Há um movimento evidente de pesquisas acadêmicas voltadas à temática de negócios de impacto social. Isso se expressa no boom, dos últimos cinco anos, na oferta de cursos e de núcleos de estudo dedicados a este formato organizacional.

Mas seria um equívoco dizer que trata-se de um interesse inédito. E a professora Graziella Comini é prova viva de que, já há tempos, as universidades são motores da reflexão sobre as dinâmicas de mercado e de suas possíveis transformações. “O termo ‘negócios de impacto’ pegou e vem entrando no mainstream para discutir assuntos que são objetos de pesquisa há algumas décadas”, comenta Comini.

Economista com livre-docência em administração pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Comini se especializou em empreendedorismo social e terceiro setor. É ela quem coordena o Centro de pesquisa dedicado a estes temas na USP, o CEATS, além de ser coordenadora do MBA em Negócios Socioambientais do Insituto Ipê.

Sua proximidade com esta temática começou durante seu mestrado, nos anos 1990. Na época, o Brasil discutia a regulamentação das ONGs. Ao mesmo tempo, pensadores do calibre de Milton Santos e Paul Singer debatiam conceitualmente formas de economia solidárias. Para Comini, a discussão sobre negócios de impacto hoje é herdeira desses temas, com os quais ela se dedica desde o princípio. Por isso mesmo, se tornou uma das principais referências no Brasil sobre o tema.

Em conversa com a Aupa, Comini comenta sobre o boom de pesquisa em negócios de impacto nas universidades. Mas também dividiu o que pensa sobre os principais desafios do ecossistema. “Enquanto pesquisadores, sempre temos que ter um olhar critico no sentido de mostrar as incongruências, as dissonâncias, os erros, as falhas ou os alertas. Sempre no intuito de construir juntos”, opina

Gostaria que todos os empreendimentos privados com lógica de mercado fossem negócios de impacto no futuro. Assim, quem sabe, minhas netas e bisnetas não precisarão fazer a diferença.

AUPA | Há um esforço no ecossistema em tornar as discussões sobre o negócios de impacto cada vez mais assuntos nas universidades, em suas várias disciplinas e campos de conhecimento. Pela sua trajetória, você percebe evolução nessas aproximações?

GRAZIELLA COMINI | É super interessante sua pergunta porque, de fato, é um tema que tenho trabalhado praticamente desde a década de 90. Eu tive o privilégio de estar na universidade no momento em que se discutia no Brasil a formalização das organizações da sociedade civil (OSCIP). Foi todo um trabalho no governo do Fernando Henrique Cardoso com a professora Ruth Cardoso que estava pautando a questão das alianças intersetoriais. Havia um reconhecimento de que o Estado não tinha braço suficiente pra dar conta dos problemas socio-ambientais. Isso não significa que o Estado não seja importante. Pelo contrário, é fundamental. Mas outros tipos de atores deveriam contribuir efetivamente pra um desenvolvimento sustentável.

A partir de então, as empresas também começaram a acentuar trabalhos de responsabilidade social corporativa que depois evolui pra discussões de sustentabilidade. Enfim, eu tive a oportunidade de acompanhar o embrião do debate que viria a ser sobre os negócios de impacto. Um debate que cada vez mais vai dando  sentido uma nova geração que quer dar um legado nessa sociedade, contribuir pra minimizar os problemas estruturais socio-ambientais. Para esta nova galera, a questão de poder gerar lucro e, ao mesmo tempo, gerar valor socio-ambiental, soa muito interessante. Por isso mesmo, percebe-se um interesse dos jovens que vai cutucando os seus docentes e criando um movimento nas universidades que eu diria que começa muito de baixo para cima.

A universidade vai, então, pesquisando sobre este fenômeno e introduzindo essa temática em diversas disciplinas. No início, a gente começou discutindo a responsabilidade social corporativa. Hoje, o que é diferente é o estudo de um formato organizacional híbrido, agregando duas dimensões que eram associadas por atores diferentes. Em suma, gerar resultado econômico era a meta das empresas tradicionais, gerar resultado socio-ambiental era a meta de organizações sem fins lucrativos. Juntar esses dois em um mesmo espaço cria uma organização hibrida que começa a ser estudada por diferentes docentes e pesquisadores. Isso introduz novos assuntos de pesquisa em diversos campos do conhecimento. Por exemplo, quais são as estratégias de marketing para esse formato? Como é a captação de recursos? Quais são as novas soluções ambientais que a engenharia florestal irá produzir? Na medicina, na educação… E principalmente no campo da gestão.

Há um interesse dos jovens [por negócios de impacto] que vai cutucando os seus docentes e criando um movimento nas universidades que eu diria que começa muito de baixo para cima.

AUPA | Entrando nas questões conceituais, alguns artigos seus tratam sobre como a definição de negócio de impacto está sendo desenvolvida ao redor do mundo. É interessante obseravar quanto que a questão da cultura local influencia nessa conceituação. Com sua pesquisa, o que dá pra destacar como próprio na conceituação brasileira de negócios de impacto? 

GRAZIELLA COMINI | É preciso dar passinho atrás antes de falar do Brasil. Se nós estivéssemos de fato em um mundo onde tudo tivesse funcionando, talvez não fosse preciso ter negócios de impacto. Esse conceito vai surgir por questões de falhas do mercado, falhas de atuação do mercado que acabaram gerando desigualdades. Nós sabemos que o capitalismo, do jeito que foi depois da revolução industrial, gera bastante inovações, mas não consegue trazer juntamente igualdade socio-ambiental. Ao mesmo tempo, observa-se sociedades que foram apostando no papel do Estado na solução destas assimetrias. Em economias como a dos Estados Unidos, o papel do estado é de não interferência. Já nas economias europeias, há o well fair state [Estado de Bem Estar Social] já mais interferente. O caso do Brasil é muito curioso porque, aqui, nós gostaríamos que o Estado atuasse efetivamente na busca de soluções, mas ele não consegue dar conta de problemas  estruturais. Então começamos a ter vazios, literalmente de situações crônicas para as quais a sociedade civil começa se sentir responsável.

Na europa, o Estado funciona e a sociedade tem uma preocupação efetiva de que os governos deem ressonância aos desejos da comunidade. Há, portanto, uma ênfase em governâncias mais coletivas. Nos EUA, foca-se muito mais nas potências individuais, o lado empreendedor e a participação da comunidade nas decisões não é um ponto fundamental. No caso do Brasil, temos uma Constituição que mira por um Estado como os europeus, mas os nossos negócios são muito influenciados pelo jeitão norte-americano. Alias, a origem dos cursos de administração do Brasil vem de uma missão estado-unidense. Também por isso os negócios de impacto brasileiros tendem a ter uma ênfase empreendedora e atuam nos vazios institucionais onde o Estado não dá conta. Quando vou em congressos na Europa costumo ouvir exemplo de creches como negócios sociais. Eu ouvia e pensava: nossa, creche? Eu nunca associei creche a um negocio social, entendeu?

Eu não sei se há um jeito brasileiro de fazer negócios de impacto, mas eu sei que a gente esta tentando contribuir e cada vez mais tem sido mais efetivo. Os empreendimentos que procuram aliviar o Estado  acabam sendo mais lucrativos quando eles buscam uma população que seria uma classe C que esta em uma condição entre poder ter um plano de saúde particular, mas que também deveria ter um bom serviço público. Então, por aqui, os negócios de impacto vão trabalhar em aliviar para o Estado, tirar a pressão de um atendimento gratuito pra uma população , algo que não se vê nos Estados Unidos. Por isso mesmo, a atuação aqui no Brasil tem se diferenciado da atuação em outros países.

No Brasil, OBSERVAMOS os negócios de impacto trabalhando em aliviar para o Estado, tirar a pressão de um atendimento gratuito pra uma população. Algo que não se vê nos Estados Unidos.

AUPA | Estamos vivendo uma época de paranoia ideológica em relação ao papel do Estado. Caímos em uma polarização difícil de sair entre Estado mínimo e Estado máximo. Qual é o seu olhar sobre as possíveis funções do Estado brasileiro em relação à potencialidade dos negócios de impacto?

GRAZIELLA COMINI | A própria Constituição de 1988 deixou evidente a necessidade da descentralização. Antes dela, tínhamos investimentos  concentrados em nível federal e, depois dela, foi determinado que a execução de investimentos faz mais sentido no nível dos municípios. Considerando este princípio, eu considero os atores lá na ponta  entendem as necessidades daquela realidade e  podem agregar valor à atuação pública. O Estado, portanto, poderia fazer parcerias e convênios não apenas com organizações da sociedade civil. É preciso considerar e não excluir. Eu sou muito da inclusão amplo senso.

Não acho que o melhor formato organizacional sejam os negócios de impacto. Eu levanto a bandeira dos negócios de impacto como mais um formato interessante. Gostaria que todos os empreendimentos privados com lógica de mercado fossem negócios de impacto no futuro, para a intenção de gerar valor socio-ambiental. Assim, quem sabe, minhas netas e bisnetas não precisarão fazer a diferença. Hoje, é preciso uma diferença porque as empresas nascem para gerar valor para seus acionistas. Com os negócios sócio-ambientais a gente parte de uma nova lógica. No meio tempo, a gente vai ter que conviver com a ideia de trocar os pneus com o carro andando. Isso vai dando uma sensação de desespero para alguns. Mas como eu não sou de uma geração muito ansiosa, eu vejo a perspectiva de maneira muito positiva.

Nessa transição, a relação com o estado é necessária. Não consigo ver uma sociedade que vá buscar um desenvolvimento sustentável sem uma atuação importante do Estado. É ele quem é capaz de identificar onde há falhas no mercado para cobrir uma população mais vulnerável e que normalmente, pela logica de mercado, não seria atendida. Sou contra um estado total, que não reconheça a importância e a potência dos empreendimentos privados, mas eu não sou daquelas que acreditam no Estado minimo. Eu vejo a possibilidade de políticas públicas que incluam uma massa de população por meio do reconhecimento de empreendimentos inovadores que poderiam executar essas politicas e trazer alguns novos instrumentos para isso.

Sou contra um estado total, que não reconheça a importância e a potência dos empreendimentos privados, mas eu não sou daquelas que acreditam no Estado minimo.

AUPA | Você mencionou outro ponto crucial que é o papel das grandes corporações no ecossistema de impacto…

GRAZIELLA COMINI | No próprio Fórum de Finanças Sociais saiu uma cartilha produzida pelo Sense-Lab discutindo as diferentes maneiras por meio das quais uma grande corporação contribuiria para o fomento de negócios de impacto. Não acredito, sinceramente, que elas possam se tornar, elas próprias, negócios de impacto. Mas elas poderiam incluí-los na sua cadeia de valor, estimulando inovações. Elas têm um papel muito mais de fomento, portanto. Com isso temos alguns movimentos do capitalismo consciente, do Sistema B, que buscam modificar práticas de gestão para que as corporações sejam menos exclusivas. Para empresas, é importante pensar em contratar fornecedores locais para estimular inovações que as grandes não conseguem criar, justamente por serem grandes. São elefantes grandes que se movimenta lentamente. Assim, é possível resolver alguns problemas que as empresas têm na sua cadeia, como reciclagem,por exemplo. Há soluções para essas questões em negócios de impacto, que podem ser contratados.

AUPA | As empresas como clientes, então…

GRAZIELLA COMINI | E como incubadoras. Para alguns desafios, funciona realizar chamadas para que negócios de impacto possam buscar essas alternativas.

O ponto que a gente tem que se perguntar é: para os negócios de impacto efetivamente se consolidarem, o quanto vão abrir mão da geração de valor socio-ambiental para serem mais lucrativos?

AUPA | Isso tangencia o debate sobre como negócios de impacto podem se tornar escaláveis. Nos Estados Unidos, a escala é mais cobrada. Na Europa, nem tanto. E aqui mais uma vez a gente está no meio do caminho. Escala é uma preocupação, mas ao mesmo tempo nos perguntamos que tipo de crescimento é esse e como medimos melhor o sucesso desses negócios. O que você pensa sobre a questão?

GRAZIELLA COMINI | Há diferentes tipos de escala. A gente sempre associa a escala com um número maior de beneficiários e clientes, enquanto uma escala quantitativa. Mas há a escala scale up, que é medir o impacto de um negócios em políticas publicas. Quando uma iniciativa se torna política pública, é tiro de canhão. Enquanto se é um negócio de impacto, seu tiro é de andorinha, pequeno. Quando entra em uma oferta pública, há maior propensão de mudar uma situação. Quando a gente fala em scale deep, há maior diversificação na maneira de mensurar mudanças comportamentais. Então não há um modo de pensar nisso. O que ocorre é que há da parte de quem esta financiando um olhar para métricas quantitativas que medirão o sucesso dos negócios. Por isso a gente batalha para ter outros tipos de financiadores que acreditem em outros modos de medir esse sucesso.

Explorei muito as noções de tipos de inovação na minha tese de livre-docência. Vi que havia dois cenários muito interessantes e não excludentes. Há empreendimentos que geram inovação facilmente escalável quantitativamente. Esses são como um mergulho superficial no oceano. Há também inovações que têm como finalidade transformar determinadas realidades com mais profundidade, como se fizesse um mergulho com oxigênio e fosse lá no fundo do mar entender melhor as origens de um problema. Portanto, esses empreendimentos têm uma contribuição mais qualitativa.

Esses dois tipos de negócios deveriam ser foco dos financiadores. Há um risco de só acreditar naquele que esta escalando, mas cuida de um sintoma. Há dois tipos de rentabilidade. Uma é aquela consegue ter rapidamente uma geração de valores econômico mais rápido. A segundo, embora não perca dinheiro, têm uma rentabilidade econômica menor, mas com grande geração do valor socioambiental. Fundações empresariais que não tem essa gana pela geração de valor econômico poderiam apostar mais em empreendimentos com contribuições mais profundas para determinadas causas. Já fundos de investimento de impacto, pela sua própria dinâmica, apostam em negócios escaláveis.

AUPA | A pesquisa acadêmica pressupõe um posicionamento crítico diante de um fenômeno para entendê-lo em suas várias facetas. A pesquisa universitária consegue estudar esse fenômeno fugindo de um tom celebratório sobre ele?

GRAZIELLA COMINI | Você tem razão. Enquanto pesquisadores, sempre temos que ter um olhar critico, mas não destrutivo. A crítica deve ser no sentido de mostrar as incongruências, as dissonâncias, os erros, as falhas ou os alertas. No intuito de construir o ecossistema. Neste sentido, nosso atual problema de pesquisa é, para os negócios de impacto efetivamente se consolidarem, o quanto vão abrir mão da geração de valor socio-ambiental para serem mais lucrativos? Isso ainda é uma pergunta em aberto porque os empreendimentos brasileiros ainda estão em fase de consolidação. Na dinâmica brasileira, muitos dos empreendimentos estão se abrindo para fundos de investimento de impacto. Estamos vendo os primeiros IPO’s, as primeiras aberturas. Uma coisa são os fundos de impacto que você sabe da intenção, do propósito. Mas, quando se vende a parte desses fundos, quem serão esses novos sócios, como sera esse funcionamento e dinâmica? Quais cuidados teremos de governança para manter o propósito inicial diante do avanço das ofertas da capital? São perguntas ainda em aberto.

 

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