as inovações sociais acontecem. Primeiro vieram os negócios de impacto de alta renda. Agora são os negócios de impacto da periferia. Mudanças sociais disruptivas são raras. Muitas vezes são mudanças incrementais que vão ocorrendo entre uma geração e outra. E essa tendência dos negócios de impacto é muito recente. E quando a gente coloca negócio de impacto periférico, mais recente ainda.

AUPA | Até porque é mais fácil definir problemas sociais com pessoas que compartilham deles para buscar essas inovações…

EDGARD BARKI | Isso. Se você quer fazer alguma coisa de impacto social, de mexer com a base da pirâmide, você precisa estar lá. Você precisa vivenciar. Ou você precisa ser de lá. Tem que estar junto e entendendo e dialogando. Só que diálogo é difícil. Temos muitos muros sociais, invisíveis e visíveis. Temos muitos pré-conceitos, muitas ideias pré-concebidas, muitas visões de mundo.

“Negócios de impacto são organizações que estão buscando como objetivo central a melhoria na sociedade. Mas ainda é preciso saber identificar o que é impacto social e o que é simplesmente uma exploração.”

AUPA | O que você imagina que seja um sinal de alerta importante que deva ser feito para o ecossistema de impacto?

EDGARD BARKI |  Há uma necessidade importante de diferenciar o que é efetivamente impacto e o que é um social washing, o que é uma venda camuflada de impacto social. Afinal, todas as empresas tem impacto. O fabricante de armas está gerando empregos – só para citar um pior. O que temos são várias tonalidades de impacto. Negócios de impacto são organizações que estão buscando como objetivo central a melhoria na sociedade. Só que sobre melhoria na sociedade, cada um tem sua ótica também. Ainda é preciso saber identificar o que é impacto social e o que é simplesmente uma exploração.

AUPA | Como professor e pesquisador, você acha que esse conceito de impacto precisa ficar necessariamente aberto, e que vamos entendo a cada caso, ou você precisa ser restringido objetivamente?

EDGARD BARKI | Boa pergunta. Realmente não há uma boa definição. E efetivamente disso vem a minha preocupação: quase toda empresa pode falar que é um negócio de impacto. Agora, é difícil você chegar nessa definição restrita. Por isso eu acredito muito mais em negócios de impacto como uma filosofia do que como um conceito fechado. Mas isso abre para um grande dilema: à medida que essa noção do que é impacto se mantém ampla, temos a aproximação de potenciais aproveitadores. E, quando eles chegam, acabam toda essa filosofia.

“para mim faz sentido fomentar inovação social que venha de vários atores. Ou seja, juntamos grandes empresas, com empreendedores, com terceiro setor, e eventualmente governo.”

AUPA | Existe muita dificuldade no ecossistema em criar modelos para medir impacto. Você acha que essa questão da mensuração mora um pouquinho nesse problema de conceito? 

EDGARD BARKI | A primeira pergunta que eu te devolvo é: por que a gente quer fazer mensuração de impactos? A mensuração faz sentido à medida que é utilizada pelo negócio, pelo empreendedor, para melhoria do seu impacto. O que acontece muitas vezes é a avaliação de impacto feita para mostrar aos investidores. E aí não tem por que. A primeira discussão é: por que eu vou fazer? E a partir do por que é que eu defino melhor a metodologia. Outro ponto a se pensar é a nossa busca por uma bala de prata. Eu não creio que exista essa bala de prata que serve a todos os negócios de uma forma homogênea, padronizada. Cada negócio vai achar sua metodologia. Talvez para os investidores isso soe muito negativo. Afinal, com metodologias diferentes, como comparar o sucesso dos negócios? A isso eu digo: devemos buscar uma nova lógica. O que deve ser observado em cada empresa é qual tipo de impacto ela quer ter e como ela faz para alcançá-lo. Não precisamos compará-las.

Por fim, eu penso que a gente joga muito peso nas costas do empreendedor social. Porque não basta a cobrança de empreender, você tem que ter impacto também. Não basta você empreender e ter impacto, você tem que provar para sociedade que você teve impacto. A não ser que você consiga fazer com que empreendedor enxergue a avaliação de impacto uma ferramenta de gestão, isso não será prioridade dele. Eu tenho cem mil reais. O que eu vou fazer? Vou investir numa pesquisa para fazer avaliação de impacto ou vou aumentar meu negócio para gerar mais impacto? Os recursos são limitados, o empreendedor tem muito viés de fazer mais  e não dá para colocar mais uma coisa nas costas dele. Eu não quero dizer que eu não acredito que seja relevante avaliação de impacto. Mas não é um absurdo que empreendedores não a façam. Isso é querer realmente um super-homem ou uma mulher-maravilha como empreendedores.

AUPA | O que você imagina que são as pautas mais importantes para construir essa estrutura de inovação social no Brasil?

EDGARD BARKI | Eu estive em Portugal no fim de 2018. Eles têm até uma estrutura que se chama Portugal Inovação Social, dentro do governo. Lá eles estão muito mais preocupados com a inovação social do que com quem está fazendo a inovação social. Ou seja, é algo pode vir de um negócio de impacto, mas também de uma grande empresa, do terceiro setor ou do governo. Essa mentalidade tira o peso do empreendedor. Ele continua relevante, mas toda a sociedade é convidada para olhar para a inovação social.

Já no Brasil eu acho que a gente precisa de mais ação e menos pensamento. É um campo que ainda tem muito de falar e pouco de agir. Ainda temos muita espuma. E para ir para o concreto, temos que juntar vários players do setor. Por isso para mim faz sentido fomentar inovação social que venha de vários atores. Ou seja, juntamos grandes empresas, com empreendedores, com terceiro setor, e eventualmente governo. Para buscar coisas diferentes.

Deixe um comentário

Digite seu comentário
Digite seu nome