O portal Voz das Comunidades é um veículo fundado em 2005, feito na favela e para a favela. Ele nasceu no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, pelos anseios de um menino de 11 anos que enxergou grande potencial no jornal Vip, o folhetim de sua escola. Rene Silva dos Santos hoje tem 24 anos, é o editor-chefe do Voz das Comunidades.
“Comecei o Voz devido a um trabalho da escola onde eu estudava [Escola Municipal Alcides de Gasperi]. O jornal feito pelo grêmio estudantil mostrava a realidade da escola e ali me inspirei, pois dava resultado. Mostrava o que acontecia na escola e era uma ação muito legal. Foi pensando neste enfoque que me inspirei e criei o Voz”, comenta Rene. Detalhe: naquela época, ele estava na 5ª série do Ensino Fundamental.
Os anos se passaram e, em 2010, veio o boom do Voz da Comunidade. (ainda no singular; o projeto de expansão, com correspondentes e parceiros, começou em 2017). Foi o ano da ocupação das Forças Armadas no Morro do Alemão e sua enorme repercussão. Do Complexo do Alemão, o projeto se expandiu para outras comunidades e hoje atua no plural: é o Voz das Comunidades. A equipe do Voz conta com quatro jornalistas fixas na redação, mas há um total de 18 colaboradores na equipe de jornalismo e outras 14 pessoas que são voluntárias com foto ou texto.
Rene é bastante requisitado para ministrar palestras e ensinar um pouco sobre a importância do Voz a diferentes públicos. Além de rodar o Brasil, ele também tem conquistado o mundo: em 2018, figura na lista dos 100 negros mais influentes do mundo com menos de 40 anos – eleição feita pelo Most Influential People of African Descendent, em Nova York. O brasileiro teve indicação da UNESCO Brasil para o pleito.
O editor foi criado pela mãe e pelos avós, que são seus vizinhos. Além dele, há mais dois irmãos: a adolescente Raquel e Renato, que é fotógrafo do Voz. O patriarca da família faleceu quando Rene tinha 5 anos. Como passa muito tempo viajando e transitando entre as comunidades, Silva costuma aproveitar as horas vagas com sua família ou passeando com os amigos no shopping ou no centro do Rio. Em entrevista exclusiva à Aupa, René conta da importância que tomou o seu projeto e do impacto que a Comunicação pode gerar.
mostramos um outro lado da favela, um outro lado da sociedade que as pessoas não estão acostumadas a ver.
AUPA | Como você vê hoje a relevância de um projeto como o Voz das Comunidades?
RENE SILVA | Exatamente. Hoje, o Voz expandiu e está em outras favelas no Rio de Janeiro, não está só no Complexo do Alemão. Estamos atuando com correspondentes e parceiros em outras favelas. Esse processo de expansão começou em 2017. Depois que surgiu o Voz das Comunidades, as pessoas [da comunidade] o veem muito como um canal de reclamação, de exposição, de tudo. Seja para tratar dos problemas sociais, seja da vida ou dos projetos culturais, em geral. As pessoas o veem muito como a referência. Hoje em dia, percebemos muito isso, porque, quando está para acontecer a um evento na comunidade, por exemplo, as pessoas já entram em contato com a gente, geralmente, para divulgar algum trabalho para a comunidade ou quando tem algum problema social. Então, são várias referências que as pessoas já entram em contato imediatamente conosco, pois sabem que o Voz faz este tipo de reportagem, que damos espaço a estes temas. Elas agora sabem o que procurar: não vão entrar em contato com a Rede Globo ou a Record ou qualquer outra emissora para falar sobre alguma coisa da comunidade. Elas sempre entram em contato com o Voz, porque sabem que a gente também consegue funcionar, buscar a solução ali junto à prefeitura, ao governo, aos órgãos públicos responsáveis, havendo canal direto com a comunidade.
AUPA | E há toda uma valoração também do morador de se ver dentro do canal da comunidade…
RENE SILVA | Sim, sem dúvida. As pessoas se veem dentro de um canal, que vem de dentro da comunidade, e já pensam: “Nossa, estou aparecendo no jornal, na comunidade que eu moro”. Pode ser em vídeo, foto ou texto, as pessoas têm uma representatividade muito importante. Afinal, se veem ali dentro. Não é como um jornal da grande mídia, onde as pessoas não se veem. Por exemplo, não vai sair a capa de um jornal, da grande mídia, falando sobre algo muito legal da favela – às vezes, acontece, mas é mais difícil.
Afinal, [as pessoas das comunidades] se veem ali dentro. Não é como um jornal da grande mídia, onde as pessoas não se veem.
AUPA | Você foi recentemente eleito um dos negros mais influentes do mundo com menos de 40 anos, segundo o Mipad (Most Influential People of African Descendent), sendo indicado pela Unesco Brasil. Como é para você receber a honraria?
RENE SILVA | Vejo como uma conquista importante na minha vida e para os meus projetos futuros. O que acontece: por conta das nossas iniciativas com o Voz, a gente acaba não tendo muito tempo de absorver mais os nossos próprios projetos, entendê-los mais. Só os colocamos em prática. Quase não temos tempo de fazer outras coisas. Então, quando acontece este tipo de reconhecimento, vemos o quão importante, de fato, é o projeto. A gente fica no nosso cotidiano, fazendo, fazendo, fazendo… e quando vemos… há um reconhecimento de fora, assim. Uma coisa interessante, pois estão, de fato, acreditando no nosso projeto. Percebemos, assim, que estamos no caminho certo e fazendo algo que é importante.
Eu não tenho muita noção do tamanho ou do alcance que o Voz tem disso tudo. Mas quase todos os dias algum professor nos escreve contando que usou o nosso material em sala de aula ou que apresentou o projeto. Editoras também nos procuram para colocarem a nossa história em materiais didáticos. Eu acho isso importantíssimo. Muitas editoras, de vários lugares do Brasil, nos procuram para autorizar uso de o texto para elaborarem um exercício e, assim, mostrarem a importância do Voz das Comunidades. Acho o maior barato, interessante mesmo. E foi uma surpresa, pois nem eu sabia que ia sair.
AUPA | Vocês acabam fazendo um jornalismo que vai além das fronteiras da comunidade, como uma tentativa de estourar bolhas. A gente vive em um país racista e preconceituoso. Você recentemente foi vítima de ofensas racistas em um voo. Como fazer comunicação para ir além das bolhas e ajudar a quebrar essa lógica de violência e preconceito?
RENE SILVA | É um papel importantíssimo, porque mostramos outro lado da favela, outro lado da sociedade que as pessoas não estão acostumadas a ver. Só quem vive, mesmo, na comunidade sabe como é a realidade. Quando você está fora da comunidade, você não tem, de fato, noção. Então, é importante fazer e manter o jornal funcionando, para que mais pessoas sejam inspiradas e usem essas iniciativas para criar os seus veículos de comunicação. Quando eu faço palestras em escolas, em vários estados, eu sempre falo para os alunos: “Crie seu jornal, infelizmente não tenho como estar em todos os estados, não tenho como estar em todos os lugares, criem e mandem uma mensagem, pois estarei apoiando, estarei auxiliando de alguma forma”.
As pessoas não se assustam quando veem um empreendedor negro tendo um salão de beleza ou tendo uma cafeteria ou tendo qualquer outro negócio na favela.
AUPA | E essa questão do racismo, com as denúncias: vocês recebem bastante como sugestão de pauta?
RENE SILVA | Sim. Colocamos muitos artigos de opinião e temos, também, colunistas que escrevem no Voz. Abordamos bastante o tema, tanto da maneira geral quanto da especifica também. Acho também que o Voz, pelo fato de estar sempre retratando e fazendo reportagens com e da favela, já se posiciona. Isso já mostra uma diferença, pois há uma representatividade muito grande. As pessoas não se assustam quando veem um empreendedor negro tendo um salão de beleza ou tendo uma cafeteria ou tendo qualquer outro negócio na favela. As pessoas de fora, talvez, sim, mas as de dentro, não, afinal todo mundo já está sabendo e todo mundo já conhece. As pessoas são retratadas sendo elas mesmas.
AUPA | E como vocês rentabilizam o Voz das Comunidades? Vocês têm parceiros?
RENE SILVA | Não, rentabilizamos por intermédio de publicidades. Como somos um veículo de comunicação, temos alguns produtos para veicular. O nosso jornal impresso é um produto que veicula publicidade, por exemplo. O jornal é distribuído gratuitamente nas comunidades e nele há anúncios publicitários de empresas, do comércio local. E é importante para manter o jornal funcionando.
intervenção completou seis meses agora em agosto. Estamos sempre acompanhando tudo, publicando quando há abuso de poder ou algo do tipo, para expor a situação.
AUPA | É correto afirmar, então, que o Voz das Comunidades é um negócio de impacto social? Você o vê assim?
RENE SILVA | Sim, o vejo assim, porque o impacto social é muito grande na vida das pessoas. Promovemos encontros e debates. Agora, com as eleições, estamos promovendo debates com os candidatos a deputado estadual e federal de dentro da favela – são candidatos que moram dentro das favelas. Isso é importante para as pessoas decidirem seus votos. Então, acaba tendo um impacto muito grande dentro das favelas, pois as pessoas respeitam muito o nosso trabalho e o vê como uma grande referência.
AUPA | Como você vê essa questão da intervenção militar, que está acontecendo no Rio de Janeiro, em relação ao trabalho do Voz das Comunidades? Como que vocês estão trabalhando nesta situação?
RENE SILVA | A intervenção ainda não aconteceu especificamente no Complexo do Alemão. Mas, em outras favelas, sim. Os parceiros, que são nossos correspondentes, nos mandam informações o tempo todo. Então, estamos acompanhando muita coisa, publicando os dados e as informações. A intervenção completou seis meses agora, em agosto. Estamos sempre acompanhando tudo, publicando quando há abuso de poder ou algo do tipo, para expor a situação.