Segundo o IBGE (2016), no Brasil, negros representam 75% da população mais pobre, incluindo os que se autodenominam negros (pretos e pardos). Naquele mesmo ano, conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, 70% de seus moradores eram negros.

Publicado em setembro, o relatório Emergência Política Periferia trata justamente de aspectos dessa realidade brasileira. Desenvolvido pelo Instituto Update com parceria da Fundação Tide Setubal e da Ford Foundation, a publicação busca dar visibilidade à iniciativas de inovação política nas periferias de cinco capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília e Belo Horizonte.

A pesquisa dialoga com aproximadamente 400 iniciativas ligadas à política institucional, ONGs, coletivos informais e indivíduos. Destes, há entrevistas em profundidade com cerca de 100 iniciativas. Resultados de um trabalho de campo feito durante 45 dias por cinco pesquisadores e cinco produtores locais, entre março e agosto de 2018.

Jéssica Cerqueira foi uma das pesquisadoras envolvidas no desenvolvimento do relatório. Ela é produtora cultural, gestora de projetos, turismóloga e educadora popular. Também compõe as Adelinas, coletivo autônomo de mulheres pretas. Em entrevista à Aupa como parte da série Qual é a força afro-brasileira no ecossistema de impacto?, Jéssica reflete sobre os resultados da pesquisa, sobre a ancestralidade da cultura africana e da necessidade de entendermos a periferia em sua pluralidade e da ancestralidade da cultura africana.

AUPA | No relatório, vocês destacam a importância da ancestralidade, com o resgate da identidade e do entendimento do indivíduo socialmente. Como você vê esse impacto diante deste resgate da ancestralidade?

JÉSSICA CERQUEIRA | Acredito que, quando falamos sobre identidade, estamos falando de pessoas negras e pessoas periféricas. Entendendo que pessoas periféricas, em sua maioria, são pessoas negras; apesar de, claro, termos pessoas brancas na periferia também. Estamos falando, também, sobre como se constituem esses territórios. Eu compreendo que o resgate da ancestralidade e o entendimento da nossa identidade estão diretamente interligados ao entendimento do que somos nessa construção de país que temos e também a um processo de resgate da autoestima ou de chegada à autoestima. Porque nós não temos a nossa história real disponível. Na verdade, o que temos é a história que está sendo contada nos livros, do processo de escravidão, mas não há a história contada do ponto de vista dos africanos. Ao resgatar a ancestralidade, conseguimos entender que o imaginário coletivo que temos de pessoas negras foi inventado e criado para que a escravidão pudesse dar certo. Conseguimos entender que não somos apenas o que está sendo colocado pela história. É extremamente necessário que todos conheçam o passado para sabermos  para onde estamos indo e o que precisamos para poder sair desse lugar onde fomos colocados. É algo a se pensar o fato de que vivemos em um país que, em sua maioria, negro, mas cuja cultura exclui e coloca essa população num lugar subjugado.  Essa consciência da ancestralidade, em algum momento, baterá forte. Vemos essa batida de reconhecimento e pertencimento acontecer quase que diariamente.

‘Há um provérbio africano que diz que ‘enquanto a caça não conversar com a própria história, os leões sempre serão glorificados’.”

AUPA | E é uma violência que está tão intrínseca, afinal, estamos falando também de racismo – que até a autodeclaração das pessoas acaba sendo influenciada. Muita gente não tinha se percebido negro até pouco tempo atrás.

JÉSSICA CERQUEIRA | Eu conheço pessoas que têm 40, 50, 60 anos e que estão se reconhecendo negras, hoje. Passaram uma vida inteira sem entender que fazem parte da população negra e que sofreram diversos tipos de preconceito e nunca entenderam que aquilo era racismo. Entendiam que aquilo era algum tipo de preconceito ou alguma coisa que você não dá nome. Só depois que se compreende a identidade que se tem, é possível entender que, na realidade, o que aconteceu foi racismo. Como não se sabia nem quem se era, não era possível entender o que foi aquele momento vivido. Então, o projeto de racismo é muito bem arquitetado, pois não se consegue, ao menos, se entender.

AUPA | E é algo que dói no ser, em essência, quando percebe-se que não consegue ascender socialmente por causa do racismo, que isto está na estrutura da sociedade. E já tem 500 anos que acontece essa lógica…

JÉSSICA CERQUEIRA | Há um provérbio africano que diz que “enquanto a caça não conversar com a própria história, os leões sempre serão glorificados.” A história sempre foi contada pelo lado vencedor, a gente precisa ver o outro lado também. Podemos elencar, para exemplificar,  os movimentos que sempre aconteceram desde que começou a escravidão, como as revoltas, mas isso nunca é contado. No nordeste brasileiro, houve um monte de revolta e a gente pouco sabe delas. Eu mesma sei muito pouco, sei uma coisa ou outra, só.  São revoltas negras, de pessoas que estavam escravizadas. É muito longo o processo.

AUPA | O relatório abrange as periferias de cinco cidades brasileiras. Fale um pouco sobre isso, por favor.

JÉSSICA CERQUEIRA | Estivemos em cinco cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Brasília e Belo Horizonte. E foram mais de cem conversas, 45 dias só fazendo campo – foi bem intenso e rico.  Mas ainda assim, a gente não conseguiu contemplar todo o Brasil. Fomos a cinco cidades e o Brasil é enorme, porém. Fomos às periferias urbanas, há muitas outras periferias também.

AUPA | A pesquisa acaba sendo uma narrativa também. Como que você vê o impacto do trabalho? Afinal, de São Paulo temos uma visão muito do eixo Rio-São Paulo somente. Como é para você apresentar esses novos Brasis por intermédio da pesquisa?

JÉSSICA CERQUEIRA | Foi bom um “sair da caixa”, pelo menos para mim. A gente tem muita margem de conhecimento de São Paulo-Rio, ali Minas Gerais, no máximo, porque são as regiões mais próximas. A gente sabe que, dentro do Brasil, as regiões que têm uma economia com mais movimento são capitais com muito mais recursos e também com muito mais desigualdades, por conta da distribuição de renda. Mas enxergar outras periferias, para além deste eixo, foi extremamente importante para conseguir perceber, de fato, as diversidades. Foi possível observar, também, outros problemas comuns que existem tanto em São Paulo, quanto em Recife e em Brasília.  Brasília é uma cidade bastante jovem, que tem 58 anos.  Ceilândia e as outras periferias de Brasília, por exemplo, que formam as cidades-satélites, são jovens também. Existe, ainda, um processo de identidade muito recente por lá, porque a grande maioria das pessoas que mora em Brasília, que tem mais de 50 anos, não nasceu ali. São pessoas que vieram das regiões Nordeste e Centro-Oeste, que foram trabalhar na construção de Brasília e constituíram família. Desta forma, sair do Sudeste é bem importante, porque aqui temos uma visão muito restrita de mundo.

AUPA  | No relatório destacam-se os espaços de cultura como espaços de formação política. Fale um pouco sobre isso, por favor. 

JÉSSICA CERQUEIRA | A cultura é uma linguagem que conseguimos partir de/para todos, não existe um  intrincamento. A cultura consegue ser feita a partir de cada uma dessas pessoas. Quando se fala de maracatu e Recife, por exemplos, conseguimos entender a cultura como formadora de identidade. Nas periferias, as expressões culturais também são todo um conteúdo formador político, formando pessoas que estão pensando a partir da cultura. E é nesse contexto que entram os slams, o rap, o funk, o samba. Esses são locais onde o questionamento e fala, se darão e isso construirá novos sujeitos políticos. Os slams são muito fortes, principalmente no Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), assim como no Recife também há o slam das minas. São locais superimportantes, onde, por exemplo, hoje está sendo discutida grande parte das questões contemporâneas da sociedade, como questões de gênero, raça e de sexualidade. Estar presente dentro desse processo de batalhas trata das formações de alguma maneira. Então, essa forma de agir e pensar vai constituindo outros lugares de construção. Entendendo que, quando  se fala de construção de sujeitos políticos, fala-se de construção de pessoas que estão pensando o seu lugar no mundo. Por isso, que a gente volta  no tema da africanidade. A cultura, de fato, abre o caminho para tornar muito mais fácil o contato com esse assunto, que vem sendo intensamente debatidos na sociedade e estão sendo teorizados dentro da academia. A sociedade como um todo, está discutindo, o tema, e com isso, conseguindo construir conceitos e conhecimentos que, num futuro não muito distante se tornarão livros.

Foto: Acervo pessoal.

Leia os outros conteúdos da série:

Participação de empreendedores negros avança e começa a representar parte relevante dos negócios de impacto no Brasil.

“Nosso impacto é a construção de um mundo mais humano para nossa comunidade negra”, afirma Alan Soares.

“Não falamos em diversidade, fala-se em valorização das diferenças”, propõe Paola Prandini.

Organizações buscam igualdade racial na educação.

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