Hoje, 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e outros 100 milhões não têm coleta de esgoto, segundo relatório do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS). A dificuldade de implantar serviços de água e esgoto no país pode ser explicada por entraves políticos, escassez de recursos, além da desigualdade socioeconômica. Mas, com a aprovação do novo Marco Legal do Saneamento Básico, quais serão as perspectivas para se conseguir alcançar níveis crescentes de salubridade ambiental?
O novo Marco Legal do Saneamento Básico foi aprovado pelo Senado no dia 24 de junho de 2020, quando seguiu para sanção presidencial. No dia 15 de julho, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou 12 trechos deste documento, Lei 14.026, de 2020. Sobre esses vetos, que podem ser mantidos ou derrubados, há discussões sobre a eficácia da lei, como colocá-la em prática, os desfechos dos acertos políticos, além da fiscalização e da cobrança da sociedade.
Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica, salienta que o desafio está relacionado também à política. “As metas acabam sendo abandonadas e desrespeitadas quando se tem a mudança de governantes. O Brasil funciona de quatro em quatro anos ou de oito em oito anos”, explica. Na entrevista a seguir, ela enfatiza a importância da sociedade cobrar o governo, os entraves políticos, as metas para se alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e atuação da SOS Mata Atlântica. Confira:
AUPA – Como tem atuado a Fundação SOS Mata Atlântica?
Malu Ribeiro – Nossa principal atividade da causa de água limpa é a promoção do engajamento da sociedade na gestão de recursos hídricos. Para isso, temos um projeto que se chama Observando os Rios. Ele reúne em rede mais de três mil voluntários, os quais mensalmente vão para as margens dos rios de suas comunidades e realizam a análise da qualidade da água. Essa análise segue as normas nacionais e internacionais e classificam a qualidade desses rios com base no Índice de Qualidade das Águas (IQA) – este índice é definido pela legislação brasileira e pela resolução Conama 357 de 2005. É feita a classificação desta qualidade em cinco níveis: ótimo, bom, regular, ruim e péssimo. Dessa forma, todo dia internacional da água (22 de março) ou na semana da água, nós divulgamos um balanço do retrato da qualidade da água, das bacias hidrográficas da Mata Atlântica e das 12 bacias hidrográficas brasileiras. A Mata Atlântica abrange nove regiões hidrográficas. Há ainda os nossos monitoramentos participativos desenvolvidos por este projeto, observando os 198 rios dessas bacias hidrográficas. A partir do entendimento do que impacta na qualidade da água desses rios e mananciais, para melhor ou para pior, a sociedade tem instrumentos efetivos para participar da gestão e da governança dos comitês de bacia. Há ainda outro papel da SOS Mata Atlântica, que é advogar–se sobre as Políticas Públicas, para garantir a implementação da política nacional de recursos hídricos, além da inclusão social nesta Política Pública, principalmente com nossa principal bandeira de luta, que é o fim de rios de classe 4 no Brasil.
AUPA – Sobre o novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil, que teve 12 vetos, quais os prós e os contras? E como a Fundação SOS Mata Atlântica enxerga as condições para ampliar a participação do setor privado no saneamento, em especial a água e o esgotamento sanitário?
Malu Ribeiro – Em relação aos vetos do Presidente Bolsonaro, há um clima político muito desfavorável, que é a análise técnica desses vetos. Tudo que vem do Governo Federal tem, a priori, um impacto negativo no Congresso Nacional, particularmente pela forma com que o Governo vem tentando manter sua sustentação política. Ou seja, já recebe um olhar negativo por parte do Congresso. Há vetos que, pela análise feita pela SOS Mata Atlântica, deveriam ser mantidos pelo Congresso Nacional. Como aquele que veta o artigo 21 – que passa a competência de promover o licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos, além de serviços de saneamento aos municípios. É absolutamente inconstitucional essa atribuição que fere a Lei Complementar 140, que trata das competências concorrentes na análise de licenciamento ambiental. Os empreendimentos de saneamento básico não são empreendimentos de baixo impacto. As estações de tratamento de esgoto, estações de água, aterros sanitários e sistemas de drenagem urbana geram altos impactos. Os municípios não tem condição técnica e legal para essa análise. O licenciamento ambiental é objeto de outra tramitação no Congresso Nacional. E, por consequência, o veto no artigo 21 e ao parágrafo primeiro deste mesmo artigo, que diz não existir Órgão Municipal para cumprimento do estabelecido será competência do Órgão Estadual. Então, fere esse pacto federativo, assim como os princípios do licenciamento ambiental. Na nossa leitura, esses vetos são extremamente importantes do ponto de vista técnico. Porém, no clima político é desfavorável a uma análise. Provavelmente todos os vetos do presidente sejam derrubados.
AUPA – Quais os desafios da criação de metas de universalização de acesso ao saneamento pelo Brasil e como o ecossistema de impacto pode atuar nesta mediação? Vale lembrar que a água é, sobretudo, um direito universal e não uma mercadoria.
Malu Ribeiro – O desafio para criar metas de universalização, na verdade, não é para criar meta, mas, sim, para cumprir as metas. O Brasil tem uma cultura de empurrar para frente as metas definidas. No Estado de São Paulo, por exemplo, a universalização do saneamento já foi estabelecida anteriormente por governadores para 2018. Contudo, já estamos em 2020 e ainda estamos longe deste marco. Foi prorrogado para 2022 e agora passa para a Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS/ONU), sendo que o marco estabelecido na nossa legislação é um pouco além de 2030. Os desafios para manutenção desta meta são justamente os instrumentos de controle social. Quem acompanha e garante esses cumprimentos é a sociedade. Veja que em outros grandes programas de saneamento ambiental estabelecidos no Brasil, como a despoluição do Rio Tietê, da Baía de Guanabara, da Baía de Todos-os-Santos e o Lago Guaíba foram contratos firmados durante a ECO-92. Na oportunidade, se estabeleceu a Agenda 21 e, principalmente, a declaração dos direitos da água.O único estado que continua com contrato de despoluição firmado naquela época é São Paulo, com o Banco Interamericano de Desenvolvimento a cargo da Sabesp -trata-se de um programa de despoluição do Tietê e que traz metas para 46 anos. Porém, não há uma cultura de política pública no Brasil de longo prazo. Infelizmente, mesmo quando há uma reeleição ou uma continuidade de partidos políticos, como é o caso do PSDB no estado de São Paulo, as prioridades, se não forem pressionadas pela sociedade, são trocadas e abandonadas, porque os acordos políticos mudam. As prioridades mudam e a questão do saneamento é uma questão estratégica, ela tem que entrar na agenda estratégica do Brasil. Esse é o desafio. O marco regulatório dos resíduos sólidos já estabelecia metas claras para o fim de lixões no Brasil e poucos estados e municípios cumpriram estas metas – por isso tais metas são sempre prorrogadas.
AUPA – O saneamento básico está nos ODS da ONU. Poderia falar mais a respeito?
Malu Ribeiro – Deveríamos estar falando de saneamento ambiental, onde a integramos as ações de saneamento básico e de gestão de recursos hídricos com as soluções baseadas na natureza, ou seja, com infraestrutura verde e tecnologia social e física para esses desafios. Nos ODS, esses objetivos estão escritos na meta 6 que é Água Limpa e Saneamento.A água limpa é a causa que a SOS Mata Atlântica abraça como um dos seus pilares de atuação. E nessa meta 6 há indicadores que dizem respeito ao entendimento de que o acesso à água é um direito humano e também um direito ecossistêmico. Afinal, não podemos pensar na água só para fins de consumo humano ou necessidades. é preciso também olhar para água como um elemento vivo e estratégico para os ecossistemas, para o equilíbrio da vida na Terra como um todo. Os ODS trazem uma meta fundamental e um peso importante na participação da sociedade, na governança da água, na cooperação internacional para o desenvolvimento de tecnologias, sobretudo na participação efetiva das comunidades locais, ribeirinhas, das comunidades que vivem em áreas protegidas e que garantem os serviços ambientais, principalmente atrelado à conservação das florestas e dos ecossistemas, para que tenhamos sustentabilidade no uso da água e possamos minimizar os eventos climáticos extremos.
AUPA – Quais as principais consequências da falta de saneamento básico?
Malu Ribeiro – As consequências da falta de saneamento básico são visíveis. São doenças de veiculação hídrica, escassez, desrespeito ao princípio do direito humano de acesso a água de forma igualitária. Aquelas populações e comunidades em condições vulneráveis não têm acesso à água. Nós temos realidades perversas e a pandemia do Covid-19 escancarou essa desigualdade no Brasil. Ao mesmo tempo, há outras formas de exclusão hídrica bastante perversas, como é o caso da transposição do Rio São Francisco, onde há fiscalização de segurança armada. Isso para que a população ribeirinha não possa pegar a água pelos canais de irrigação. Isso mostra uma realidade que nós não estávamos acostumados ou pelo menos não nos atentávamos a isso. Mas a exclusão hídrica é real e é perversa no Brasil. É você ter uma sociedade que tem água envasada, tratada e que consome água mineral, enquanto uma outra população na mesma cidade consome água pelos chamados gatos de água, ou seja, furta a água das redes de saneamento, porque mora em áreas irregulares. A nossa legislação de saneamento não permite que se leve água e esgoto tratados para populações que moram em áreas irregulares em grande número. São mais de dois milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, sobretudo nas áreas de manancial, nas comunidades de Rio de Janeiro e em outras tantas comunidades dos grandes centros urbanos do Brasil, como Recife, Fortaleza, dentre outras localidades.
AUPA – Como resolver o problema de muitas empresas estatais que, por não terem que obedecer contratos com metas de desempenho e nem se submeterem a uma fiscalização rigorosa, não cumprem seu papel?
Malu Ribeiro – É importante o ingresso de capital privado para este setor, mas não é a salvação. A questão chave para avanços é o cumprimentos de metas, principalmente da Agenda 2030, que são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. E da própria meta estabelecida nesse novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil, que é a capacidade do Poder Público de exercer uma boa regulação e de garantir transparência e participação da sociedade civil – essa é a chave que fará a diferença.
AUPA – Qual sua opinião sobre o boom de agroflorestas e como elas podem ajudar na preservação de espécies da Mata Atlântica e nos mananciais.
Malu Ribeiro – É extremamente importante a noção de sistema de agroflorestas. Isso para as florestas urbanas, parques lineares, áreas protegidas e de unidades de conservação. E para o bem-estar das nossas populações, dos negócios e para a diminuição de uso de veneno. Para que a tenhamos uma vida mais saudável, mas isso deve estar aliado com instrumentos de valoração econômica. Por exemplo, o pagamento por serviços ambientais, a cobrança pelo uso da água. Isso da forma que se premie e se incentive com retorno financeiro aqueles que as protegem, que preservem e que garantam a integridade dos serviços ambientais.
AUPA – Como negócios e meio ambiente podem caminhar juntos, considerando essa crise multifacetada que vivemos?
Malu Ribeiro – Considerando a crise multifacetada que vivemos, nas soluções baseadas na natureza encontramos valores muito expressivos de atividades econômicas que dependem da floresta. A proteção da floresta, das águas, das áreas costeiras e dos ecossistemas são, na verdade, gatilhos para um desenvolvimento econômico sustentável. Isso entra na conta do nosso ciclo positivo de recuperação pós-pandemia. Acho que essa é uma grande saída e alternativa para o Brasil e para a sustentabilidade, sobretudo das nossas regiões metropolitanas. A preservação ambiental e a economia estão intimamente ligados. É impossível pensar na economia e no desenvolvimento econômico hoje sem andar de mãos dadas com a preservação ambiental. Nós precisamos de uma economia verde, de uma economia de baixo carbono e de soluções baseadas na natureza. O mundo tem apontado para isso.
AUPA – Muito tem se falado em economia sustentável, ESG (Ambiental, Social e Governança), ao mesmo tempo que na reunião ministerial de 22 de abril, Ricardo Salles, responsável pelo meio ambiente, falou sobre “Deixar a boiada passar” – acerca de flexibilizações sobre a legislação relativa ao meio ambiente. Comente, por favor.
Malu Ribeiro – Felizmente muito tem se falado sobre economia sustentável, ambiental, social e de governança. Mas a reunião ministerial do dia 22 de abril deixou vazar para a sociedade a intenção do Ministro do Meio Ambiente de deixar a boiada passar, com flexibilizações acerca da legislação sobre o meio ambiente. Infelizmente, vemos o Ministro do Meio Ambiente como um mero cumpridor de metas, na contramão da história, na contramão do desenvolvimento sustentável e econômico do mundo. Ele cumpre as metas dessa contramão da história, estabelecidas pelo chefe maior, que é o Presidente da República – e que, por sua vez, assumiu dizendo que iria desregulamentar a legislação brasileira e que não demarcaria um centímetro de terra indígena dentre outros absurdos. São mais de 100 normas flexibilizadas em curtíssimo espaço de tempo, um dos maiores retrocessos de direitos e de conquistas da sociedade brasileira na agenda ambiental. E é justamente sobre a Lei da Mata Atlântica que havia a intenção denunciada nessa fatídica reunião. A intenção do próprio ministro de mudar a abrangência do domínio da Mata Atlântica, que é a floresta de maior biodiversidade do planeta – considerando vários pontos de seu bioma como aquele de maior concentração de biodiversidade -, mas também de maior ameaça justamente por concentrar grande populações humanas. Porém, é, sobretudo, a floresta que presta os mais relevantes serviços ambientais e ecossistêmicos para toda esta população que vive sob seu domínio nos 17 estados brasileiros onde ela ocorre, com as principais capitais, as mais adensadas e mais economicamente ativas do país e da América do Sul. Então, desregulamentar a lei da Mata Atlântica é passar a boiada sob sua lei, que é um patrimônio nacional protegido pela Constituição Federal de 88, reconhecida em vários trechos pela UNESCO como patrimônio da humanidade. Ou seja, é intensificar riscos de eventos climáticos extremos para a nossa população, além de promover o estresse hídricos, que é escassez por perda de qualidade de água.
AUPA – A Fundação SOS Mata Atlântica apresentou o retrato da qualidade de 220 rios brasileiros, em 2019, e muitos estão ameaçados. Quais os desafios e os avanços desde então?
Malu Ribeiro – Os desafios para os 220 rios brasileiros, que incluem reservatórios e mananciais de abastecimentos, são erradicar os rios de classe 4 no Brasil e garantir o aproveitamento de uso múltiplo da água em todos os rios brasileiros. Queremos principalmente que os rios urbanos sejam cartões postais das nossas cidades, como acontece nos outros países desenvolvidos. Há rios poluídos nas cidades brasileiras como se eles fossem espelho do nosso subdesenvolvimento e da nossa exclusão social em relação ao saneamento e à saúde pública.
Para saber mais, acesse a pesquisa.
Classificação das águas dos rios
Esta classificação é feita de acordo com a resolução 357/2005 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente).
São cinco classes:
Classe especial: ao abastecimento para consumo humano, com desinfecção.
- Classe 1: ao abastecimento para consumo humano, após tratamento simplificado.
- Classe 2: ao abastecimento para consumo humano, após tratamento simplificado.
- Classe 3: ao abastecimento para consumo humano, após tratamento convencional.
- Classe 4: águas destinadas à navegação; harmonia paisagística; e aos usos menos exigentes.