A política institucional brasileira, em seu formato contemporâneo, passou por inúmeros desgastes em sua jovem vida e foi mistificada segundo estratégias de dominação de grupos influentes. Tais estratégias representam quase um Véu de Maya das relações sociais, com o desenvolvimento de ilusões do funcionamento da ordem social e da negação do pertencimento de cidadãs e cidadãos enquanto integrantes de todos os processos políticos. É como se não enxergássemos que a política está em tudo e todos, dentro de nossas esferas individuais e coletivas.

Acho interessante começar com a desconstrução da naturalização do nosso fazer político. Mas o que isso significa? O nosso sistema político foi pensado, dentro de uma estrutura elaborada e histórica de produção cultural, ou seja, refletindo o momento de consciência de nossa população e, ainda, as próprias estruturas hierárquicas da sociedade. Com isso, é justo dizer que um grupo minoritário, mas com maior poder de influência na produção cultural, define como será a nossa organização enquanto sociedade. E, apesar de representarem uma parcela muito pequena da população, foram compreendidos como maioria, chamando os demais, dicotomicamente, de “minorias”.

A política reflete a cultura de uma sociedade. Podemos evidenciar isso dentro da socialização: desde pequenos, as instituições, inclusive as familiares, nos dizem quais são nossos papéis enquanto membros da comunidade que pertencemos, segundo nossas características identitárias. Isso tudo para manter uma ordem social instituída, que, mesmo com suas inconsistências, tendemos a acreditar se não estamos despertos politicamente.

Para dar alguns exemplos, podemos trazer dados do Tribunal Superior Eleitoral, de 2018. O levantamento aponta que 52% do eleitorado brasileiro é composto por mulheres, sendo que 72% destas mulheres demonstram algum tipo de interesse por agendas política e 76% acreditam no poder de seu voto. Complementando, 95% das mulheres acreditam que existe uma sub-representação de mulheres, segundo o IDEIA Big Data (2018) e, mesmo assim, nós elegemos a maioria absoluta de representantes políticos homens.

Podemos acordar que nem todos os grupos estão em condições de liderança e de real poder para fazer enfrentamentos justos às lógicas impostas pelos grupos dominantes. Mesmo com isso em mente, não acho adequado dizer que vivemos uma “crise de representação” e, sim, uma lógica de exclusão em sub-representações.

Mas por que não nos sentimos representados por aqueles que elegemos?

Ainda segundo o IDEIA Big Data (2018), 96% dos eleitores não se sentem representados pelos políticos eleitos; 94% dos entrevistados acreditam que políticos se guiam por agendas individuais; 89% crêem que seus representantes não se preocupam com seu desempenho de mandato e nem com a população durante seus processos de tomada de decisão.

Tudo se resume às más escolhas? Acredito que não: a política é mistificada, é pensada, em sua estrutura linguísta, seus ritos e processos para gerar distanciamentos das cidadãs e dos cidadãos, para que, com isso, a centralização da tomada de decisão se fortaleça, com menos insumos para que o controle social seja realizado. Esse distanciamento também é responsável por nos fazer acreditar que nesse espaço da política institucional cabem as mesmas pessoas que os ocupam desde que eles foram criados.

Participar da política efetivamente é um pouco mais desafiador mesmo. Primeiramente, precisamos ter algum pertencimento com os espaços, para que, então, possamos ocupá-los – daí a importância de ter todos os perfis identitários em todos os espaços de troca e poder. O segundo ponto é a compreensão dos assuntos complexos que são tratados, assim como suas formas e dizeres próprios. Daí a importância de formações cidadãs, da transparência e dados abertos, e de sua disseminação de forma clara em diferentes formatos. Finalmente, o terceiro fator é o logístico, que apresenta o desafio de tempo e recursos, que se somam ao ponto principal, a necessidade de organização coletiva para gerar força de pauta e engajamento.

Sobre a complexidade da desigualdade é importante dizer que alguns desafios serão mais dificultosos para grupos específicos. Por exemplo, mulheres tendem a trabalhar e estudar mais do que homens, para conseguir minimamente se provar em contextos de machismo estrutural e pela própria lógica de geração de renda, uma vez que tendemos a ganhar menos do que homens em atividades profissionais.

Mulheres são as primeiras responsabilizadas socialmente por atividades domésticas e de cuidado. Além disso, precisamos nos preparar muito mais do que homens, pois sempre tivemos o espaço público negado – uma questão de auto empoderamento. Exemplos disso são os dados IBGE de 2018. Homens dedicam, em média, 10,5 horas para afazeres domésticos semanalmente, enquanto que as mulheres, em torno de 18,1 horas. A diferença de renda mensal média de homens e mulheres é de R$ 542,00, sendo que homens têm a renda média de R$ 2.306,00 enquanto a de mulheres é de R$ 1.764,00.

E, apesar de todos esses desafios serem comuns entre mulheres, não os experimentamos da mesma forma. Ainda existem os efeitos do racismo estrutural, da homofobia em suas diversas formas, da desigualdade financeira com descrença no potencial de pessoas com menos recursos pela lógica perversa do merecimento, da crença da supremacia da educação formal, desacreditando pessoas que não tiveram essa oportunidade de acesso ou optaram por outros caminhos, entre outros fatores.

Tudo isso para dizer que: mulheres tendem a ter menos tempo disponível e condições efetivas para participar de atividades da vida pública, porque não existe, em níveis culturais, a divisão do trabalho doméstico.

Como se tudo o que falamos não fosse o suficiente, a participação pública é composta por diálogos cansativos, ambientes de disputa com jogo de influência e defesa de demandas, com problemas centrais relativamente comuns, apesar dos sistemas de desigualdades e exclusões, mas com propostas de soluções com vieses ideológicos diferentes.

Existem muitas formas de participar e se engajar politicamente. Para todas e todos que têm disponibilidade para fazer isso dentro de suas rotinas, um engajamento rotineiro é desejável, testando de que formas gostam de participar e quais são as causas prioritárias para cada uma e cada um de nós, sendo elas ideológicas ou identitárias. Ou seja, com base no que acreditamos e a partir da forma como nos enxergamos.

Entretanto, existem três atitudes simples que todas e todos podem realizar para participar da vida pública com mais qualidade. Em primeiro lugar, podemos votar em quem queremos ver no governo, não em quem sabemos que, tradicionalmente, habita esse espaço. Esse rompimento com “tradicional” está ligado a potencial perspectiva de renovação do cenário político. A segunda sugestão é estarmos todas e todos abertos, assim como dispostos a abrirmos espaço em locais os quais transitamos, para novas narrativas, de modo a valorizar a diversidade. Por fim, a sugestão de ouro é: escolha seus representantes por projetos e acompanhe suas atividades.

Escolher bem quem você quer ver na liderança de pautas tão importantes, assim como descobrir quais as ferramentas elas e eles usam para se comunicar com a população e prestar conta do que está sendo realizado em seu exercício, é responsabilidade de todos que apertaram “confirmar” em qualquer urna que seja. Sem esquecer que somos responsáveis também pelos votos que não damos enquanto enfrentamento e por nossas omissões fantasiadas de “branco” e “nulo”.

Todo voto, toda fala e toda participação é um ato político e ideológico.

Dica de leitura:
Fundo Cívico para a Renovação Política – Pesquisa RenovaBr 2018. São Paulo, 2018.

 

Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.

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