Dos centros urbanos às comunidades das florestas, as condições sociais e ambientais da região amazônica desvelam cenários críticos em plena pandemia. Não que a situação estivesse favorável antes. As manchetes sobre a Amazônia pré-pandemia já alertavam sobre o valor da floresta em pé e as consequências do descaso com a região*. Agora, a crise da COVID-19 traz à tona a fragilidade do sistema de saúde e a falta de preparo para atender às necessidades das populações da Amazônia. 

Nas periferias dos grandes centros se encontra parte da população que sentiu de imediato as consequências sociais e econômicas da pandemia. As orientações básicas dadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por outros órgãos ligados à Saúde e à Governança, como a higienização frequente das mãos, tornam-se impossíveis de serem cumpridas por famílias que sequer possuem água encanada para lavar as mãos. Em 2020, as cidades da região amazônica continuam a figurar entre as últimas do ranking de saneamento básico do Trata Brasil, mesmo sendo a região com maior reserva de água do planeta, segundo a Agência Nacional de Águas.

Segundo Lília Melo, moradora da Terra Firme – bairro periférico em Belém do Pará, 95ª colocada de 100 cidades do Ranking de Saneamento Trata Brasil – a sensação é de que as recomendações gerais de saúde não se aplicam à realidade vivida ali. Na “TF”, apelido dado ao bairro pelos próprios moradores, a conscientização acontece de maneira diferente:

O registro faz parte de uma série de publicações do Cine Clube TF, coletivo que trabalha as expressões artística e criativa entre jovens estudantes da rede pública de ensino. Coordenados pela professora Lília, os alunos começaram a produzir conteúdos, que vão do manifesto ao apoio e à conscientização, condizentes com as próprias realidades e com um toque do dialeto regional. A prática de gravar vídeos sobre o dia a dia na periferia e a mobilização dos estudantes do bairro em prol daqueles que não têm como ficar em casa pode parecer ordinária, mas no discurso dos jovens estudantes percebe-se a resistência e a reivindicação de direitos daqueles que, por vezes, sentem-se esquecidos pelo Poder Público.

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“Mesmo que não tenhamos a internet como instrumento maior dentro da periferia, temos a conexão entre nós”, defende a professora. Na periferia, a conexão consiste em cuidado e preocupação com vizinhos, parentes e amigos da comunidade. Muito mais do que um movimento de conscientização que ganha likes e compartilhamentos na internet com a hashtag #NãoTeFazDeLesa, o coletivo tem dado suporte e orientação de porta em porta, levando cartilhas informativas, distribuindo máscaras e orientação. “Os mais novos passaram a ter mais paciência para ensinar os mais velhos a mexer no celular, no WhatsApp”, observa a coordenadora do coletivo, ao mencionar as estratégias da comunidade para manter-se unida e informada.

O “Cine Clube TF - Do extermínio ao protagonismo” é liderado pela professora Lília Melo e seus alunos, mas busca envolver toda a população da Terra Firme em uma rede de apoio. Foto: Instagram @cineclub_tf

O apoio civil e governamental às camadas vulneráveis parece seguir a passos lentos, limitando-se a doação de cestas básicas e outros insumos. A professora observa que esse tipo de assistência durante a pandemia tem sido fundamental; no entanto, deve ser planejado em conjunto com as lideranças das comunidades.

“Não tem como, por exemplo, marcar um ponto de entrega e esperar que todos cheguem lá sem problemas para buscar as cestas e fazer registros. E se eu não tiver como largar o meu comércio, o meu trabalho? E se for distante demais da minha casa? Se eu não tenho sequer bicicleta, vou andando até lá  sob a chuva, sob o Sol? Embora todos precisem, não deveríamos mapear as famílias mais vulneráveis?”,

indaga a professora Lília Melo.

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Caetano Scannavino - Foto: Reprodução Facebook
Lília Melo - Foto: arquivo Cine Clube TF
Thiago Cavalli - Foto: Simone Donha

Os efeitos da pandemia na região que abrange 60% do território brasileiro se mostram no crescimento dos índices de desmatamento – somente em abril de 2020 o número de alertas de desmatamento cresceu mais de 60% em comparação ao mesmo período em 2019, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), até a explosão da doença no Amazonas, com 20.913 casos confirmados segundo o Ministério da Saúde, atrás somente dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará (dados do dia 18 de maio de 2020). Em meados de abril, o próprio governo do Amazonas já havia admitido que a disponibilidade total de leitos, antes do início da construção de hospitais de campanha, era de pouco mais de 6 mil.

Bernardino Albuquerque, médico infectologista e professor da Universidade Federal do Amazonas, aponta diversos fatores agravantes, entre eles a disseminação sazonal de viroses e síndromes respiratórias no período de chuvas e o despreparo das unidades de saúde da capital e do interior. “O vírus adentrou, se reproduziu e agora os municípios vivem uma dificuldade logística. Não há regional de saúde estabelecida ou equipamentos adequados [no Amazonas]. Algumas necessidades de saúde têm como única referência a capital”, esclarece. Transpor as longas distâncias entre os municípios depende, muitas vezes, da maré dos rios.

A seguir, interaja com os dados.

No epicentro amazônico da doença, a prevenção pode fazer a diferença entre a vida e a morte, já que no início de abril a ocupação de UTIs no Amazonas chegou a 95%. “Aqui no município também não há respiradores, e ainda estão testando muito pouco”, completa Thiago Cavalli, coordenador da Casa do Rio, localizada em Careiro, interior do estado. Segundo ele, a ONG começou a distribuição de máscaras e kits de higiene desde os primeiros sinais da crise em São Paulo, antes mesmo de qualquer ação por parte do Estado. O despreparo do Poder Público também foi apontado por Bernardino: “Nós estamos correndo atrás para apagar um incêndio que não está sendo e não será pequeno na Amazônia. Ainda vamos ter problemas sérios quando a doença adentrar os municípios do interior”, alerta.

A 102 quilômetros da capital Manaus, a Casa do Rio trabalha com iniciativas que contribuem para o desenvolvimento humano e territorial, como cursos e assessoria técnica em agroecologia e produção de alimentos saudáveis. Uma das alternativas para dar suporte aos produtores mesmo com as atividades suspensas foi comprar insumos produzidos pela própria comunidade e distribuí-los em cestas de alimentos. Enquanto isso, o coordenador revela que tem passado os últimos dias em busca de parcerias para executar outras medidas emergenciais.

A urgência em atender as necessidades da população amazônida só muda o endereço. Na região Oeste do Pará, a ONG Saúde e Alegria iniciou em abril a campanha #ComSaudeAlegriaSemCorona, que consistia na arrecadação de suprimentos à comunidades e na doação de equipamentos de proteção aos profissionais de saúde, produzidos em impressoras 3D em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará. Um mês depois, o agravo da situação resultou em um plano emergencial completo para alcançar diversos municípios do Baixo Amazonas.

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Projeto Saúde e Alegria.
Assinatura de convênio feita entre Conselho Comunitário de Alter e Clube de Mães para produção de máscaras para profissionais de Saúde da Semsa. Secretaria de Saúde fez entrega de tecido para confecções. Foto: Projeto Saúde e Alegria.
Parceria com a UFOPA e empreendedores locais está produzindo máscaras face shields, óculos e outros acessórios através de impressoras 3D. Foto: Projeto Saúde e Alegria.

Nas comunidades ribeirinhas e nas aldeias indígenas, a doação de cestas básicas, kits de proteção e higiene representa um esforço para que as famílias não precisem se deslocar para as áreas urbanas a fim de fazer compras e outras atividades que as colocariam em risco de contaminação pelo vírus. “Em maio esperamos evitar que se repita o que vimos no mês anterior”, anuncia Caetano Scanavinno, coordenador do Saúde e Alegria, fazendo referência ao risco de contágio em comunidades afastadas dos centros urbanos. 

Vale destacar que os indígenas possuem alto índice de vulnerabilidade a patógenos que a população não indígena já lidou e, uma vez que o vírus chegue às aldeias, eles precisam “disputar” pelos mesmos leitos que o restante da população e ainda sujeitos a um risco de letalidade muito maior. Até o dia 18 de maio, a Secretaria da Saúde Indígena (SESAI) notificou 23 óbitos entre indígenas, sendo 11 deles na região do Alto Solimões, localizada no estado do Amazonas. No levantamento independente da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), já são 103 óbitos e 44 comunidades atingidas (dados de 15 de maio de 2020). Segundo o movimento indígena, a diferença nos números se dá porque a SESAI está considerando ocorrências apenas nas áreas dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), vinculados à secretaria.

Na Amazônia, as consequências sociais e ambientais da pandemia se misturam. “O garimpo continua e as atividades predatórias ainda podem se intensificar enquanto as atenções estão voltadas para o vírus – do garimpo ilegal ao desmatamento. Isso preocupa não só do aspecto ambiental, mas porque também são focos de contaminação do vírus para os garimpeiros e as comunidades que moram no entorno”, lamenta Caetano. Ainda sobre a problemática do desmatamento, dados do Imazon já apontam 529 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal em abril de 2020, um aumento de 171% em relação ao mesmo mês de 2019.

 

O impacto social no avançar da pandemia
O setor de negócios de impacto social na Amazônia sempre enfrentou seus próprios desafios. De acordo com o mapa de negócios de impacto, produzido pela Pipe.Social em 2019, somente 7% dos empreendedores sociais brasileiros estão na região Norte, enquanto o Sudeste, líder do ranking, concentra 62%. Mas a disparidade deve ser analisada com atenção. 

“Existe uma demanda reprimida de organizações de impacto de outros lugares do Brasil, mas, muitas vezes, o indivíduo que trabalha naquela comunidade nem sabe desse conceito de impacto. Ele nasceu pra resolver um problema, mas não se entende com essa vontade ainda. A gente percebeu que por isso muitas vezes a demanda não chegava até nós”, reflete Fernanda Dativo, coordenadora de investimentos na SITAWI Finanças do Bem, plataforma intermediária de investimentos de impacto. Assim, o apoio aos empreendedores na mensuração de impacto e planejamento de finanças já seria o suficiente para concretizar mais investimentos na região.

Um dos cinco negócios da Amazônia apoiados pela SITAWI atualmente, a Cooperativa dos Extrativistas da Floresta Nacional de Carajás (COEX Carajás) de Parauapebas (PA) visa gerar renda para população local por meio do extrativismo dentro da reserva. A partir da extração das folhas do jaborandi (foto), faz-se produtos cosméticos e farmacêuticos, como colírio para doenças oculares e glaucoma. Foto: SITAWI Finanças do Bem

“Os temas da agressão à floresta na Amazônia estão muito em alta. Então, investidores do Sudeste que têm dinheiro pra isso viram uma oportunidade de apoiar com segurança, porque já conheciam a gente”, revela Fernanda. No início de 2020 a SITAWI abriu a primeira rodada de investimentos voltados exclusivamente a negócios da Amazônia. As reservas de investimento esgotaram em 24 horas e a fila de espera dos investidores já acumulava mais de R$1.000.000,00 (um milhão de reais).

No contexto da pandemia, a coordenadora de investimentos relata que houve muito mais prejuízo aos empreendedores da Amazônia em comparação a outras regiões. “Refizemos todo o nosso cronograma, porque a maior parte das atividades exigia ir até as comunidades beneficiadas, mensurar impacto, realizar treinamentos. Todos tiveram que se retrair e a receita caiu a quase zero”, explica Fernanda.

Enquanto isso, os pagamentos foram suspensos e a SITAWI tem oferecido opções alternativas para salvar o caixa, evitando ao máximo demissões.

Entre diversas perdas em consequência da COVID-19, algumas oportunidades: refletir sobre o valor da Amazônia a nível nacional, buscar união e aproximação – mesmo com o distanciamento social -, assimilar diferentes experiências e modos de vida. 

“O que deveria uma nação como o Brasil fazer é puxar uma reflexão mais aprofundada sobre o desafio social e de saúde que se apresenta na Amazônia, e não meramente tê-la como uma fonte de riquezas para a parte mais abastada da nação. Não dá mais para extrair, extrair, extrair sem que essa riqueza se converta em bem estar para os moradores da Amazônia”, defende Caetano. Nesse contexto, Thiago faz uma reivindicação: “Precisamos de infraestruturas de desenvolvimento social, ambiental e econômico que permitam que a gente permaneça de forma sustentável no território. Se tivéssemos estruturas de comunicação eficientes, por exemplo, as comunidades poderiam estar muito mais preparadas para a pandemia”.

Somado a isso, a professora Lília reivindica o reconhecimento do lugar do outro.

“No mundo todo, houve várias estratégias e soluções para se viver o isolamento. Essas soluções ignoraram o pobre, ignoraram as pessoas que não têm acesso. Tudo é via internet, conexão, com a câmera na frente. Mas se a gente faz uma pergunta do tipo ‘e se não tem?’, a maioria fica de fora. É bom pensar nisso, sair da bolha. Além da gente ter esforços para ajudar o outro, é momento de contemplar a diversidade e perceber que nossos padrões não são os únicos que existem.”

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