Logo após o incêndio que destruiu o Museu Nacional em setembro de 2018, no Rio de Janeiro, o governo entrou com uma Medida Provisória 951/2018 que autoriza a captação de recursos via fundos patrimoniais, ou endowments. Meses depois, janeiro de 2019, foi sancionada já pelo presidente Jair Bolsonaro a lei 13.800/2019 que regulamenta a criação desses fundos. Trata-se de recursos vindos, principalmente, de doações que podem ser aportados para o mantimento de patrimônios públicos ou culturais. Para o governo, a iniciativa é vista como alternativa de captação para manter instituições públicas como o próprio Museu Nacional, algo que está longe de ser simples no Brasil.
Hoje, o que dificulta essa captação é o percurso que os recursos fazem até chegar ao seu destino, neste caso, o Museu. Normalmente, a doação vai para um fundo público, correndo o risco de ser contingenciada. Por isso, não existe a garantia de que aquele dinheiro irá chegar até a instituição pública. Assim, diante desse risco, a nova lei possui um modelo que define que a organização que gere o dinheiro deve ser diferente da que recebe o recurso, o que cria uma proteção para o fundo. A coordenadora de Advocacy do Grupo de Institutos Fundações e Empresas, o GIFE, Aline Viotto, explica que a tentativa de separar as organizações é para que a ofertante do fundo não responda por dívidas da receptora. Dessa forma, o fundo fica intacto não correndo riscos.
O caminho até aqui
Mas antes mesmo do poder executivo pensar na pauta, muitos atores trabalhavam para que projetos de leis avançassem no legislativo. Para entender melhor o caminho da regulamentação dos fundos patrimoniais, voltamos para 2011, quando o Instituto para o Desenvolvimento Do Investimento Social (IDIS) começou a trabalhar a pauta.
No ano seguinte, foi criado um grupo de estudos que se dedicou à análise do primeiro projeto de lei sobre o tema proposto pela deputada Bruna Furlan (PSDB/SP). Foi então que o IDIS, ao lado de parceiros, iniciou inúmeras reuniões e eventos para debater a importância de uma lei para regulamentar os fundos patrimoniais no Brasil. Os principais atores nas discussões foram o GIFE, Associação Paulista de Fundações (APF), Confederação Brasileira de Fundações (Cebraf), Levisky Negócios e Cultura, BNDES e Humanitas360.
A discussão sobre fundos patrimoniais também está contemplada no documento-base da Enimpacto, que estabelece os quatro eixos de atividades da Estratégia Nacional, dentre estes o fortalecimento dos intermediários e melhoria do macro-ambiente institucional e normativo. Este, especificamente, propõe avançar na criação de regulamentação dos fundos patrimoniais.
O GIFE também acompanhava os projetos sobre a questão desde 2012. O grupo possui o projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações, financiado pela União Europeia, que discute entre muitos temas, como criar um ambiente mais favorável para as organizações atuarem.
Em 2018, foi criada a Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, congregando mais de 60 organizações, incluindo o GIFE, e sendo liderada pelo IDIS. Assim que a Medida Provisória criou os fundos patrimoniais, foi iniciada a atuação da Coalizão no processo de melhoria do texto. O resultado foi um documento com a leitura inicial medida no qual eram elencados os principais pontos a serem aprimorados.
“A gente já tinha um acúmulo comum das organizações sobre quais eram os pontos importantes de existir uma legislação de fundos. A gente acompanhou todo o processo, tanto em reuniões com parlamentares para apresentar quais eram nossos pontos, quanto na audiência pública em novembro sobre a MP”, conta Aline Viotto. A Coalizão chegou a distribuir panfletos informativos sobre o tema dentro do parlamento em 2018, mas o fato de ser ano de eleição atrapalhou a discussão.
“Até a gente chegar nesta regulamentação que temos hoje, cada um tinha que tratar de forma diferente com contratos privados, faltava homogeneidade”, avalia Rachel Karan.
Aline explica que a redação inicial da MP era restrita a algumas causas de interesse público, como os direitos humanos e segurança pública. Por isso, uma das reivindicações foi a ampliação da legislação, garantindo que os fundos pudessem apoiar qualquer organização que trabalhasse em causas de interesse público.
Pelo fato da MP ser motivada pela necessidade de recuperação do Museu Nacional, o texto foi voltado para criar fundos que apoiassem principalmente instituições públicas. E, ao tratar do direito público, o texto era restritivo e excluía a participação de instituições privadas.
“A gente foi olhar internamente e, hoje, as organizações privadas que têm fundos, na verdade, possuem um arranjo diferente umas das outras e cada uma funciona de um jeito. O problema da MP é que ela engessava muito, pensando em um determinado modelo. A gente falava, ‘olha tem um universo aqui que já existe, está funcionando e é muito maior do que isso que vocês estão propondo”, explica ela.
O texto que se tornou a lei 13.800/2019 é mais flexível, garante Viotto, mas ainda não é o ideal. Além disso ampliou a abrangência das causas. Porém, a advogada afirma que um dos principais itens apontados, os incentivos, não foram atendidos. “Nós pedíamos muita atenção para a necessidade de ter incentivos para atrair doação, e esses foram vetados. Eles já não eram amplos, já eram restritos a organizações que apoiavam instituições públicas e, ao serem vetados, passaram a não servir também para as instituições privadas.” O único incentivo fiscal que restou, segundo a redação da MP, foi para a área de cultura.
Quais são os avanços?
A lei 13.800/2019 cria uma figura jurídica com o objetivo de gerir e captar recursos para sustentar no longo prazo instituições e causas. Os principais pontos são: os doadores contam com a segregação patrimonial protegendo, assim, os recursos de eventuais passivos gerados na organização apoiada e contam, ainda, com regras de governança, contratuais e de transparência.
Para Rachel Karam, coordenadora do Grupo Jurídico B do Sistema B, existia um vazio no que diz respeito a caracterização jurídica do fundo patrimonial antes da legislação. “As pessoas contratavam de várias formas, sem uma regulamentação própria, e agora existe um norte muito mais claro para qualquer financiado poder aportar recurso de fundo patrimonial, criar um fundo ou até investir em empresas com recursos de fundos”, analisa. “Até a gente chegar nesta regulamentação que temos hoje, cada um tinha que tratar de forma diferente com contratos privados, faltava homogeneidade. Com a nova leia, os fundos são geridos por organizações gestoras com responsabilidades e limites da atuação bem definidos.”
Os fundos patrimoniais, geralmente, possuem regramentos próprios sobre a forma de utilização de seus recursos e sua estrutura de gestão. O objetivo é garantir que os rendimentos do fundo sejam aplicados apenas nas atividades finais de ONGs ou Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e que sejam geridos de forma a assegurar sua preservação e capitalização, reitera Rachel. Antes da regulamentação, os fundos patrimoniais não possuíam personalidade jurídica própria, não havia definição precisa sobre quais são as obrigações dos endowments e os limites no relacionamento com as OSCs às quais estavam vinculados.
A importância da regulamentação, segundo Paula Fabiani, diretora-presidente do IDIS, é trazer segurança aos doadores, já que cria um instrumento de sustentabilidade para organizações e causas. “Além disso, terá impacto positivo no mercado de capitais, pois os endowments são investidores que trazem capital permanente, ‘paciente’ e com maior apetite para inovação.”
E os negócios de impacto com isso?
Para Rachel Karam, que também compõe a Enimpacto, os negócios de impacto podem se beneficiar dos investimentos, abrindo-se, assim, um novo formato e uma nova forma de captação. Já na análise de Paula Fabiani, é importante fomentar o surgimento de fundos patrimoniais no Brasil. Segundo o relatório da McKinsey & Company, 7% dos 114 bilhões de dólares investidos em impacto no mundo têm origem de fundações e fundos deste tipo.
No ponto de vista de Aline, o início do debate é positivo, “mas a nossa leitura [do GIFE] é que esse novo modelo vai ser mais útil para as instituições públicas do que para as privadas. Quando falamos de negócios de impacto, tratamos de organizações privadas, por isso tende a atingi-los um pouco menos”.