Uma plataforma digital para ajudar centenas de fundos rotativos solidários da região nordestina: essa é a ousada missão do Fundo Nordeste Solidário, que deve ser lançado ainda neste ano. Idealizado para realizar campanhas de captação coletiva para esse fim, a plataforma também tem como propósito dar visibilidade a esse tipo de prática econômica, que existe há mais de 30 anos no país e é mais comum no interior dos estados nordestinos. O projeto venceu em junho deste ano o edital D do Fundo BIS, e foi um trabalho iniciado anos atrás pela Rede Vencer Juntos de Fundos Solidários que o tornou possível.
“A rede nacional de fundos solidários vai trabalhar para conquistar uma Política Pública permanente de apoio a essas práticas, a nível federal e também nos estados”. A frase foi dita por Barbara Schmidt Rahmer, presidente da Rede Vencer Juntos, no encerramento do videodocumentário “Tecendo Redes, Entrelaçando Vidas”, de 2013. O vídeo relata a experiência dos fundos rotativos solidários no Nordeste, que, na época, contava com o apoio da então Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) para a realização desse trabalho.
O tom otimista se apoiava no mapeamento que havia sido financiado pela secretaria, que possibilitou o cadastro em um banco de dados on-line de centenas desses fundos no país, mais de 340 deles em toda a região Nordeste.
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Assista ao videodocumentário “Tecendo Redes, Entrelaçando Vidas”.
O enfraquecimento da SENAES entre 2016 e 2017, com rebaixamento à sub-secretaria, corte de verbas e, depois, a extinção da mesma, em 2019, deixou um pouco mais distante da realidade a questão das Políticas Públicas permanentes. Porém, o mapeamento conduzido entre 2011 e 2013 tem servido como base para a elaboração do Fundo Nordeste Solidário. Nessa primeira etapa, a Rede Vencer Juntos está realizando um processo de recadastramento, para ver quantos desses fundos mapeados ainda estão ativos. Barbara acredita que numa primeira fase de captação, seja possível apoiar entre 20 e 30 inicialmente, mas, a longo prazo, a meta é apoiar todos os fundos que ainda estiverem ativos.
Para entender o funcionamento de um fundo solidário, é preciso primeiro pensar no seu conceito básico, que é um grupo de pessoas que se organizam em torno de um objetivo comum e que, normalmente, não possuem muitos recursos e nem acesso a microcrédito fornecido pelos bancos. É o caso de agricultores familiares, artesãos, assentados de reforma agrária e quilombolas, por exemplo. A prática pode tanto se dar em um nível menor de complexidade, como uma “caixinha” realizada entre os membros do grupo, que se torna um consórcio comunitário, como também pela criação de associações, com CNPJ, que gerem recursos externos. Neste segundo caso, o fundo começa a partir de um recurso não reembolsável para quem financiou e os beneficiários se comprometem a devolver o recurso recebido ao fundo, para que outras pessoas possam ser beneficiadas, sejam elas do mesmo grupo ou, até mesmo, de outra região ou grupo gerido pela mesma associação ou uma entidade de apoio.
Da captação aos matchfunding
Um dos fundos rotativos que serão beneficiados pelo Fundo Nordeste Solidário é gerido pela Avesol (Associação Vencer Juntos em Economia Solidária), sediada em Bacabal (MA) e que atua em cidades da região do Médio Mearim e Cocais. Atualmente, são 28 grupos produtivos associados, que em sua maioria trabalham com agricultura familiar, como hortas caseiras e criação de pequenos animais, e também com artesanato e cultivo de plantas medicinais.
Cada grupo é constituído por, pelo menos, três famílias, que passam por um processo de formação de três a quatro meses antes de receber qualquer recurso do fundo. “Por ter mais de uma família, aquilo já cria um laço e eles já vão aprendendo a trabalhar no coletivo, sem individualismo. Aí já vamos trabalhando o associativismo”, explica Maria Santana Lago Freire, 46, presidente da Avesol. “Primeiro você tem que preparar as famílias para receber, para internalizar a questão da economia solidária. Elas têm que entender porque estão recebendo, para que possam valorizar”, conclui Santana.
A cidade de Bacabal (MA). Crédito: Google Maps.
Região de Planejamento do Médio Mearim. Crédito: Google Maps.
Região de Cocais (MG). Crédito: Google Maps.
Santana, como é conhecida, começou cedo sua trajetória nos trabalhos sociais. Seu histórico vem desde os 13 anos de idade nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), passando pela Pastoral da Criança, Pastoral da Juventude, Movimento Educação de Base (MEB) e Movimento de Educação Cidadã. Há cinco anos na presidência da Avesol, vê nos fundos rotativos solidários um exemplo de economia solidária que deu certo. “Desses 28 grupos, nós temos três grupos que ainda não conseguiram ficar em dia, mas foi justificado por conta da pandemia e antes por problemas familiares. Eles conversam conosco, mas é tranquilo a devolução, não sentimos dificuldade.”
Sobre um futuro aporte recebido do Fundo Nordeste Solidário, ela já tem em mente como ele será utilizado. Além de formar novos grupos e potencializar aqueles que já fazem parte do fundo rotativo gerido pela associação, o ponto chave está em focar nos jovens e apostar na divulgação do trabalho. “Tem muita gente que nem sabe que existe essa metodologia, que é possível ter uma economia solidária”, analisa Santana. Ela acredita que a facilidade da população mais jovem com o manejo das redes sociais e seu maior acesso aos meios de comunicação serão de grande valia para a expansão do trabalho que realizam.
Para incentivar os fundos a fazerem também uma captação local (por exemplo, com uma feijoada ou um leilão de animal de pequeno porte), a ideia é que o Fundo Nordeste Solidário seja um matchfunding, com a injeção de R$10 para cada real captado. A proposta serve para que os fundos possam se fortalecer no âmbito local, paralelamente à ajuda recebida. Com o apoio, o projeto também visa capacitar os fundos para que possam remunerar agentes técnicos. Atualmente, todo o trabalho é feito de maneira voluntária, desde visitas de campo à elaboração de relatórios e ofícios. “Essas pessoas são agricultoras, tem que sobreviver e trabalhar. Elas podem dedicar um tempo para a associação, mas nunca é o tempo necessário”, explica Barbara, que enxerga esse ponto como estratégico, principalmente quando uma associação está no começo.
Atividades da Rede Jovem. Clique nas fotos para ampliá-las. Créditos: Rede Jovem.
Os fundos e os negócios de impacto
O trabalho para o Fundo Nordeste Solidário se tornar uma realidade ainda tem um bom caminho a ser percorrido. O recurso de R$76 mil recebido do Edital D servirá para essa primeira fase de implantação da plataforma, mas o projeto também já foi inscrito em outros editais e a busca por parcerias pro-bono também está a todo vapor. Ao projetar o valor necessário para ajudar as centenas de fundos mapeados, a estimativa de Barbara gira na casa dos R$14 milhões. Por isso, a ideia é dar um passo de cada vez, ajudando um número de fundos dentro da realidade das rodadas de captação.
Outro grande objetivo do Fundo Nordeste Solidário é, no futuro, possibilitar a aproximação desses empreendimentos de economia solidária do setor de investimentos em negócios de impacto socioambiental. “Se os fundos conseguem se capitalizar com algumas dessas campanhas, no futuro, eles poderiam utilizar uma parte desse recurso que os produtores devolvem para reservar e usar como fundo de aval. Aí, conseguiriam acessar linhas de crédito”, explica Barbara. Com esse acesso às linhas de crédito, os fundos entrariam em um modelo de blended finance, não dependendo apenas de recursos não reembolsáveis.
A partir desse modelo e projetando um fortalecimento regional e coletivo de vários fundos, o cenário se tornaria mais atrativo como um negócio para investimentos de impacto social. Sobre o impacto em si, para Santana, ele já é percebido por quem gere esse tipo de empreendimento: “Então, hoje você já vai para a comunidade e percebe o agricultor, a pessoa do grupo defendendo o não uso do agrotóxico, a não queimada, revendo a questão da caça predatória. Isso é fruto de um trabalho, de conseguir internalizar isso aí na cabeça das pessoas. É muito gratificante.”
Projeto de vida – Barbara Schmidt Rahmer
Nascida em Dusseldorf, na Alemanha, Barbara Schmidt Rahmer, hoje com 62 anos, deixou sua terra natal aos 18 para fazer um intercâmbio nos Estados Unidos. A experiência que deveria durar dois anos no país, se transformou em uma porta de entrada para a formação acadêmica de Barbara, que ingressou na Universidade de Yale, onde se formou em Economia e Relações Internacionais. Seu primeiro trabalho foi na Fundação Ford, no México, e seu crescente interesse pelas questões sociais a levou para o UNICEF. Barbara pisou em solo brasileiro pela primeira vez no final dos anos 1980, quando veio trabalhar como assistente do representante do UNICEF no Brasil. Depois de dois anos em Brasília, passou a trabalhar exclusivamente junto à Pastoral da Criança, como consultora, e atuou na implementação dos primeiros projetos de geração de renda da Pastoral no país.
A partir dessa experiência, que já contou com a primeira introdução de fundos rotativos, Barbara chegou à conclusão de que deveria voltar a estudar para entender mais sobre finanças. De volta aos Estados Unidos, fez o seu MBA na Harvard Business School, em Boston, e resolveu entender o funcionamento da economia trabalhando no setor privado. Foram 10 anos no mundo corporativo, que serviram de grande aprendizado, até o ano de 2002, quando deixou seu emprego na, então, PricewaterhouseCoopers (hoje PwC) para voltar ao Brasil.
A convite da Pastoral da Criança, Barbara retomou o trabalho iniciado na década de 1990 e se tornou coordenadora dessa nova etapa, que se chamava Programa Vencer Juntos. “Voltei ao Brasil pensando que ia ficar dois ou três anos e nunca mais fui embora. Fiquei por aqui e fiz desse projeto a minha vida”, relata Barbara, hoje presidente da Rede Vencer Juntos, que nasceu desse programa coordenado por ela. Em 2007, o programa passou para a entidade parceira Fundação Grupo Esquel Brasil e os empreendimentos apoiados em oito territórios passaram a criar associações para dar continuidade ao trabalho. Em 2010, as associações criaram a Rede Vencer Juntos, que em, 2016, passou ao status de associação, como pessoa jurídica.
*Todas as imagens utilizadas na reportagem são anteriores ao período da pandemia de Covid-19.