Em 13 de julho deste ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos de existência. É uma marca importante para a sociedade brasileira. Mas nem tudo é celebração neste aniversário. Afinal, existem muitos motivos para se preocupar com os jovens do país.

Na década de 1980, quando o Brasil passou pelo processo de Redemocratização, diversos movimentos lutaram pelo reconhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. O ECA foi o resultado destas articulações. Antes deles, crianças e adolescentes eram vistos como pequenos adultos, que não tinham direitos próprios. O objetivo do ECA era mudar essa realidade. Mas, na prática, nem tudo aconteceu.

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O estatuto foi elogiado mundialmente e gerou avanços. No início dos anos 1990, os jovens viviam em uma realidade pior. Naquela época, segundo a Agência Brasil, uma em cada cinco crianças e adolescentes estava fora da escola. Entre jovens de 10 a 18 anos, um em cada dez não estava alfabetizado. Os ganhos vieram principalmente na Educação. Mas outros problemas não foram tão bem solucionados, como a violência doméstica, a violência sexual e o trabalho infantil. Para piorar, a pandemia causada pela Covid-19 chegou para criar problemas a longo prazo. Há mais motivos para preocupação do que comemoração.

Atividades da Fundação Abrinq. Créditos: Nego Júnior/2018.

Motivos para comemorar
O avanço na Educação é inegável. De acordo com o relatório #ECA25anos – Avanços e Desafios para a Infância e a Adolescência, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), desde a criação do ECA até agora, o Brasil reduziu em 88,8% a taxa de analfabetismo entre jovens de 10 a 18 anos. A média de analfabetos caiu de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013. A evasão escolar de crianças e adolescentes no Ensino Fundamental foi reduzida em 64% no mesmo período.

Marta Volpi, assessora de Políticas Públicas da Fundação Abrinq, explica que isso aconteceu porque houve uma mudança na forma como a sociedade enxerga a criança. “Antes do ECA, o atendimento à criança era voltado para proteger a sociedade de uma infância desvalida e abandonada, pois a criança gerava risco, por estar na rua. Depois, passaram a ter outra visão, a de desenvolver a criança como um cidadão. É uma mudança radical de olhar. A partir daí, as políticas educacionais foram efetivas. Houve um super esforço para universalizar a Educação. Hoje, a pessoa não pode abrir mão da educação. E o Estado tem dever de dar essa Educação”, explica Marta.

Mas esse avanço não significa que está tudo bem. Ainda há pontos que precisam de cuidados. Por exemplo, segundo o Observatório do Plano Nacional da Educação, um a cada quatro jovens de 16 anos não concluiu sequer o Ensino Fundamental em 2018.

É a mesma conclusão sobre as taxas de mortalidade infantil: houve uma redução histórica nos últimos 30 anos, mas os desafios ainda são enormes. O levantamento de 2015, feito pelo UNICEF, com base em dados do Ministério da Saúde, mostrou que o Brasil conseguiu reduzir em 24% as mortes de crianças antes de um ano de idade. São 12 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, um número próximo do que a OMS considera ideal, que é 10.

Porém esses dados não dizem tudo. A realidade dos jovens está cada vez mais violenta. Homicídios de crianças e adolescentes foram comuns nos últimos meses. Alguns casos até se tornaram famosos e geraram protestos, como nas mortes de Ágatha Félix, em 2019, e de João Pedro Mattos Pinto, neste ano. Segundo dados do UNICEF, 32 crianças ou adolescentes morrem por dia no Brasil por causa da violência.

João Cintra, assistente técnico da Fundação Abrinq, destaca que essas mortes não estão mais concentradas nas grandes capitais, como antigamente: “Os homicídios até se reduziram em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. Mas acabaram se deslocando. Agora as taxas altas estão situadas também no Nordeste e no interior”.

João Cintra, assistente técnico da Fundação Abrinq. Crédito: Divulgação.
Marta Volpi, assessora de Políticas Públicas da Fundação Abrinq. Crédito: Divulgação.
Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil. Crédito: Divulgação.

Motivos para se preocupar

“Após 30 anos do ECA, o que a gente percebeu é que tivemos avanços no acesso à escola e até diminuição na mortalidade infantil. Mas os números de violência sexual não diminuíram”.

Essa declaração é de Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil, organização não governamental que combate a violência sexual, com medidas nos setores público e privado.

De acordo com um levantamento feito junto ao Disque Denúncia, uma criança é vítima de violência sexual a cada 15 minutos no Brasil. E ainda é preciso levar em conta que muitos casos nem são denunciados. “Esses números ainda chocam. E as maiores vítimas são crianças de 0 a 9 anos. Na primeira infância, de 0 a 5 anos, as crianças já estão sofrendo violência sexual”, destaca Itamar.

Outro desafio para o Brasil é a redução do trabalho infantil. O país até acumulou alguns ganhos recentemente. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) estimou que, entre 1992 e 2016, o Brasil evitou que seis milhões de jovens estivessem em situação de trabalho infantil.

E, mesmo assim, existem duas preocupações: primeiramente porque a quantidade de jovens trabalhando ainda é grande. São 1,8 milhão crianças e adolescentes ajudando na sobrevivência da família. E, além disso, outro problema grave é a falta de transparência, já que esses dados pararam de ser publicados pelo governo desde 2017. “Nós já pedimos esses dados para o governo, porque é importante situar como estamos. Mas, de fato, não tem explicação. Todas as vezes, os calendários da Pnad são adiados”, relatou João Cintra,

No geral, fazendo comparação com a realidade dos anos 1990, o trabalho infantil mudou e foi melhor controlado. Mas agora já existe um novo alerta, destacado por João: “Com a pandemia de Covid-19, pode ser que o trabalho infantil volte a crescer. Em grandes eventos ou grandes crises, é comum que as crianças e os adolescentes completem o orçamento familiar. Como muitos adultos perderam empregos, é possível que haja esse aumento”.

No curto prazo, as crianças não são muito atingidas pela pandemia de Covid-19. Mas, no médio e longo prazo, elas serão impactadas de diversas formas. Por isso, em um texto sobre os 30 anos do ECA, o UNICEF fez um pedido por condições seguras para reabertura das escolas e políticas de proteção social, com transferência de renda e prioridade no orçamento do governo.

Mas, de acordo com o gerente da Childhood, poucas atitudes foram tomadas neste sentido. E as consequências serão sentidas. “A demanda virá de forma violenta se o Brasil não estiver preparado. Vamos perder oportunidade de acolher e dar a resposta de que valeu a pena a criança relatar um caso de violência, por exemplo. A escola era um lugar estratégico para receber essas denúncias”, explica ele. Sem as aulas, as denúncias diminuirão. E o estresse em casa, causado pela pandemia, só tende a piorar essa situação. “Sabemos que tem um aumento de consumo de álcool nas residências, por exemplo. Isso leva a processos violentos contra as crianças”, completa Itamar.

A pandemia vai afetar até aquele setor que estava em evolução no Brasil, a Educação. As aulas presenciais foram interrompidas e transformadas em aulas digitais. Mas isso gera um prejuízo ao ensino e também uma forte exclusão. De acordo com o UNICEF, no Brasil há 4,8 milhões de crianças e adolescentes sem acesso à internet em casa.

Como melhorar a aplicação do ECA?
Em 2018, Jair Bolsonaro criticou duramente o ECA: “Tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”. Naquela época, ele era candidato à presidência. Conseguiu se eleger, está no Palácio do Planalto há um ano e meio, mas não fez grandes mudanças no documento. De acordo Marta Volpi, da Fundação Abrinq, o discurso de Bolsonaro não causa preocupação: “O governo atual tem atuado bastante na primeira infância. O ECA está posto, regula um artigo da Constituição e existem políticas de Estado. Não há com o que se preocupar, a não ser que seja feita uma nova Constituição”.

Itamar, da Childhood Brasil, concorda com essa linha de raciocínio: “O ECA é uma lei federal, não é tão simples mudar. É um discurso muito panfletário, uma manifestação, mas ninguém é tão ruim a ponto de dizer que o jovem não deve ser cuidado e não merece proteção integral”.

O Ministério da Educação prevê um corte de R$ 4,2 bilhões para 2021. O principal motivo para isso, segundo o governo, é a crise econômica causada pela pandemia do novo Coronavírus. Para melhorar a aplicação do ECA, o correto seria fazer justamente o contrário, segundo Itamar:

“O ECA precisa ser traduzido no orçamento público. Não pode ficar no discurso. A criança tem que ter prioridade absoluta. Se isso não é colocado no orçamento, não vira realidade”.

Em todo aniversário, há um pedido no soprar das velinhas. Os defensores da infância e da juventude no Brasil pedem mais ações preventivas para os problemas do país: “Falta para o Brasil uma política nacional de prevenção contra a violência”, diz Itamar. “Se o Brasil investisse em saneamento básico, parte daquele valor que investe em Saúde, teria menos problemas e aliviaria o sistema de saúde”, destaca João Cintra. A prevenção aparece como principal meta para que o ECA possa ter aniversários melhores.

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