Queijo Canastra demonstra impacto positivo de saberes tradicionais

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“Afagar a terra/Conhecer os desejos da terra”. Os versos de Chico Buarque e Milton Nascimento para a canção O cio da terra (1979) podem ser lidos como uma poética contemplativa da vida agrária no Brasil. E cabem também quando o assunto é o queijo da região da Serra da Canastra – dentre outros derivados de leite cru.

Dessa maneira, o cio da terra, que ocorre em cada estação, envolvendo desde a alimentação do gado, que proverá o leite, até a atividade microbiana do queijo em fermentação (constante), revela-nos um alimento vivo. Este estado favorável à produção a partir da terra mostra uma história brasileira secular por intermédio do alimento – uma cultura praticada oralmente e passada de geração em geração.  E qual é o impacto social que um saber tradicional, como o do queijo Canastra, em sua região?

Queijo Dinho sobre banca de madeira entalhada pelo nosso bisavô Quinca. Crédito: Valéria de Oliveira
Queijo Dinho sobre banca de madeira entalhada pelo nosso bisavô Quinca. Crédito: Valéria de Oliveira

O impacto da tradição

Trabalhar com o queijo artesanal é lidar com passado, presente e futuro. “O viés de transformação social é importantíssimo para a própria perpetuação da cultura no futuro. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de vida envolta no trabalho diário”, reflete Igor Messias da Silva. Ele é engenheiro ambiental e um dos responsáveis pelo Queijo Dinho, especializado no queijo tipo Canastra.

O queijo Canastra traz à mistura a mineiridade com a fermentação, que vem do bioma local, além de ser importante fonte de renda de famílias, principalmente para os pequenos produtores. “O potencial de transformação social do queijo Canastra é algo fabuloso, capaz de fazer uma verdadeira revolução em nossa região. A sua aceitação popular e sua fama são enormes”, explica o engenheiro.

O produtor rural Igor Messias da Silva e o Queijo Dinho. Crédito: Lucas de Oliveira
O produtor rural Igor Messias da Silva e o Queijo Dinho. Crédito: Lucas de Oliveira

Os pontos citados pelo engenheiro garantem mercado, segundo sua explicação. “Além disso, a produção deste queijo é exclusivamente familiar. Portanto, não existe concentração. Há, na verdade, distribuição de renda nas pequenas propriedades espalhadas no entorno da Serra [da Canastra]”, comenta. Para se ter uma ideia, segundo reportagem da brasilagro, o queijo representa hoje 55% da economia de São Roque, o que engloba também o ecoturismo relacionado à ele.

João Carlos Leite é produtor rural e presidente da Associação dos Produtores de Queijo Canastra (APROCAN) e é prova da importância da hereditariedade na produção artesanal de queijos. Afinal, seu filho mais velho – arquiteto formado pelo Politécnico de Turim (Itália) – é quem toma conta da queijaria da família hoje. “O caçula estuda Medicina, porém já é um apaixonado pelo negócio do queijo Canastra”, conta o pai, que é a quarta geração da família Leite na região.

Entre as conquistas da APROCAN está o registro, desde 2008, do queijo Canastra como patrimônio cultural imaterial brasileiro, título concedido pelo Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – o que agrega valor cultural ao produto.

Hoje, o queijo Canastra é feito por cerca de 800 pequenos produtores espalhados pela região da Serra. Mas este número já foi maior: segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER), outrora constavam cerca de 2.000 produtores. E a situação legal do queijo ajuda a explicar esta evasão, que começou entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000.

Da perspectiva ambiental, o bioma da região da serra da Canastra, hoje, se encontra em processo de extinção. Na mesma região, no lado sul da Serra, o problema é a mineração de quartzito. E é justamente o bioma que faz com que o queijo artesanal tenha um processo e sabor tão únicos. “As condições de microbiologia e o ecossistema nos permitem produzir um queijo diferenciado com sabor único no mundo”, reforça o presidente da APROCAN.

Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho, na Serra da Canastra. Crédito: Igor Messias
Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho, na Serra da Canastra. Crédito: Igor Messias

As Cidades da Serra 

Com peculiaridades trazidas pelas características únicas do bioma local (que se encontra em processo de extinção), a técnica de fermentação e produção do queijo só tem sentido e autenticidade se feito naquela região. A Serra da Canastra reúne 11 cidades: São Roque de Minas, Araxá, Bambuí, Campos Altos, Ibiá, Medeiros, Perdizes, Sacramento, Tapira, Tapiraí e São João Batista do Glória.

Entraves à produção

“O queijo Canastra não tinha um reconhecimento oficial, ou seja, era um produto ‘ilegal’, à margem da lei e, com a evolução dos negócios, ele ficou fora do ‘mercado legal’. O queijo, assim, foi ‘prostituído’, ficou sem valor agregado”, explica Leite. E foi a perda de valor que fez com que os pequenos produtores abandonassem a atividade.

“Quem teve condição de mudar de ramo econômico e começar outra cultura o fez. Dos 800 produtores que sobraram, a maioria é de fazendas pequenas, isoladas e que, em alguns casos, não tem energia elétrica”, comenta o presidente da APROCAN. A evasão promoveu a bancarrota geral dos produtores deixando a atividade, a produção de queijo, fazendo-os vender as fazendas.

Por produto legal entende-se aquele que tem a certificação vinda de órgãos públicos, sobretudo federais. Uma peleja que trata, também, de higiene e boas práticas de produção. Em 2014, segundo pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP em Piracicaba, 67% das propriedades avaliadas na região carecia de informações a respeito das práticas de fabricação. 17%, apenas, faziam controle de doenças.

Saiba mais sobre as pesquisas sanitárias envolvendo o queijo Canastra neste link.

E por isso a importância da , sobre a inspeção industrial de produtos agroindustriais artesanais e o uso do selo ARTE. Eles podem auxiliar na circulação e consequente popularização e conhecimento geral do queijo Canastra, que é produzido desde a chegada dos colonizadores ao Brasil. Até então, a comercialização interestadual de queijo cru no Brasil era proibida.

Saiba mais sobre as leis envolvendo o queijo Canastra neste link.

A este cenário soma-se os custos altos para a produção de leite e produto com valor agregado baixo. “Assim, o produtor não consegue nem alimentar sua família. Os filhos, quando atingem a idade para trabalhar, acabam migrando para os grandes centros e os pais abandonarem a atividade. Problemas oficiais que este mercado informal trouxe”, aponta o presidente. Deste contexto surgiu a APROCAN há cerca de 20 anos, a partir de um trabalho de melhoria na qualidade do leite e com os produtores mobilizados, coletivamente,  para legalizar o queijo, bem como agregar valor ao produto.

Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho. Crédito: Igor Messias
Fazenda Água Limpa onde é produzido o Queijo Dinho. Crédito: Igor Messias

Tentativas de viabilizar o negócio

No geral, os cerca de 56 pequenos produtores associados à APROCAN vendem seu queijo cinco vezes mais caro do que aqueles produtores que estão fora da associação. “A cada dia temos novos associados. Imagine um produtor que tira 100 litros de leite por dia, produz 10 queijos e vende cada um pelo valor de R$10,00. No final do mês, ele fatura R$3.000,00. Já um produtor que tira a mesma quantidade de leite e produz também 10 queijos por dia, mas que vende cada peça por R$50,00, fatura R$15.000 mensais. Quintuplica a renda, melhora a qualidade de vida do produtor e estimula os filhos a fazer a sucessão familiar, impulsiona o comércio local e cria um círculo saudável nesta cadeia” exemplifica Leite.

Como se trata de uma produção artesanal – e isso é um fator limitante – é impossível investir em alta escala. “Como a oferta é pequena e a demanda é alta, o preço sobe. E isso rentabiliza e viabiliza o trabalho do pequeno produtor”, explica Leite.

“O viés de transformação social é importantíssimo para a própria perpetuação da cultura no futuro. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de vida envolta no trabalho diário”, Igor Messias, produtor local de queijo Canastra.

A rentabilidade e a agregação de valor ao queijo Canastra estão relacionadas às peculiaridades naturais para o processo de fermentação da região. E dá trabalho: só para triar, ou seja, formar a flora de bactérias necessárias para a fermentação do queijo são necessários cerca de dois meses – todo queijo produzido neste tempo é descartado.

Quanto à maneira de tornar rentável a cultura do queijo Canastra, Igor Silva é enfático: “Nós basicamente contamos histórias – as nossas histórias!”. As famílias da região costumam revisitar seus passados por intermédio dos registros orais dos membros mais velhos. A APROCAN também auxiliou nesta valorização com a história oral da Canastra. “A associação buscou parceria com o Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], que trouxe capacitação. Hoje, além da venda de queijos, muitos produtores oferecem visitas guiadas e até dias inteiros de vivência na propriedade, onde o turista faz imersão na nossa cultura”, detalha o engenheiro ambiental, que oferece tal atividade em sua fazenda.

Quem entra na fazenda Água Limpa, avista o gado na parte baixa do morro e não se espante se vacas e bois estiverem pastando e comendo manga sob a mangueira de mais de 50 anos da propriedade. “Na época do fruto, as vacas dão leite de manga”, brinca Igor. Logo na entrada da fazenda, o forte cheiro de leite fresco e o manuseio preciso e metódico de quem detalha as regras sanitárias e entende a individualidade de cada queijo entregam que ali está a queijaria da família. O Queijo Dinho produz cerca de 20 queijos por dia. Cada queijo necessita de cuidados diários na sua maturação, que leva mais de 22 dias até que possa ser vendido.

Hoje, o queijo Canastra é feito por cerca de 800 pequenos produtores espalhados pela região da Serra.

A equipe da queijaria da família de Igor conta com: Allan (o irmão) na produção e comercialização, ajudado por um casal de colaboradores que mora e trabalha na fazenda; Lucas (o primo) na produção de imagens e vídeos para divulgação; Dona Ângela (mãe de Igor e Allan) e Seu Hildo (pai de Igor e Allan), que disponibilizam a fazenda. Um verdadeiro trabalho em equipe. O queijo é vendido diretamente na fazenda e em lojas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e no Distrito Federal. “Nossa limitação é basicamente logística. As regiões Norte e Nordeste, por exemplo, ainda são inexploradas por nós devido à dificuldade de envio do produto”, comenta Igor.

Heranças

A questão da hereditariedade também é forte na família que toca o Queijo Dinho. Igor conta que, até onde eles conseguiram mapear, houve quatro gerações antes da dele – e garante que o queijo Canastra sempre esteve presente. “Hoje temos uma pequena propriedade, porém nosso avô nem isso chegou a ter: ele trabalhava arrendando pequenas fazendas em São Roque de Minas. Quando, finalmente, ele conseguiu comprar seu pedaço de terra, faleceu antes de ocupá-lo. Coube, então, à nossa avó, Lica, assumir a criação de seis filhos”, revela Igor.

O filho mais velho de Dona Lica tinha apenas 14 anos na época. A família desistiu da fazenda recém-adquirida pelo patriarca e mudou-se para a fazenda Água Limpa, em Piumhi, em 1972. Hoje, quem comanda a produção de queijo Canastra na fazenda é Allan, irmão de Igor. O nome Queijo Dinho é uma homenagem ao pai de Igor e Allan, Seu Hildo. “Há poucos anos decidimos parar de entregar nosso produto quase de graça aos atravessadores. Somos nós mesmos quem buscamos os clientes lá fora”, revela.

Igor se define como “Um sujeito que sai da roça, mas a roça não sai dele”. Ele é o responsável pela divulgação do queijo Dinho, emite notas fiscais, controla exames laboratoriais sanitários de rebanho, água e queijo, além de fazer parte da APROCAN e militar pela “Libertação do queijo artesanal de leite cru por intermédio da SerTãoBras, uma organização não governamental”, segundo o próprio engenheiro ambiental.

Num país marcado pela pobreza e que ainda sofre com a fome em determinadas regiões, a circulação de um produto feito pela interação promovida pelo bioma local é o próprio cio da terra.

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