O abuso sexual na infância, infelizmente, é uma das diversas problemáticas que o Brasil precisa lidar. Os números endossam a urgência de ações para o tema: o país é o quarto no mundo em casamentos infantis, segundo dados de 2019 da UNICEF. O Ministério da Saúde aponta que 70% das 527 mil pessoas estupradas, anualmente, são crianças e adolescentes.
Dados do Disque Direitos Humanos (Disque 100) traçam o perfil das vítimas desse tipo de violência, sendo 82% do sexo feminino. No caso do abusador, 87% são homens e 64,8% possuem vínculo familiar ou são conhecidos da vítima.
Segundo Albertina Duarte, coordenadora do Programa Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo, grande parte das meninas abusadas sofrem desde a infância, mas só falam na adolescência. “Isso porque é na fase da juventude que elas têm mais contato com informações e reconhecem que aquele tipo de carinho não era normal”, comenta a médica doutora em Ginecologia.Por isso, especialistas defendem que a prevenção aliada à educação na infância é um dos caminhos mais importantes de combate à violência sexual.
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Neste sentido, fazer com que a criança entenda as formas de se proteger é o objetivo da cartilha “Eu Me Protejo”.
A coautora do projeto, Patrícia Almeida, teve como principal motivação para criar a cartilha a trajetória pessoal com a filha caçula com Síndrome de Down. Após 10 anos fora do Brasil e a experiência de não ter uma escola regular e inclusiva durante o período em que ficou na Suíça, Patrícia encontrou no desenvolvimento da cartilha uma maneira de proteger a filha que teve pouco contato social. “Muitos pais não sabem por onde começar. Como eles não tiveram a prática em casa, ficam constrangidos.
A cartilha é bem didática, não há conteúdo de nudez para evitar constrangimentos, por exemplo”, conta Patrícia. A cartilha ensina de forma simples quais são as partes íntimas, a importância de proteger esses locais e de que toques íntimos não devem ser considerados carinhos. “Nosso mote é educar a criança para proteger o próprio corpo e respeitar o do outro”, afirma a coautora do projeto.
O material é acessível a todos os públicos, está traduzido em português, inglês, espanhol e libras. Também é possível encontrar em videolivro português e em libras. A linguagem simples e desenho universal para aprendizagem são as técnicas que norteiam a cartilha. O recorte da faixa etária é de 0-8 anos.
Conteúdos como a cartilha “Eu Me Protejo” reforçam o papel da sociedade em introduzir a temática de forma consciente em diferentes espaços. “Falar sobre abuso e sexualidade não exacerba o desejo da criança. Pelo contrário, ele previne. Todos os países onde se falou sobre abuso, foi o grande caminho para a prevenção e a denúncia. O silêncio deixa marcas na alma, físicas e psicológicas”, defende Albertina Duarte.
Outro benefício de pautar o assunto é o incentivo à denúncia. Estudos apontam que menos de 10% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são denunciados. Um dos desafios para as denúncias serem feitas, além do medo, é o processo judicial pelo qual a criança é exposta, em que muitas vezes ela precisa ficar na presença do abusador e revive a violência várias vezes.
A Lei n° 13.431/2017, conhecida como Lei da Escuta Protegida, estabelece o apoio de diferentes áreas para a criança vítima de violência sexual e rompe com o modelo de depoimento tradicional. “É uma lei importante para romper o ciclo de impunidade. Ela fala para organizar toda a rede (justiça, educação e saúde) para receber a criança e estabelecer um pacto municipal com um protocolo comum para evitar revitimização”, conta Itamar Gonçalves, gerente de Advocacy Childhood Brasil.
A Childhood Brasil tem participação neste processo por meio do projeto Depoimento Especial, que oferece metodologias não revitimizantes para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de abuso sexual. O projeto orienta profissionais neste processo, onde é recomendado um espaço acolhedor em que a criança não precise encontrar o agressor e que tenha uma equipe multidisciplinar capacitada em entrevista forense com crianças. Outra ferramenta é a gravação do depoimento para evitar a repetição da história, que representa outra violência para a vítima.
“A mensagem de estarmos em ano eleitoral, os candidatos à prefeitura podem fazer a diferença. A grande maioria dos municípios do país não implementou a Lei da Escuta Protegida. É importante que isso seja feito”,
defende Itamar Gonçalves.
Um dos últimos recursos para a criança vítima de violação de direitos – e isso pode ser ou não a violência sexual – é o acolhimento em uma casa-lar. A ONG Aldeias Infantis SOS Brasil atua nessa frente mais prioritariamente com foco em fortalecimento das relações para evitar a desvinculação da criança do ambiente familiar. “Dentro do que chamamos de violação de direitos, o abuso é uma das possíveis causas do acolhimento.
Não deveria ser, pois, quando a criança é abusada, quem deveria sair do contexto familiar é o abusador, e não a criança”, pontua Olivia Valente, coordenadora de Serviços no Acolhimento na Aldeias Infantis.
Como ferramenta de fortalecimento, a Aldeias Infantis utiliza roda de conversa com crianças e famílias para fortalecer a comunicação. “É através da confiança que os abusadores vão atuar, se não tiver um vínculo com os pais, fica difícil”, comenta Olivia.
Esses aspectos endossam a necessidade de se olhar para o abuso sexual infantil sob diferentes perspectivas. Tanto a esfera da prevenção quanto a de cuidados pós-violência são fundamentais para o enfrentamento dessa violação de direitos.
Colocar o abuso sexual infantil no centro das discussões e ações de Políticas Públicas é garantir e proteger os direitos das crianças e adolescentes, já previstos no Estatuto da Criança de Adolescente.