A morte de Marina Harkot não foi apenas um acidente de trânsito. Também não foi um simples homicídio. Foi algo mais simbólico. Foi um ataque forte contra o cicloativismo brasileiro. A arma utilizada para esse ataque foi um carro, dirigido por um motorista que possivelmente estava embriagado. E a vítima desse ataque não foi só a Marina. Foi também cada ciclista que perdeu forças para lutar por mais segurança no trânsito. As vítimas fomos todos nós que esperamos ver uma cidade de São Paulo mais gentil e humana.

Leticia Lindenberg Lemos é mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Crédito: Arquivo pessoal.

Era exatamente isso que Marina queria, segundo Leticia Lindenberg Lemos, amiga, companheira de pesquisa e Mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbansmo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). “Marina tinha o desejo de viver em um mundo mais gentil, em vários sentidos. Um mundo onde as mulheres pudessem viver e circular em paz, sem ter os corpos sob julgamento ou ameaça. Ela queria poder circular livremente para que o mundo se tornasse mais gentil”, comenta Leticia.

Apoie o jornalismo crítico no ecossistema.

Para buscar isso, Marina pedalou e agiu. Era cientista social, cicloativista e pesquisadora. Fez parte da Ciclocidade (Associação dos ciclistas urbanos de São Paulo) e criou um grupo de trabalho para tratar da questão do gênero no ciclismo, o GT Gênero. Também concluiu um mestrado pela FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), com a dissertação “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo”. Tudo isso com apenas 28 anos. Pedalou até morrer atingida por um carro na Zona Oeste de São Paulo. Mas não foi uma morte em vão. A tragédia reacendeu os debates sobre ciclismo na cidade.

Problemas e soluções
Depois do caso de Marina, o principal debate que surgiu foi sobre a impunidade para quem atinge ciclistas. No caso dela, o motorista foi identificado e indiciado por homicídio culposo inicialmente, quando não há intenção de matar. Mas depois esse entendimento foi mudado. José Maria da Costa Júnior, de 34 anos, foi denunciado por homicídio doloso, porque a investigação inicial apontou que ele dirigia sob efeito de bebida alcoólica e em alta velocidade. Dessa forma, José pode até ser levado a júri popular. Por enquanto, o caso parece ser um fio de esperança na busca por Justiça, já que normalmente esses atropelamentos ficam sem punições para os responsáveis.

Leticia explica bem como é importante ter tolerância zero contra a morte de ciclistas. Ela morou na Holanda e diz que isso é fundamental para ter tantos ciclistas:

Clique na imagem para ampliá-la.

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Mobilidade e Transportes, afirma que está colocando em prática um plano que segue esse tom. É o “Vida Segura”, baseado no conceito internacional de Visão Zero, que impõe que nenhuma morte no trânsito é aceitável. E que todos, inclusive o Poder Público, devem assumir responsabilidade para a redução dos acidentes. A Prefeitura promete fazer isso com melhoria na qualidade da infraestrutura, oferta de cursos educativos e aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização.

Portanto só punir não basta. É preciso educar para prevenir. “Você precisa tratar das pessoas que dirigem hoje, de quem está tirando carta e de quem um dia pode ser um motorista. Tem que acessar isso em vários momentos da vida”, explica Leticia.

Para quem já dirige, o mais importante seria ter mais campanhas de Educação. Afinal, é evidente que muitos motoristas sequer sabem algumas regras básicas. Por exemplo: de acordo com o Código Brasileiro de Trânsito, os ciclistas têm prioridade sobre os carros. E os motoristas devem guardar uma distância de 1,5m ao fazer a ultrapassagem.

Para educar quem está tirando a CNH, o mais importante seria fazer mudanças nos testes. “Sabemos que há poucas perguntas sobre o respeito ao ciclista na prova de tirar carteira. Na volta que se dá (para avaliação), tem pouca instrução disso”, exemplifica Leticia.

Por fim, é preciso fazer um trabalho de longo prazo: educar as crianças. Levar campanhas de trânsito para as escolas. E, assim, desenvolver o respeito aos ciclistas do futuro. Atualmente, em São Paulo, isso é feito pelo Centro de Treinamento e Educação de Trânsito (CETET), que tem parceria com a rede de ensino, com cursos presenciais e à distância. É possível se inscrever pela internet para ter acesso gratuito ao curso.

A Educação também precisa ser feita no dia a dia. Diego Salgado, jornalista e ciclista há 20 anos, sabe disso. Perguntado sobre qual é a maior dificuldade no trânsito atualmente, ele afirmou que é a relação com os ônibus. Mas mudou a forma de lidar com isso: “Sempre acontece de o ônibus passar muito perto. É um perigo constante. Mas tenho mudado minha postura, para tentar abrir olhos com mais bate-papo e menos xingamento. Antes, eu passava e jogava o braço ou falava alguma coisa ríspida. Mas mudei.

Diego Salgado é jornalista e ciclista há 20 anos. Crédito: Arquivo pessoal.

Outro dia mesmo, cheguei no semáforo e troquei ideia. Falei ‘imagina se você tivesse na minha situação’. Tento explicar que é só esperar. E na conversa surte mais efeito. Ele entende minha situação. No trânsito é importante essa harmonia. Tem que ter harmonia com os motoristas, não adianta ficar xingando”.

Atualmente, poucos ciclistas andam tanto em São Paulo quanto Diego. Ele pedala para entregar tortas feitas pelo pai dele, Antônio Sérgio Carvalho, em diversas regiões. O projeto começou de forma despretensiosa, porque Antônio estava sem emprego na pandemia, e cresceu exponencialmente. Nem eles esperavam: “Não imaginava que fosse chegar onde está. Meu pai está se dedicando totalmente à torta. Ele abandonou a função de motorista de aplicativo por causa da pandemia. E imaginávamos que fosse durar um mês. Agora já são oito meses de trabalho e muito provavelmente vai virar um negócio”, revela ele, que não abre mão de distribuir todas tortas andando de bicicleta. E admite que uma parte do sucesso do projeto tem relação com isso também: “É um modo de mostrar que é possível fazer tudo de bicicleta. É legal mostrar que dá pra fazer”. 

Antônio Sérgio Carvalho e o filho Diego Salgado. Crédito: Arquivo pessoal

Para Diego, os problemas para os ciclistas vão além da relação com os motoristas.  “Vejo ciclovias onde falta um pouco de projeto, com bueiro no meio do caminho, que foram feitas na pressa pra se cumprir um cronograma. A iluminação é precária e precisa ser revista. Tem algumas ciclovias, como na Avenida Sumaré, que tem trechos bem escuros. Tenho notado semáforos apagados. O ciclista acha que está aberto, mas está fechado. Na Avenida Brigadeiro Faria Lima eu já presenciei um ciclista passar no semáforo e houve uma colisão. Foi fraco, mas houve”.

O trajeto diário de um ciclista em uma das maiores cidades do mundo por muitas vezes é um trajeto de extrema dificuldade. Crédito: Arquivo pessoal

Ciclovias e ciclofaixas: problemas ou soluções?
Ciclovias costumam ser vistas como a principal solução para todos problemas. Mas Marina sempre alertou para a importância de olhar além e enxergar as dificuldades que as minorias da sociedade enfrentam nas ciclovias, por exemplo. E Leticia reforça a importância dessa reflexão.

“Uma ciclovia isolada protege do carro, mas não protege contra assaltos, estupros e espancamentos. Você tem uma diversidade de violências contra uma diversidade de pessoas. A principal proteção é a própria na cidade, é a vida na cidade. Quando você oferece uma ciclovia segregada, como a da Marginal (Pinheiros), que é entre um trem e um rio, o que acontece é um índice absurdo de assaltos. O que precisamos fazer é uma ciclovia inserida na cidade”.

Questionada sobre isso, a Prefeitura de São Paulo se defende com números: “Relatórios de acidentes da CET comprovam que, quanto mais estruturas exclusivas para bicicletas, menor é o número de mortes de ciclistas. Por exemplo, entre 2011 e 2018, período em que a malha cicloviária passou de 74 quilômetros para 503,6 quilômetros de extensão, o número de mortes de ciclistas caiu na proporção em que a malha crescia: redução de 61% nas mortes na comparação entre o primeiro e o último ano”.

Outro dilema de São Paulo é a ciclofaixa de lazer aos domingos e feriados. É algo consolidado e bastante utilizado. Mas gera debates. Por um lado há quem não veja problema, porque a única finalidade é o lazer. E eventualmente pode contribuir para que mais pessoas se tornem ciclistas. 

Mas Leticia alerta para os problemas desse projeto, já que tem um custo alto (pago pela iniciativa privada), não faz diferença para a mobilidade e não estimula o compartilhamento de espaço – existem cones que separam as bicicletas dos carros em todas ruas.

“Você pode incluir o uso da bicicleta como lazer. Por que não? Mas o problema é quando você faz só isso. São rios de dinheiro para montar essa operação. Mas esse dinheiro poderia ser melhor utilizado para coisas permanentes. E essa história de fazer no canteiro central é uma loucura brasileira, para não atrapalhar o carro. Todas as pessoas que não são brasileiras e veem isso, acham uma loucura. Porque é a via de maior velocidade. Se alguma coisa acontece, se tem um desvio, é morte”.

Quando as ciclofaixas foram criadas, o Bradesco patrocinou a ação. Atualmente, é a Uber quem investe. Procurada para comentar sobre esse dilema e sobre a segurança dos ciclistas, a empresa não se manifestou e informou que só realiza as medidas orientadas pela CET (Companhia de Engenharia de Trânsito) na concessão.

Quem pode resolver
O ciclismo de São Paulo passou por dois extremos na prefeitura recentemente. Com Fernando Haddad (PT) como prefeito, de 2012 a 2016, houve um grande estímulo para o uso da bicicleta, com mais de 400 quilômetros de ciclovias construídas. A pressa para atingir essa meta gerou críticas e polêmicas. No último ano de gestão, ele ainda reduziu a velocidade máxima em todas vias de São Paulo, para diminuir a gravidade dos acidentes, mas grande parte da população não gostou da ideia. Haddad tentou a reeleição, mas perdeu no 1º turno.

João Dória (PSDB) foi eleito com propostas diferentes, mais voltadas aos carros. O slogan da campanha era “Acelera São Paulo”. Assim que assumiu, aumentou novamente a velocidade de algumas vias e, em 2018, saiu do comando para disputar e vencer a eleição para governador do estado. Bruno Covas (PSDB) ficou na gestão por dois anos e, em novembro, foi eleito para comandar a cidade por mais quatro anos.

Em geral, ciclistas entendem que as bicicletas não são prioridade para a prefeitura, atualmente. “É uma gestão voltada ao motoristas de carro, de aumentar velocidades. Acho que não há muito sendo feito. É a sociedade civil que tem que pressionar, junto com outros órgãos de controle, para mostrar que isso é contra a vida, afirma Leticia. “Vejo pouca preocupação por parte da Prefeitura. Vejo falta de manutenção e falta de atenção. A cidade tem que passar por uma Educação e está longe disso, observa Diego.

A Prefeitura de São Paulo se defende afirmando que lançou o Plano Cicloviário, com consulta pública, que prevê a ampliação da malha cicloviária paulistana. Mas há atrasos nas metas. O Plano previa, para o biênio 2019/2020, a construção de 173,5 quilômetros de ciclofaixa e reforma de 310 quilômetros de estruturas existentes. Até o final do ano passado, foram entregues 73 quilômetros novos e 193 quilômetros reformados. Ainda de acordo com a prefeitura, existem 103 quilômetros de novas ciclovias em obras ou em fase de sinalização. E das reformas que faltam, 110 quilômetros estão em obras.

Além do Poder Público, empresas privadas também estão envolvidas no ciclismo em São Paulo. Além da já citada Uber, uma marca muito presente é a do Banco Itaú, que patrocina o projeto Bike Sampa. Trata-se de um sistema de compartilhamento de bicicletas, que ficam em estações fixas e podem ser desbloqueadas para uso do público mediante pagamento, a partir de R$ 4,30.

A Tembici, empresa que opera o sistema da BikeSampa, informou que recentemente criou um curso para educação de cicloentregadores, o “Pedal Responsa”. Afinal, durante a pandemia, muitos ciclistas passaram a trabalhar no sistema de delivery, entregando produtos e alimentos. O projeto da Tembici foi feito em parceria com o iFood e o Aro, com o objetivo de abordar cuidados e responsabilidades dos entregadores, além de trazer outros temas, como saúde, prevenção ao coronavírus e comunicação com o cliente.

Tembici, empresa que opera o sistema da BikeSampa. Crédito: Tembici.

O legado da Marina
Enquanto esteve viva, Marina viu ativamente São Paulo passar por evoluções na segurança para o ciclista. Além da criação de ciclovias, houve um importante debate social, como destaca Leticia: “Ter esse período de implantação de infraestrutura colocou o debate sobre ciclismo no centro. Sempre estávamos debatendo. E aflorar essa questão com o debate público é relevante. Se você não é notado, não existe, não tem como se colocar. Se há pessoas questionando, se tem mídia falando mal, tem espaço pra você falar ‘mas não é mal, é bom’. Hoje, quando a gestão ‘Acelera, São Paulo’ vem apagando ciclofaixas, e a sociedade pinta, ela está questionando, está ocupando a cidade de forma articulada, como não era antes. Isso foi importante para dar voz e reconhecer que ciclistas existem, estão na cidade e são reconhecidos pela política pública”

Auditório do Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo (da esquerda para a direita: Priscila Costa, Leticia Lindenberg e Marina Harkot). Apresentação dos resultados da pesquisa sobre os desafios que mulheres encontram para andar de bicicleta - trabalho coordenado pelas três pesquisadoras. Crédito: Arquivo pessoal.

Ao morrer, Marina Harkot impactou até quem não a conhecia. “Me tocou porque é muito perto da minha realidade. Eu passo perto do local do acidente quase todos dias. vemos que o perigo está próximo. Podia ter acontecido comigo. Foi como se fosse com uma pessoa da família. Fiquei sentido com isso e nem a conhecia. Foi muito difícil ter que reunir forças para encarar e voltar. Comecei a sentir receio. Depois me acostumei, mas naquela semana foi complicado”, relata Diego.

Agora, depois da morte, a luta de Marina deve ser dividida em duas. Uma parte vai acontecer na busca por justiça, no processo contra José Maria da Costa Júnior. A outra parte será voltada para manter vivo o legado de Marina: “Um legado importante é no sentido de que não podemos ter um mundo voltado para o ser humano padrão. É olhar para o mundo e perceber a diversidade. Existe um padrão de normalidade, que envolve sexo, gênero, cor, classe social e modo de deslocamento. A cidade é feita para essa pessoa neutra, como se não tivesse diversidade. E quando as pessoas trazem suas especificidades, ela não se encaixa. Isso gera conflitos e opressões, que as pessoas sentem. Olhar para o mundo e compreendê-lo como múltiplo é o legado que a Marina deixa, conclui Leticia. O ataque contra o cicloativismo foi forte, mas não foi fatal. Marina morreu. Mas as ideias dela estão mais vivas do que nunca.

Deixe um comentário

Digite seu comentário
Digite seu nome