Não é de hoje que os cientistas nos alertam sobre os riscos das mudanças climáticas para o planeta. Nos anos 1990, as regiões geladas entraram nas nossas casas via telejornais com imagens impressionantes do desprendimento de icebergs, da perda de área de gelo nas calotas polares, de ursos polares vagando solitários em blocos de gelo. Isso nos deu uma medida da tragédia anunciada.
Pouco mais de 30 anos depois, as feridas provocadas pelo ser humano no nosso grande e velho planeta Terra se aprofundaram. Infelizmente, como acompanhamos no Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado recentemente, e na 76ª Assembleia Geral da ONU, o aquecimento global está acelerando transformações no meio ambiente.
As mudanças climáticas alteram a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas. As tartarugas marinhas, por exemplo, estão vulneráveis a essas transformações.
Seu longo e complexo ciclo de vida é marcado por extensas migrações, variação na alimentação e uso de diferentes habitats nas diversas fases de vida. A incubação dos ninhos é diretamente dependente da temperatura das áreas de desova.
“O cenário de mudanças climáticas atual prevê alterações na dinâmica das correntes marinhas e, consequentemente, na disponibilidade de alimentos. Haverá feminilização das populações, uma vez que temperaturas acima de 29°C geram mais fêmeas por ninhada, além de diminuição do sucesso de eclosão dos filhotes, dado que temperaturas muito altas podem inviabilizar o seu desenvolvimento, aumento do nível do mar e consequente diminuição das áreas disponíveis para desova”, afirma Neca Marcovaldi, coordenadora nacional de Pesquisa e Conservação da Fundação Projeto Tamar.
O mar vai ficar mais triste e pálido. Nossos olhos leigos ainda não percebem, mas os estudiosos identificaram um processo de branqueamento dos corais. “Mergulhei no atol Kiritimati, no meio do Pacífico, em 2016. Esse período coincidiu com o evento de um El Niño muito forte, que deixou a água 3oC mais quente. Vi corais branqueados ou mortos. Foi uma sensação muito ruim, como a de estar numa cidade abandonada”, conta Guilherme Longo, pesquisador e professor do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O coral, conforme descreve, faz uma associação com a alga, que dá sua coloração. Quando a água fica muito quente, a alga se reproduz demais dentro do coral e produz oxigênio, que é muito reativo – como a água oxigenada que usamos sobre uma ferida para expulsar as bactérias. “Com esse oxigênio, o coral fica estressado, expulsa as algas e fica branco”.
Como o degelo das calotas polares, os eventos de branqueamento de corais também começaram a ocorrer na década de 1990 e vêm se intensificando desde então. Segundo Longo, antes, observava-se um evento a cada 10 anos, posteriormente, a cada cinco anos, a cada dois anos e até em anos seguidos.
Esse é um dos principais sinais de que algo mais grave está por vir. A analogia entre os corais e o canário nas minas de carvão explica bem. Quando exploravam carvão em minas profundas, os mineradores levavam um passarinho dentro de uma gaiola para identificar quando acabava o oxigênio. Se o passarinho caísse, significava que havia pouco oxigênio e os mineradores tinham que retornar à superfície. “Os corais, juntamente com os eventos de degelo, são os canários das minas de carvão, porque eles levantam essa bandeira de alerta”, compara o docente.
Ana Paula Prates, especialista sênior do Instituto Talanoa e professora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, concorda. O recife de coral é um grande alerta para a humanidade. “Ele tende a ser o primeiro ecossistema a extinguir, em termos funcionais. Isso significa que perderá todas as suas características funcionais e o ecossistema perderá todos os seus serviços”, resume.
O projeto da UFRN
Longo e seus colegas de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte usam modelos matemáticos para tentar prever como as espécies serão distribuídas no futuro na costa brasileira e como se irão relacionar. Para isso, fazem testes em laboratório e conseguem simular, em um aquário, as condições dos oceanos daqui a 50 anos e ver como os animais respondem ao aquecimento.
“Os recifes brasileiros já mudaram nesses últimos 100, 200 anos. Perdemos recifes, corais, espécies de peixes — eles, inclusive, estão ficando menores. Já temos um ecossistema alterado”, explica o docente.
Os pesquisadores também perceberam que as espécies tendem a mudar de lugar e haverá menos refúgios, o que aumentará a vulnerabilidade dos corais. A forma como os animais interagem também será diferente — haverá menos peixes herbívoros e isso pode aumentar a dominância de algas. “O aumento de temperatura nas regiões tropicais deixará o ecossistema menos eficiente e com menos diversidade”, aponta.
Atualmente, a equipe trabalha no monitoramento da saúde dos corais em campo, nas ondas de calor, e também monitora sua recuperação. Uma das constatações é que as respostas variam entre as espécies de corais. Algumas sofrem muito com as ondas de calor e têm alta mortalidade, outras, mais dominantes, têm mortalidade mais baixa com as ondas de calor.
Perdas e danos imensuráveis
Não existe lugar no mundo que não será afetado pelas mudanças climáticas. E quanto isso vai custar, em termos de biodiversidade? Para a especialista Ana Paula Prates, é incalculável. Da mesma forma que é impossível dizer qual será o impacto humano e financeiro.
“Perdendo o recife, não vou perder só ele. Se a Terra esquentar 1,5oC, tanta coisa estará sendo perdida e não temos como dimensionar o que esse desequilíbrio gerará. Perdendo o recife de coral, perco o pescado, o turismo, a fonte de alimento e também a subsistência de quem depende da pesca. Mas não é só isso. Toda população vai sentir, pois será uma onda que desencadeará desequilíbrios em tudo”, afirma a pesquisadora.
Os recifes não só nos fornecem recursos pesqueiros e turisticos, já que são as áreas mais bonitas da costa brasileira para praia, mergulho e esportes náuticos. Há ainda a questão da biodiversidade associada, uma vez que são as áreas mais biodiversas do oceano e abrigam 25% das espécies marinhas.
Dos recifes saem inúmeras substâncias para fármacos, cosméticos e muitos outros usos. São as florestas tropicais dos oceanos.
Mas um ecossistema marinho degradado também traz perdas de serviços, como a proteção costeira. Segundo Guilherme Longo, há lugares no Nordeste que têm linhas de recife paralelas à linha da costa que seguram a quebra de ondas, de modo que as ondas quebram no recife, ao invés de quebrar na praia.
Sem falar que a natureza conta com três principais sumidouros de carbono – o solo, as florestas e os oceanos. Quando olhamos para o horizonte do mar, ele está em contato com a atmosfera e faz troca de gases o tempo todo, absorvendo carbono.
Ainda dá tempo
As projeções do IPCC são extremamente lastreadas e inequívocas. Longo explica que, o que elas trazem não é nem uma grande mudança de cenário em relação ao último relatório, mas, sim, a certeza de que tudo isso vai acontecer. “As previsões estão mais ajustadas. E, uma das coisas que percebemos nas nossas modelagens – e que é corroborado pelos dados do IPCC -, é que as grandes mudanças ocorrerão dentro de 30 a 50 anos”.
Por um lado, é um período muito curto e rápido. Por outro, são 30 anos para mudar de curso com base em informações sólidas. É um privilégio saber o que acontecerá no futuro para mudar a rota presente. Se daqui a 50 anos perdermos a biodiversidade e todos os benefícios que ela nos traz em florestas, manguezais e mares, terá sido uma escolha nossa enquanto humanidade.
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