Guilherme Checco: “As mudanças climáticas estão impactando a forma como as chuvas ocorrem. Com isso, vem a necessidade de criarmos sistemas mais resilientes”

Coordenador de Pesquisas do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) reflete sobre o papel do setor de saneamento básico para a proteção dos mananciais e a importância deles para a segurança hídrica

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A crise hídrica bate à porta no Brasil. Apesar de o debate em torno deste problema estar voltado aos desafios no abastecimento de energia elétrica, o setor de saneamento básico também exige atenção: ele é o segundo que mais utiliza água no Brasil, com 23,8% da demanda de uso do recurso, segundo dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. 

A relevância deste setor para a sociedade posiciona o acesso à água como um direito humano. “Esse é um debate que ainda precisamos fazer aqui no Brasil. O reconhecimento explícito do nosso ordenamento jurídico de que o acesso à água potável e aos serviços sanitários são complementares entre si. Esse reconhecimento significa que o Estado (em todos os seus níveis de governo), inclusive as agências reguladoras, têm a obrigação de garantir as condições da melhoria progressiva deste acesso. E isso significa colocar todos os esforços disponíveis, sejam eles financeiros e não financeiros”, destaca Guilherme Checco, Coordenador de Pesquisas do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)

O Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) lançou uma plataforma chamada “Saneamento e Segurança Hídrica” com diversas propostas, boas práticas e reflexões para a melhoria do setor. Nesta entrevista, Guilherme Checco aborda alguns pontos da iniciativa. Confira.

AUPA – O abastecimento urbano está em segundo lugar dentro daqueles que mais utilizam água no Brasil. Em um momento de crise hídrica que, provavelmente, poderá afetar o abastecimento de água, como o setor deve se estruturar?
Guilherme Checco – Trata-se de um setor que está organizado no seguinte sentido: a captação e a distribuição da água estão dentro da lógica de operação e estruturação do sistema. Mas, tudo o que antecede isso, ou seja, todas as condições ecossistêmicas para que aquela água exista naquele local, com aquela qualidade, naquela quantidade, não é considerado um problema do setor de saneamento básico.  A nossa ideia é inverter essa lógica do “cano para frente” e colocar o setor como parte da solução também. Ele precisa fazer parte da criação de sistemas mais resilientes. 

 

AUPA –  Quais os perigos de o sistema de saneamento básico continuar com essa lógica “do cano para a frente” e por que ser resiliente é necessário?
Guilherme Checco – As mudanças climáticas estão impactando a forma como as chuvas ocorrem. Isso nos coloca em um cenário de adaptação, e, portanto, vem a necessidade de criarmos sistemas mais resilientes – inclusive sistemas humanos, ou seja, a forma como nos comportamos e consumimos. Temos uma série histórica centenária observando como as chuvas caem nos mananciais. Mas, hoje, esse histórico não é um instrumento adequado para planejar nossas ações futuras, pois os padrões de chuva estão sendo alterados de forma muito significativa. Temos uma possível contradição: projeções, inclusive as do próprio IPCC, que foram lançadas em 2021, indicam que tenhamos volumes maiores de chuvas. Apenas com essa informação podemos imaginar que estamos confortáveis em termos de segurança hídrica. Entretanto, essas chuvas ocorrerão em volume maior na média, mas estarão em períodos muito mais concentrados. Com isso, no restante do ano, teremos um período mais longo de seca. Isso representa um cenário de atenção para a segurança hídrica. O setor de saneamento básico – mas isso não é uma crítica exclusiva a ele – não está muito atento a esse aspecto e não incorporou essas projeções nos seus modelos, instrumentos de trabalho e na política pública. 

 

AUPA – Para garantir a segurança hídrica, um dos pontos defendidos pela proposta do IDS é a proteção dos mananciais. Mas é importante darmos um passo para trás e explicar o que são os mananciais e o papel deles neste cenário de segurança hídrica.
Guilherme Checco – Manancial é toda fonte de água, seja superficial ou subterrânea, que é utilizada para abastecimento público. Essa fonte pode ser um reservatório ou o próprio rio. Em linhas gerais, o manancial é um corpo hídrico que tem a finalidade específica de viabilizar água para o abastecimento humano. Neste sentido, temos um ponto de atenção fundamental: precisamos de uma estratégia para proteger essas águas de forma adequada, de modo que a água, que é a matéria prima do setor de saneamento básico, exista, de novo, na quantidade e na qualidade necessárias.

E, para isso, é importante destacar a importância da floresta. Ou seja, precisamos conservar a vegetação nativa. Há metodologias para identificar os pontos em que existiam florestas e quais são prioritárias para restauração. Além disso, envolve também a adoção de práticas agrícolas sustentáveis.

AUPA – Quando falamos que práticas agrícolas sustentáveis influenciam na proteção da vegetação nativa das áreas de mananciais, quais são as propostas?
Guilherme Checco – Normalmente, os mananciais estão em áreas mais rurais, com atividades agropecuárias. É possível criar um círculo virtuoso com aqueles agricultores para que eles sejam parceiros dessa solução. Com isso, temos a integração entre saneamento e agricultura. Nossa proposta de um programa de proteção dos mananciais é um pacote completo: estratégia, identificação de áreas prioritárias onde acontecerão determinadas intervenções; uma governança evidente, com mecanismos definidos de transparência e controle social; e participação social para criar e acompanhar essas ações. 

 

AUPA – Dentro deste pacote de estratégias para o setor de saneamento básico e para a proteção dos mananciais, há uma proposta sobre o uso das tarifas. Poderia explicar mais sobre a ideia?
Guilherme Checco – A tarifa de água e esgoto é a principal fonte de investimentos desses recursos no Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico. Quando analisamos os últimos 20 anos, é possível verificar que 80% do investimento em água e esgoto desse período veio da tarifa paga pelos consumidores. Esses investimentos não são provenientes da União, nem dos estados e dos municípios. Os recursos vieram dos consumidores conectados ao sistema de saneamento básico. A tarifa de água e esgoto é um instrumento financeiro relevante. A agência reguladora possui uma estrutura para defini-la. Então, ela é uma fonte importante para viabilizar essas ações. Uma das conclusões da nossa simulação é que, apesar de importante, a tarifa sozinha não dá conta de toda a demanda para a mudança que precisamos. 

Implementação e acesso a sistema de esgoto é umas das principais iniciativas para evitar o desperdício de água potável que chega a 39,3%, aponta SNIS 2019. Crédito: PXhere

AUPA – Há uma defesa de que a tarifa é um mecanismo importante para garantir os recursos financeiros da proteção dos mananciais. Ao falar de revisões tarifárias, vocês falam em aumento ou em melhor distribuição desses recursos? Como é a visão do IDS sobre isso?
Guilherme Checco – Em primeiro lugar, todo regramento jurídico do saneamento básico é a agência reguladora quem define. Nesse processo de definição, também por força legal, a agência reguladora precisa fazer esse trabalho a partir de um processo de consulta e diálogo com o prestador e com a sociedade. É possível se deparar com dois termos: reajuste e revisão. O reajuste acontece anualmente, e normalmente é aplicado à inflação – tem alguns fatores de correção, mas é, de fato, um ajuste. Já a revisão tarifária é o momento em que a agência reguladora abre a tarifa e lança um olhar mais aprofundado. Essas revisões, geralmente, ocorrem de quatro em quatro anos. Algumas agências adotam o período de cinco anos. Trata-se de uma oportunidade para a sociedade se apropriar desse debate e participar disso. Ainda é um debate muito técnico, e modo que é necessário melhorar os fóruns das audiências públicas, para que elas sejam um ambiente de diálogo. Além disso, os documentos apresentados pelas agências reguladoras são extremamente densos e técnicos; as agências reguladoras, no Brasil, ainda precisam aprimorar muito a sua sensibilidade e a atenção que dão para a relação com a sociedade. Contudo, é um momento importante, do ponto de vista da cidadania e da democracia. 

Portanto, a nossa proposta é a de que essas revisões sejam encaradas como janelas de oportunidade para aprimoramento da tarifa. E um dos aprimoramentos fundamentais que nós entendemos que seja muito razoável é esse: viabilizar recursos para proteger os nossos mananciais. 

 

AUPA – Estamos vivendo um momento delicado de crise econômica pelo cenário da pandemia. Aumentos de preços têm sido constantes na vida da população. Como colocar o debate de reajuste tarifário neste cenário?
Guilherme Checco – Alguns lugares já fizeram esse debate. Desde 2017, Minas Gerais tem um programa específico em que a agência reguladora daquele estado definiu que parte das tarifas, no caso 0,5% da receita da empresa, é destinada ao programa de mananciais. Em Santa Catarina, Balneário Camboriú estabeleceu essa prática em 2018 – também com as suas especificidades -, mas a linha mestre de parte da tarifa ser específica para essa finalidade também está acontecendo. 

É um esforço que envolve recursos financeiros. Concordo que endereçar o aumento de tarifa é delicado e já vivenciamos isso nas revisões tarifárias passadas – especialmente na conjuntura atual de dificuldades econômicas. E trata-se de um debate que não é exclusivo sobre valor. É isso que o IDS busca batalhar, inclusive com a agência reguladora. É necessário que seja um debate sobre o que está sendo feito, quanto custa e quais são as regras. A sociedade deve saber para onde vai esse dinheiro. É fundamental que haja prestação de contas, avaliação dos resultados daqui um ou dois anos. Para garantirmos as ações corretas, a tarifa de água e esgoto não pode impactar mais de 3% da renda familiar. Outro ponto é que nas projeções e simulações que fizemos, também consideramos a questão da capacidade de pagamento. Nas projeções que o IDS fez, estimamos o quanto a tarifa média seria um incremento para viabilizar recursos muito significativos. E mais: quando detalhamos por categoria de usuário, primeiro de tudo, a partir da regulação, é possível proteger famílias em situação de pobreza. É possível que seja um esforço coletivo, inclusive com essa calibragem. É possível deixar famílias que estão cadastradas no CAD Único, que recebem Bolsa Família, fora desse rateio.

Leia também: “Dossiê água: entre o negócio de impacto e o direito à vida”, parte 1 e parte 2.

 

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