É um erro achar que as crianças foram pouco afetadas pela pandemia de Covid-19. Existe essa impressão, pois muitas ficavam assintomáticas quando estavam infectadas. Mas os efeitos da quarentena, a médio e longo prazos, são preocupantes. Principalmente no Brasil, onde faltou uma coordenação para cuidar melhor das crianças. Quem faz essa avaliação é Mario Volpi, coordenador do programa de cidadania dos adolescentes do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil.
Mario também comentou sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que completou 30 anos em 2020. Ele destacou que a violência contra os jovens é um dos principais desafios para o Brasil atualmente. Apesar do ECA ser um documento importante e valioso, o UNICEF sabe que o país ainda precisa de mudanças para colocá-lo em prática da maneira correta. Mario apontou os caminhos para que isso aconteça.
Foi um ano difícil para o UNICEF, que precisou reformular diversas ações. Muitas atividades passaram a ser feitas on-line. Mas não bastava ficar só no mundo digital. Foi necessário ajudar com necessidades básicas das crianças, desde itens de higiene até pacotes de dados para acesso à internet.
Leia a entrevista completa com Mario Volpi e entenda como o UNICEF vê a situação atual das crianças no Brasil.
AUPA – Quais foram as principais áreas de atuação do UNICEF no Brasil em 2020?
Mario Volpi – O UNICEF reorganizou todas as suas ações neste ano de 2020 para atender a população mais vulnerável no contexto da pandemia da Covid-19. Além de continuar as atividades de treinamento dos profissionais que atuam nas áreas de Educação, saúde, assistência social e proteção da criança, com estratégias on-line, foi necessário divulgar e promover orientações específicas para garantir a continuidade de serviços essenciais e adequar as atividades que não puderam ser presenciais. Com um grande número de famílias em situação de vulnerabilidade, foi preciso também estruturar uma ação dirigida à distribuição de kits de higiene e de alimentos. A questão da saúde mental de crianças e adolescentes também demandou uma estratégia específica. Em função do isolamento social foi preciso desenvolver atividades on-line de escuta e aconselhamento para que adolescentes e jovens pudessem enfrentar as questões específicas da pandemia. Outro tema que entrou fortemente na agenda foi a necessidade de apoiar adolescentes que ficaram sem aulas on-line por não ter acesso à internet. Além de dialogar com governo federal, empresas e parlamentares para propor medidas de acesso gratuito à internet, o UNICEF também buscou recursos para distribuir kits de acesso que incluíram pacotes de dados e aparelhos celulares, especialmente para adolescente e jovens de famílias vulneráveis e que vão fazer o ENEM [Exame Nacional de Ensino Médio].
AUPA – O UNICEF, junto com a ONU (Organização das Nações Unidas), faz parte de um plano de ação global para eliminar a pobreza e a fome, assim como promover Educação e proteger o planeta. É a Agenda 2030. Como a pandemia de Covid-19 afetou os objetivos desse plano?
Mario Volpi – A pandemia afetou todas as áreas do desenvolvimento sustentável, pois demandou uma concentração de esforços na proteção da vida de cada cidadão. Como ainda estamos vivendo as consequências das medidas que foram negligenciadas, não é possível fazer uma conta exata. O que fica perceptível é que tanto as crianças e quanto os adolescentes, que no inicío da pandemia pareciam ter sido menos afetados, agora já se observa que o impacto, em termos de violência doméstica, trabalho infantil, falta de acesso à Educação, saúde mental e desenvolvimento integral, se apresentam como enormes desafios, que precisam ser enfrentados sob o risco de perdermos os avanços conquistados.
AUPA – Qual é sua avaliação sobre as medidas que o Brasil tomou na Educação durante a pandemia?
Mario Volpi – O Brasil é um país de imensas desigualdades, que aumentaram com a pandemia. Milhões de crianças que não tiveram acesso à Educação on-line perderam o vínculo com a escola e não tiveram uma acompanhamento ou apoio para continuar aprendendo.
Embora estados e municípios tenham propostas alternativas e ações, faltou, de fato, uma coordenação que colocasse a educação como prioridade.
AUPA – O Estatuto da Criança e do Adolescente completou 30 anos. O que o Brasil deve fazer para cumprir melhor os objetivos do documento, principalmente nas áreas de violência e trabalho infantil?
Mario Volpi – O tema da violência é o pior resultado que o país obteve nos últimos anos. Em 20 de janeiro de 1992, o relatório da CPI sobre o extermínio de crianças e adolescentes apontava 4.611 mortes por homicídio de menores de 17 anos no período de 1988 a 1990. Os dados mais recentes revelam mais de 10 mil assassinatos por ano. Isto significa que o país tem seis vezes mais homicídios contra adolescentes do que tinha na época da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O caso do trabalho infantil é bem diferente, pois as políticas de transferência de renda e acesso à escola funcionaram e, entre 1992 e 2015, houve uma redução de 68% do trabalho infantil no Brasil: cerca de 5,7 milhões de crianças e adolescentes deixaram de trabalhar. Os dados recentes revelam que este problema persiste para mais de 2,4 milhões de crianças e adolescentes, o que nos permite comemorar os avanços, mas demanda uma expansão urgente de políticas de erradicação do trabalho infantil. O Brasil precisa enfrentar urgentemente as diferentes violações de direitos de crianças e adolescentes.
Para fazê-lo precisa aumentar o investimento em políticas de proteção às crianças, responsabilizar os agressores de crianças, romper a impunidade, e promover políticas de inclusão social.
AUPA – Para ajudar a combater desigualdade e pobreza, quais são as dificuldades que o UNICEF encontra especificamente no Brasil? Há algo mais particular do nosso país?
Mario Volpi – Como um dos países com maior desigualdade do mundo, o Brasil vive o reflexo da concentração de renda, da discriminação racial, da baixa qualidade das políticas sociais para os mais pobres e da falta de prioridade na infância e adolescência. Há ainda um pensamento absurdo e repetitivo de que as crianças são o futuro. Na verdade, elas só terão futuro se houver um investimento no presente. Os discursos pró infância não são suficientes para garantir uma melhoria na qualidade de vida. É muito urgente que os investimentos sejam feitos para assegurar que, desde a gestação até a conclusão do Ensino Médio, o país invista nas crianças e nos adolescentes com políticas públicas continuadas, sistemáticas e de qualidade.
AUPA – Como o UNICEF vê a ação da sociedade brasileira para o impacto social positivo na Educação a longo prazo? Ou seja, as ações que vão atingir os filhos das atuais crianças.
Mario Volpi – A sociedade brasileira valoriza a Educação e sabe que a melhoria da qualidade de vida depende dos anos de escolaridade e da qualidade da Educação recebida. Os países que fizeram mudanças importantes na Educação investiram 10% do seu PIB ou mais. No Brasil, o movimento pelo direito à Educação vem insistindo na necessidade de avançar neste sentido.