A pandemia deixou ainda mais visível quem já estava vulnerável. Entre eles, a população negra, as mulheres e os jovens das periferias. Mas a crise advinda do novo Coronavírus também mostrou que a mobilização do brasileiro chegou ao seu ápice no que se refere às doações. Inclusive, o movimento de doações para o combate à pandemia acaba de alcançar a marca dos R$ 7 bilhões arrecadados no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). Ainda, segundo a edição 2020 do relatório “Brasil Giving Report: Um Retrato da Doação no Brasil“, oito em cada dez brasileiros (82%) acreditam que as organizações da sociedade civil (OSCs) apresentaram um impacto positivo no país no último ano.
Para entender sobre o contexto das doações e dos investimentos de impacto no país, Aupa conversou com Camila Aloi, gerente de relacionamento institucional no GIFE, rede sem fins lucrativos que investe em projetos com finalidade pública.
Camila explica sobre o caminho das doações e como o fortalecimento das relações entre o setor privado, as organizações da sociedade civil e o Poder Público são um tripé fundamental para o combate às desigualdades. Leia a entrevista completa.
AUPA – As doações são feitas para resolverem urgências, como a fome. O investimento de impacto é de médio e longo prazo e serve para resolver problemas socioambientais de determinado território ou comunidade. Comente sobre essas diferenças e sua importância na sociedade, por favor.
Camila Aloi – Para essa questão, começo trazendo um histórico desta ação no Brasil. Na década de 1980, quando saímos de um período de ditadura (1964-1985) e começamos um espaço democrático no país, este momento foi de revigoração dos espaços sociais e da ação social brasileira.
Com a fundação do GIFE em 1995, foi cunhado o termo “investimento social privado” para pontuar o repasse de recursos privados e voluntários, com a finalidade de bem público em ações planejadas, de longo prazo e com critérios de avaliação de seus resultados. Naquele momento queríamos nos diferenciar da filantropia, que era vista no Brasil como algo assistencialista, pontual e de pouca estratégia e dimensão.
O conceito de investimento social privado é um repasse de recursos privados com finalidade de bens públicos, porém com critérios de indicadores de avaliação e de métrica. Ou seja, é um dinheiro de longo prazo e que possibilita o início daquilo que chamamos de filantropia estratégica. Saímos do lugar de apenas uma doação pontual e imediatista para um pensamento mais estrutural.
A construção de ações de tecido social são necessárias para que se acabe com o grande problema que é a desigualdade social no país. Ela é estrutural e precisamos olhar para isso.
Sobre os investimentos de impacto, é importante entender o momento atual e a evolução de todos esses processos. É como se tivéssemos uma régua da filantropia até ao investimento, de fato. Onde eu quero chegar com este dinheiro da filantropia? Ele é repassado e não há nenhuma expectativa de retorno. O dinheiro da filantropia é muito importante. Por exemplo, a agenda de Direitos Humanos é uma daquelas de pouco interesse para alguns investidores.
Quando você pensa em investimento social privado, ele também não tem retorno, mas apresenta outros critérios, como o de fomento da comunidade local. Se começa a pensar em processos de troca de aprendizado, mentoria e capacitação. Ou seja, são processos de doação não só de tempo, mas de toda uma estrutura de atores e de redes de conteúdos que beneficiam esse projeto na ponta.
Seguindo a contextualização, depois temos o começo de investimento social privado. Para que o projeto tenha autonomia, e para que esse projeto também empreenda, se faz acordos de doação com este dinheiro. Mas o investimento social privado começou a ganhar mais destaque há cerca de 10 anos, para arranjos financeiros onde o receptor desse dinheiro também passou a ter um papel fundamental. Ou seja, um papel de autoria, empreendedorismo e responsabilidade.
Neste momento se começou a pensar em relações que não sejam de dependência, mas, sim, frutíferas, onde se entende que o beneficiário deste recurso é também uma potência produtora. Não estamos mais considerando o beneficiário desse produto como alguém que terá que passar o resto da vida apenas tendo este determinado recurso.
Porém, há recursos que são fundamentais para que sejam apenas de filantropia – e que não se transformarão em negócio de impacto. Logo, o dinheiro da filantropia é muito importante, afinal um país se faz com esse dinheiro da filantropia. E essa é uma responsabilidade do cidadão – vale destacar que nós, no Brasil, não temos uma cultura de doação.
O intuito é também fortalecer essa cultura cidadã. Por exemplo, nos Estados Unidos, as crianças desde o ensino fundamental costumam ser incentivadas a pensar em ações de doação. Outro ponto é que o brasileiro tem vergonha de falar que doou. É necessário mudar este conceito. Doar é uma responsabilidade como cidadão que você tem. Se você doou, conte que você doou. Ao contar, você influencia outras pessoas a doarem e mudamos um pouco essa relação.
Finalmente, destacamos o blended finance, que se traduz como finanças misturadas, que é um arranjo financeiro onde o dinheiro é arrecadado de diversos atores da sociedade. Ele é uma combinação e pode fomentar que se alavanque mais dinheiro a partir desses capitais.
Ou seja, existem diversas formas de se fazer arranjos de capital, onde além de pensar na sustentabilidade econômica a longo prazo, há o empoderamento dos atores da cadeia. Assim, também se dialoga com a gestão pública.
É importante destacar que existem temas na sociedade que a filantropia e o investimento social privado podem vir a dar conta. Mas há outros temas que apenas com a escala do Poder Público é possível transformar a situação do território.
Essa parceria público, privada e sociedade civil é um tecido fundamental para que se possa exercer a democracia e para que se consiga construir estratégias mais sólidas de um sistema que passa pela proteção social para um sistema mais robusto e que nos permite sair da desigualdade estrutural.
AUPA – Negros, mulheres e jovens trabalhadores com baixa escolaridade foram os mais afetados pela pandemia. Como a atuação de organizações podem contribuir para amenizar esse cenário?
Camila Aloi – Eles foram os mais afetados pela pandemia – e, na verdade, só escancarou as nossas desigualdades sociais. Além disso, há uma questão de gênero e raça profundamente conectada com as desigualdades, onde ela é muito mais cruel com a mulher negra.
Por exemplo, sobre a questão de saúde, a população negra é a que menos tem atendimento. Ou seja, essa população negra tem menos acesso a recursos de saúde do que os brancos.
Já partimos de um nível muito desigual. E, por isso, não existe meritocracia, afinal as pessoas não começam do mesmo lugar e não partem do mesmo ponto em suas trajetórias.
Durante a pandemia, sobre colaboração e investimento social privado, foi possível observar os atores começarem a se reunir semanalmente para que possamos, de uma forma estratégica, entender o mapeamento de população mais vulnerável.
A atuação das grandes associações da sociedade civil nos ajuda a entender quem são as pessoas mais vulneráveis. Por este motivo é preciso valorizar o papel das organizações da sociedade civil que atuam no território e que tem suas lideranças, pois só através dessas lideranças o investimento social privado conseguiu dialogar com as comunidades.
AUPA – A pandemia aprofundou ainda mais a desigualdade no Brasil. Aliado a isso, há um desmonte de Políticas Públicas e programas de transferência de renda. As iniciativas empresariais são bem-vindas para expandir as oportunidades, mas são fundamentais aquelas no foco da equidade racial. Poderia falar mais a respeito?
Camila Aloi – Precisamos colocar no centro da conversa o racismo existente no país. No Brasil, a forma como se concebe tudo é a partir do olhar do branco e não a partir do olhar da diversidade.
A filantropia e o investimento social privado vão atingir muito mais os seus objetivos, se nos eixos do centro dessa interseccionalidade de tema de projetos, a questão da equidade racial estiver presente.
Não é possível falar em mudança, emprego e renda, se não se considerar como olhar a partir dessa lente racial e qual população precisa ser capacitada e atendida, para que, assim, se possa transformar algumas discussões, como Saúde e Educação. Não é possível filantropia sem amplitude de governança com esse olhar, de espaços que trazem esse tema, com a mescla desses atores nos locais de tomada de decisão.
Aupa – Conforme o relatório do GIFE, os jovens foram os mais afetados pela pandemia no mercado de trabalho. Como sugeriram no infográfico, é preciso aumentar a oferta de captação. O que ainda é preciso fazer e como as políticas públicas podem contribuir?
Camila Aloi – É muito importante o mapeamento para que se saiba onde as pessoas mais vulneráveis estão.
Temos uma situação muito preocupante com o jovem hoje no país. Porque o jovem nem estuda e nem trabalha. Não existe um fortalecimento de toda uma estrutura para que esse jovem frequente a escola e permaneça nela. Esse público está saindo cedo da escola, e não tem essa capacitação para o mercado de trabalho, além disso, ele não consegue um emprego. Essa é a população que mais preocupa.
Precisamos pensar em um plano estratégico de longuíssimo prazo que abarque a questão da capacitação da escola para inserção no mercado de trabalho. Só que essa capacitação vem por uma mudança muito estratégica do olhar na educação. Eu preciso desde cedo, para uma população jovem, falar de empreendedorismo, de autonomia, e exemplificar as possibilidades no mercado de trabalho inovador.
Segundo projeções, em 2050 o emprego clássico, como conhecemos, será muito reduzido. A pergunta que fica é:
quais serão as novas formas e os padrões educacionais de capacitação oferecidos para esse jovem, para que ele tenha alternativas ao sistema laboral vigente hoje no país?