Depois de uma queda significativa no número de casos e óbitos por Covid-19, a Europa vive uma segunda onda da doença que, novamente, se espalha rapidamente. Países já retomaram medidas de controle para conter algo que já era previsto por autoridades de saúde. As festas de fim de ano, que normalmente envolvem muitas pessoas, colocaram autoridades de saúde em alerta para um segundo pico.
Vale o questionamento: será que o Brasil finalizou a primeira onda? Sobre este tema, conversamos com Christovam Barcellos, sanitarista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ele explica quais devem ser as principais causas desta segunda onda do vírus e como as medidas de intervenção diminuem o alastramento e o agravamento da doença, além da importância de investimentos na ciência e como a corrida internacional pela descoberta da vacina pode ser prejudicial.
Aupa – É possível afirmar que o Brasil emendou as ondas da Covid-19? Houve algum momento de superação da primeira onda?
Christovam Barcellos – Ainda não podemos considerar que o Brasil está vivendo uma segunda onda, pois não superamos a primeira. Os países que estão vivendo a segunda onda fazem parte da Europa, principalmente. Houve um aumento grande de casos e óbitos e, depois, uma queda acentuada. Entre junho e julho, os casos estavam diminuindo, por exemplo. Já, em setembro, voltou um número grande de casos e óbitos. Além disso, é importante lembrarmos que uma segunda onda não é caracterizada só pelo número de casos, mas, sim, por um conjunto de sinais, segundo temos acompanhado aqui na Fiocruz, por exemplo, sobrecarga nos hospitais, procura por leitos de UTI, mortalidade, proporção de exames de Covid-19 que estão dando positivo. Na Europa apareceram todos esses sinais, apontando para uma segunda onda que parece que já está sendo revertida. No Brasil, vimos um aumento mais lento, em comparação aos países do Oriente e da Europa e também uma queda lenta, formando aquele patamar que vinha até outubro. Em outubro houve uma pequena reversão desse processo. Se isso vai caracterizar uma segunda onda, que pode vir no verão, depende das medidas de controle que podem ser tomadas. É necessário retomar algumas políticas de isolamento, reforçar o uso de máscaras, evitar aglomerações, incentivar a higiene pessoal e cuidar das pessoas mais vulneráveis.
Quantidade diária de novos casos de Covid-19 confirmados por milhão de pessoas. Fonte: Our World Data.
Aupa – A doença chegou ao Brasil cerca de dois meses após o primeiro caso no mundo (registrado em novembro de 2019). Acerca de Políticas Públicas voltadas à Saúde e à cooperação entre as pessoas, o que faltou ao Brasil?
Christovam Barcellos – O Brasil teve tempo. Em dezembro de 2019, houve o primeiro comunicado oficial de que estava acontecendo o início da transmissão dessa virose respiratória na China. Logo depois, em janeiro de 2020, aconteceu na Europa. Então, o Brasil teve algum tempo para se preparar. Não podemos dizer que foi um completo fracasso, pois se notou hospitais de campanha, importaram testes, entre outras medidas. Ao mesmo tempo, vimos uma política negacionista muito forte vindo de formadores de opinião, inclusive do próprio governo federal. Pessoas afirmando que era apenas uma “gripezinha”, que nada precisava ser feito. E, pior: falaram que, se tivesse que morrer gente, que morresse mesmo. Então, muitas declarações confundiram a população.
Uma das características marcantes de países da Europa e do Oriente é que houve uma mensagem uníssona que foi passada para a população, como: é preciso usar máscara e evitar aglomerações. A falha na comunicação no Brasil foi terrível. Talvez, tenha causado mais impacto do que algumas medidas de controle.
Aupa – O que pode ser feito para melhorar o quadro, mesmo diante das dificuldades no cenário econômico e dos hábitos comuns do verão (como ir à praia)?
Christovam Barcellos – A crise está dentro do hospital e fora também. Ela acontece no que chamamos de “Atenção Primária em Saúde”, que é a clínica de Saúde da Família, os agentes de saúde visitando as famílias, tanto para acompanhamento quanto para saber se essas pessoas estão cumprindo as medidas – e também para alertar as pessoas que vivem em situações de vulnerabilidade sobre como se prevenir quanto ao vírus.
É importante falar sobre a vacina, pois existe uma corrida internacional para o desenvolvimento da mesma. Algumas empresas estão utilizando tecnologia inovadora, onde esperamos a eficácia. Vale destacar que o Brasil está bem situado nesse ponto. O Brasil tem uma tradição de pesquisa em saúde muito importante, mas infelizmente está abalada pela crise econômica e a dificuldade de financiamento de pesquisa no Brasil.
Aupa – O mundo todo tem assistido ao trabalho intenso de centros de pesquisa em busca da vacina, além do desenvolvimento tecnológico para tratar os doentes. E, para alcançar estes resultados, é necessário alto investimento financeiro e humano. Como você avalia este quadro no Brasil?
Christovam Barcellos – Existe uma certa liberdade nas instituições, como o Fiocruz e o Instituto Butantan, para fazer cooperações com outros países, em prol do desenvolvimento da vacina, como a China e a Rússia. Isso só não pode se transformar em uma competição entre os estados e o governo federal, afinal, essa politização da corrida pela vacina é altamente prejudicial. As instituições precisam discutir as vantagens e desvantagens de cada vacina e como serão distribuídas. Por exemplo, no Brasil, a vacina precisa ser distribuída via Sistema Único de Saúde [SUS]. Assim, o SUS terá uma função importantíssima nessa campanha de vacinação em relação à logística, além de disponibilizar profissionais capacitados para aplicar a vacina e fazer a manutenção dela. Importante: o SUS tem essa capacidade, porém precisa de organização.
Políticas de vacinação contra Covid-19. Fonte: Our World Data.
Doses diárias de vacinas contra Covid-19 administradas. Fonte: Our World Data.
Aupa – Como você vê o financiamento voltado às pesquisas no Brasil? Você acha que falta maior proximidade ou entendimento da população acerca da cadeia científica necessária para o desenvolvimento de uma vacina, por exemplo?
Christovam Barcellos – O SUS é muito descentralizado. As ações dos SUS são executadas pelos municípios, mas é necessário uma coordenação nacional que venha do Ministério da Saúde. Algumas pessoas negligenciaram certas medidas do governo e saíram às ruas, começaram a se aglomerar e isto está acontecendo também em outros países da Europa – mas não no Oriente, que nunca cometeria esse tipo de irresponsabilidade. Outro ponto é que o SUS não é só hospital: ele é também uma articulação com hospitais privados e cabe a ele executar determinadas ações, que, no geral, não se faz no setor público de saúde, como a atenção primária em Saúde, o desenvolvimento tecnológico de vacinas, os equipamentos hospitalares de proteção e o próprio teste. Isso tudo cabe ao governo federal, porém, infelizmente, muitas dessas medidas não foram tomadas.
Aupa – Como você vê o papel da Educação no cenário científico, diante da pandemia?
Christovam Barcellos – A Educação e a pesquisa andam juntas. Hoje, temos uma dificuldade enorme de formação de quadros voltados para o combate da Covid-19, mas, no fundo, esses profissionais, tanto de Saúde quanto de outros setores, são formados com a prática dentro e fora da sala de aula. A Educação não pode parar. E, mesmo que haja uma determinação de um novo decreto, a Educação não para. Ela acontece dentro das casas, nas vizinhanças e nas comunidades e isso é um aspecto positivo que temos que aproveitar. A Educação não acontece apenas em escolas. As universidades têm um papel muito importante nisso e elas estão se esforçando para fazer essa ponte entre o desenvolvimento científico e a pesquisa prática para o controle da pandemia, como também para o ensino – como ensinar as pessoas, o tempo todo, sobre comportamento, solidariedade, fundamentos básicos de biologia, microbiologia, virologia e medicina. As pessoas estão atentas a isso e muito curiosas e são não apenas os estudantes, como toda a população.
Aupa – É correto afirmar que atribuir a maior frequência de Covid-19 aos grupos em situação de maior vulnerabilidade social é um preconceito – dado que é a população que não necessariamente tem acesso ao saneamento básico ou à possibilidade de fazer a quarentena, devido à necessidade de trabalho?
Christovam Barcellos – Quase metade da população ativa do Brasil é formada por trabalhadores formais, com carteira assinada e horários regulamentados pela legislação. A outra metade é formada por trabalhadores informais, que prestam serviços e, sem dúvida nenhuma, são essas pessoas que sofrem mais com a pandemia. De um lado, com a perda de renda, pois a economia já vinha mal e entrou em uma grande crise, quase uma recessão durante a pandemia, não só no Brasil como em outros países. As pessoas perderam poder aquisitivo e pararam de comprar por falta de renda ou por medo de sair na rua. Isso prejudicou a economia, principalmente o poder de compra dessa população informal. Não foram as indústrias ou as grandes empresas que foram as mais afetadas, mas, sim, a população em situação de vulnerabilidade, que, devido a um contexto bastante brasileiro, também vive nas periferias e é obrigada a usar o transporte público lotado, viver em habitações precárias, casas mal ventiladas, com pouca iluminação e isso jogou um peso maior da doença para essas pessoas.
Aupa – Quais mudanças você consegue perceber na relação entre a comunidade científica e a sociedade civil?
Christovam Barcellos – Vemos algumas opiniões negacionistas. A chamada anticiência tem predominado no mundo. Nas redes sociais, muitas vezes, se propaga o que não é verdade. Como a possibilidade da Terra ser plana ou que as vacinas introduzem um chip que controla o pensamento, entre muitos outros exemplos.
A pandemia obrigou as pessoas a prestarem atenção na comunidade científica, no que está sendo produzido cientificamente.
Talvez isso signifique um movimento pró-ciência, pró-desenvolvimento científico, e pró-soberania dos países. Vemos muita competição entre os países nos setores comerciais, mas, ao mesmo tempo, na academia há uma cooperação muito grande entre países. É provável que essas cooperações científicas voltem a ganhar força e isso seja um novo clico.
Esta entrevista foi realizada em dezembro de 2020.