Nas últimas semanas, denúncias foram apuradas em veículos de imprensa sobre negócios de impacto. Em 22 de novembro, a Agência Pública realizou uma reportagem sobre o fundador do Saladorama, Hamilton Henrique. Nela, fontes o acusam de forjar histórias, abandonar parceiros e de não pagar salário de funcionárias. Em 4 de dezembro, o blog do jornalista Thiago Herdy, da revista Época, trouxe a público a dispensa de uma recepcionista grávida do coworking paulistano Civi-co.
Desde então, a reportagem da Aupa esteve em contato com o Saldorama e o Civi-co para acompanhar seus desdobramentos dos casos. Embora as partes não tenham concordado em gravar entrevistas, preparamos um resumo de todas as informações que coletamos. Dos episódios, ficam três reflexões, ou lições de casa, para o setor: suas práticas trabalhistas, a estrutura de apoio que há para empreendedores em crises como essas e, por fim, os perigos do excesso de visibilidade.
O caso Saladorama
As notícias contra Hamilton e o Saladorama caíram como uma bomba para o ecossistema de impacto social brasileiro. Não seria para menos. Em um ambiente que ainda procura por histórias de saída bem sucedidas, tanto financeiramente quanto de impacto obtido, o Saladorama e seus êxitos supriam uma expectativa de todo um setor. Tornou-se, assim, um dos seus “queridinhos”.
Em linhas gerais, o Saladorama é uma delivery de saladas e alimentação orgânica principalmente direcionado a comunidades periféricas. Mas seu propósito, segundo entrevistas dadas anteriormente por Hamilton, é o de democratizar o acesso e o conhecimento sobre alimentação saudável, também via cursos e formação. Apesar de ser direcionado a comunidades periféricas, o Saladorama atua também fora delas. Atualmente, o negócio tem unidades em Recife – de onde Hamilton comanda a operação –, Sorocaba, Florianópolis, Rio de Janeiro e São Luís.
Durante sua trajetória, o Saladorama passou por processos de aceleração e mentoria por instituições renomadas. Em 2014, ainda em estágio de concepção, participou de um programa experimental de incubação na Yunus Negócios Sociais. Entre 2016 e 2017, passou por mentoria da Red Bull Amaphiko.
Em 2017, fez parte de um programa piloto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de apoio a 30 afroempreendedores brasileiros. O programa recebeu U$ 500 mil em investimentos nesses negócios, e contou com apoio das organizações Endeavor, Anjos do Brasil e Key Associados. Naquele mesmo ano, Hamilton ganhou o prêmio Empreendedor Social do jornal Folha de S. Paulo, na categoria escolha popular, por votação do público.
Em 2018, mais uma boa notícia para o negócio: o Movimento Coletivo, plataforma de investimentos da Coca-Cola Brasil, selecionou o Saladorama e outros cinco negócios de alimentação e nutrição para receberem o investimento de R$ 1,5 milhão, no total, além de apoio e mentoria dentro do prazo de um ano. A Aupa não obteve acesso a informações detalhadas de como avançou o programa após as denúncias nem do Saladorama e nem da Coca-Cola.
Com tantas notícias positivas, Hamilton e o Saladorama passaram a ser destaque na mídia como exemplo de empreendimento social positivo. Desde então, seu fundador é convidado a dar palestras e a participar de eventos do setor.
Por isso mesmo, veio com surpresa a reportagem da Pública que acusa Hamilton e o Saladorama de falsear sua história e seus méritos. A começar pela métrica de impacto: segundo o relato, não há documentos que comprovam as mais de 400 mil pessoas que o negócio afirma impactar e questiona esses números.
Em 2017, a organização Pipe.Social, focada em dados sobre o setor, mapeou diversos negócios de impacto para compreender suas dificuldades e perfis. Segundo o levantamento, outros 31% de negócios não definiram indicadores de medição de impacto, e 28% definiram, mas não medem de maneira formal.
Para rebater as acusações, Hamilton publicou uma nota em seu Medium em que afirma preparar um relatório de todos indicadores. Também na nota, ele alega que “métrica de impacto não é uma ciência exata”.
Não há um consenso sobre metodologias e métricas para avaliação de impacto no setor. “Eu não creio que exista essa bala de prata, que vai servir a todos os negócios de uma forma homogênea, padronizada. Cada negócio vai achar sua forma”, avalia o professor Edgard Barki, doutor em administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Outro ponto delicado foi a acusação de falta de pagamento de Jannaína da Silva, que foi colaboradora da empresa entre 2016 e 2017 fazendo saladas. Neste tema, Hamilton afirma que o pagamento com a colaboradora era feito via Recibo de Pagamento Autônomo (RPA). Trata-se de um documento que deve ser emitido por aquele que contrata o serviço de algum profissional pessoa física sem que seja regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Neste regime, o profissional não mantém vínculo empregatício com a empresa, mas nada impede que seja contratado de outra forma futuramente. Todavia, se a pessoa física comprovar vínculo por meio de uma reclamatória trabalhista, a empresa deverá equipará-lo a um colaborador registrado.
Segundo o advogado trabalhista especializado em startups, Lucas Orsolini, “independentemente do contrato desenhado, se no dia a dia ficar configurada pessoalidade, subordinação, habitualidade [ou periodicidade do serviço prestado] e onerosidade na relação de trabalho, o empregador está sob o risco de ser reconhecida relação de emprego.”
No caso do Saladorama, Hamilton alega não conter dívidas com a colaboradora, e a própria não moveu ação contra a empresa desde o ocorrido, até o momento.
Nas apurações e conversas com a Aupa o Saladorama informou que está produzindo relatórios e que, no momento oportuno, falará com a Aupa e a imprensa para maiores esclarecimentos sobre o assunto.
O caso Civi-co
O ocorrido no coworking Civi-co também envolve relações de trabalho. A recepcionista Raiane dos Santos mantinha um contrato temporário de seis meses com a empresa e recebia salário como pessoa jurídica, emitindo nota por meio de MEI (microrempreendedor individual).
Conforme noticiou o blog do jornalista Thiago Herdy, ao término do contrato, Raiane teria sido dispensada do trabalho apesar de estar grávida – o que, sob um regime CLT, seria ilegal.
Com pouco mais de um ano, o Civi-co ganhou grande destaque em veículos de comunicação com sua proposta de criar uma comunidade de empreendedores sociais e negócios de impacto. Ocupando uma charmosa rua sem saída no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o prédio conta com 4 andares de salas e mesas que recebem empreendedores. Roberto Podval é CEO do co-fundador do espaço, também fundado por Patrícia Villela Marino, esposa de herdeiro do banco Itaú. O local é resultado do investimento pessoal de Marino e seu esposo. Seu modelo de negócios está baseado na cobrança taxas mensais aos seus residentes e buscando parcerias e patrocínios com corporações.
A Civi-co assumiu publicamente o erro e, em contato com a Aupa, alegou ter havido um engano ao deixar o contrato vencer sem renegociar suas condições. Em poucos dias, sua atitude foi contratar Raiane, desta vez em regime CLT. O mesmo aconteceu com os demais colaboradores diretos do coworking: todos recebiam via PJ e agora são devidamente registrados.
Patricia e Roberto também reuniriam todos os seus residentes em seu auditório para tratar do assunto. O local conta com residentes conhecidos, como Quintessa, Instituto Feira Preta, Observatório do Terceiro Setor, Pipe.Social, bemtevi, Grupo Tellus e 49 outros. Os fundadores tiveram de “ouvir verdades” dos residentes que se indignaram com o caso, como comentou a gerente de comunicação do coworking, Ana Luiza Prudente. O comentário, porém, foi de que, após o caso, o coworking finalmente saia da “fase de excitação” de um novo projeto.
As lições de casa para o setor
1. Leis trabalhistas
Não é só um debate do ecossistema de impacto. A discussão a cerca das relações de trabalho irão ser presentes no próximo ano. Recentemente, em transmissão ao vivo em rede social, o presidente eleito Jair Bolsonaro declarou que a lei trabalhista ideal de seu governo deveria “beirar a informalidade”
Na prática, no ecossistema de inovação e startups em geral, é comum relações de trabalhos que não são mediadas pela CLT. Em 2016, segundo o Sebrae, 20% do PIB brasileiro pertencia a pequenos e micro empreendedores que não formalizaram a situação de seus negócios e, por isso, também não registraram funcionários. Em sentido mais amplo, segundo dados do IBGE, 37,3 milhões de brasileiros trabalharam sem carteira assinada em 2017.
O diagnóstico geral é de que a formalização é um peso oneroso a esses negócios, que não têm receita, quando em estágio inicial, para arcar com o custo social de ter funcionários. Porém, é preciso buscar por segurança jurídica nas relações de trabalho, seja por meio de CLT ou outros regimes de contratação.
Para Lucas Orsolini, “startups no início do desenvolvimento sempre vêm acompanhadas de riscos jurídicos, principalmente o trabalhista. O principal ponto na relação de serviços que empreendedores estabelecem com terceiros é evitar a configuração dos requisitos de vínculo de emprego no dia a dia”.
Também segundo o especialista em leis trabalhistas e startups, o advogado Marcílio Drummond afirma que o ideal é que sempre estejam presentes relação de emprego formalizada entre essas empresas e seus colaboradores, embora seja um caminho oneroso. “Certamente os encargos trabalhistas são muito mais sentidos pelos menores empreendimentos, pois eles representam percentual muito maior dos faturamentos das empresas”, opina Drummond.
Todavia, a reforma trabalhista aprovada no ano passado permite a figura de autônomo exclusivo, para contratação se serviços por pessoa jurídica em regime de exclusividade com a empresa. Antes da reforma, a empresa que contratasse um autônomo de forma contínua seria considerada fraudulenta. “O que definitivamente não pode ser feito é deixar de formalizar a forma escolhida para a prestação dos serviços, seja por CLT, seja entre PJs”, ressalta Drummond.
Drummond ainda ressalta que existe uma “dor de crescimento” em pequenos negócios, quando seu crescimento não é acompanhado da formalização, por exemplo, dessas relações de trabalho. “Principalmente porque muitas vezes as startups não regularizam desde o início as relações com colaboradores, prestadores de serviços e sócios”, afirma. Mas esta regularização pode ser muito importante para o negócio: “Seja para que receba investimentos, seja para ser adquirida ou incorporada por outra empresa, o valor da empresa é afetado quando se detecta problemas de relação de emprego.”
Sendo assim, os casos citados abrem uma oportunidade para o ecossistema de negócios de impacto se posicionar no tema, avaliando qual é o ambiente trabalhista ideal para o fomento de novos negócios.
Mas esses episódios também anunciam uma tensão: há uma dissonância em promover impacto social positivo e não criar a segurança jurídica e social necessária para seus colaboradores.
2. Apoio a empreendedores
Gerada a crise, a Civi-co dispunha de estrutura jurídica e de recursos para solucionar o problema em questão de dias. O Saladorama, não. Os casos expõem, mais uma vez, a ferida da desigualdade que há entre negócios periféricos e aqueles que dispõem de mais privilégios.
Nos dias que seguiram as denúncias, Hamilton respondeu às acusações em nota oficial e se isolou de entrevistas e contatos. A justificativa era simples: ele precisa voltar a focar no negócio.
Para a reportagem da Pública, a Red Bull Maphiko afirmou que o Saladorama não faz parte da atual fase do programa. Também à Pública, a Folha de S. Paulo alegou que o conteúdo produzido sobre a empresa em função do prêmio “retratava aquele momento da startup” e que sua premiação abrirá processo interno de avaliação sobre a retirada de Hamilton de sua rede de empreendedores, caso haja acusação formal. A Coca-Cola declara que seguirá o cronograma do Movimento Coletivo e fará novas visitas ao negócio, para avaliar sua atual condição.
Procurada pela Aupa, a Yunus Negócios Sociais emitiu comunicado declarando “não ter mantido contato formal com o empreendedor e com o projeto” após o programa de 2014 e, portanto, não podendo aprofundar na suas considerações.
Sobre o tema, a colunista da Aupa, Ana Flávia Vidigal, escreve em sua última coluna: “Empreender pode parecer super sexy e bacana, receber um prêmio aqui outro lá, ser convidado a palestrar, estar na mídia constantemente. Mas a responsabilidade com as pessoas que acreditam no sonho do empreendedor e topam seguir junto nunca pode ser deixada de lado.”
3. Os perigos da visibilidade
O ecossistema de impacto, como um todo, persegue a visibilidade midiática como estratégia de disseminar o conceito de negócios de impacto e atrair investimentos, recursos e parcerias ao setor. Não à toa, Comunicação e Mídia são um dos eixos estratégicos de investimento anunciados pela Aliança pelos Negócios de Impacto no último Fórum de Finanças Sociais, realizado em junho de 2018 pela Aliança, até então chamada de Força Tarefa.
Um dos resultados dessa prioridade já aparecem. A Aliança apoiará premiação para jornalistas que cobrem o setor, o Prêmio Jornalista de Impacto, que acontecerá em março. O prêmio é organizado pela organização ponteAponte em parceria com a Faculdade Cásper Líbero.
Tanto Civi-co quanto Saladorama são negócios que receberam vasta atenção das mídias. No Civi-co, porém, a reclamação é de que essa exposição deixaram eles com “teto de vidro”. No Saladorama, a avaliação é parecida, no sentido de que, de agora em diante, é preciso dar menos entrevistas e focar mais no negócio.
A mídia é uma encantadora de serpentes. O sucesso de uma empresa pode ser facilmente confundido com a sua exposição nos meios de comunicação. Todavia, o crescimento de visibilidade não acompanha o crescimento das empresas, inclusive de seu aprendizado e formalização. Não à toa, comunicação aparenta continuar a ser uma dor do setor. No levantamento da Pipe.Social, de 2017, comunicação aparece como principal dificuldade dos negócios, atrás apenas de captação de recursos e acesso ao investimento.
Aqui, o papel de um jornalismo que não seja condescendente com negócios é crucial. Mas não anda desacompanhado de uma proposta construtiva, que compreenda e aprenda com a jornada desses negócios. Nesse sentido, tudo bem se a fase do encantamento e excitação estiver acabando para que se converse, nas mídias, sobre histórias mais próximas do dia a dia dos negócios de impacto, ainda que em menos volume.