Do interior do Ceará aos menores municípios do Pará. Das estradas do sertão às marés dos rios amazônicos. O Selo UNICEF hoje cobre 70% do território nacional atuando em duas regiões distintas do país: a Amazônia e o Semiárido. O programa criado pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância tem sido diferencial para fomentar políticas públicas em prol dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros. A 57 dias do fim da edição 2017-2020 do Selo, cerca de 1.200 municípios buscam pela certificação – dados do dia 4 de maio de 2020.

Mapa do Brasil indicando as regiões amazônica e semiárida. Créditos: Equipe de Arte da Aupa - Jornalismo em Negócios de Impacto Social.
O impacto do Selo consiste em unir diferentes órgãos setoriais públicos – Saúde, Assistência Social e Educação – e incentivar o trabalho conjunto para alcançar metas estabelecidas pelo UNICEF durante quatro anos, acompanhando o mandato da gestão municipal. Entre os objetivos estão: aumentar o número de crianças na escola, reduzir a taxa de gravidez na adolescência, promover acesso ao pré-natal e, acima de tudo, incentivar que crianças e adolescentes sejam porta-vozes de suas próprias reivindicações.
Selo UNICEF. Ao aderí-lo, o município assume o compromisso de manter a agenda de suas políticas públicas pela infância e pela adolescência como prioridade. Crédito: UNICEF.

De acordo com relatório do UNICEF com base no PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2015, seis em cada 10 crianças e adolescentes brasileiros vivem na pobreza monetária e privações múltiplas, como o acesso à educação, informação, água, saneamento e moradia. Nas estatísticas por região, Norte e Nordeste aparecem com os maiores índices – 75,1% e 63,4%, respectivamente, é a porcentagem de crianças e adolescentes com privação de um ou mais direitos.

“É importante afirmar que o Selo não inventa nada, é um projeto que busca, a partir dos marcos legais da infância e adolescência – o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição, entre outras políticas públicas – reafirmar a importância da promoção, da realização e da garantia dos direitos de crianças e adolescentes”, destaca Ida Pietricovsky, especialista em comunicação do UNICEF na Amazônia.

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidas pela ONU. Créditos Reprodução/Agenda 2030 ONU.

A proposta também visa cumprir oito dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a agenda global de metas estabelecidas pelas Nações Unidas que devem ser alcançadas até 2030. Na prática, o UNICEF monitora indicadores, mobiliza e capacita agentes para alcançar os objetivos – os da ONU e do Selo.

A adesão é voluntária. Quando a gestão pública se compromete, quem faz acontecer são técnicos, gestores, conselheiros, lideranças comunitárias e adolescentes – também voluntários do programa. Cada município seleciona voluntários para atuar como articuladores e mobilizadores de adolescentes pelo Selo. De jornalistas a funcionários públicos, eles não escondem a paixão pelo trabalho: 

“Enxergamos no olhar de cada criança e adolescente que eles estão aqui conosco e querem ser alguém que um dia poderá contribuir com o crescimento do município. Os vemos receberem educação, assistência social, saúde. Sou motivado pelo crescimento da comunidade, melhorando e trazendo prosperidade a crianças e adolescentes que levam uma vida muito difícil”, conta Jhonny Marques, mobilizador em Envira, no Amazonas.

Entre os desafios, Jhonny lembra da demanda por diálogo e instrução. “No início do Selo, tivemos que fazer as famílias entenderem que o lugar de criança é na escola, que abuso sexual é crime, que os cuidados com a gestação da mulher são essenciais”.

Caminhada “18 de maio” em Envira (AM) - contra o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Créditos: Jhonny Marques.

Realidades da Amazônia e do Semiárido

Entre as frentes de atuação do Selo está a Busca Ativa Escolar, momento quando profissionais saem às ruas, de porta em porta, para identificar crianças que não estão indo à escola e conscientizar suas famílias. “Há vários fatores sociais que levam uma criança a desistir da escola: abuso sexual, condições financeiras, não ter material escolar ou uma sandália para ir à escola, ou necessidade de trabalhar para ajudar a família”, aponta o mobilizador Jhonny. 

Outras necessidades identificadas ao longo do programa também motivam a adequação do Selo. Ida Pietricovsky, especialista do UNICEF, revela que foi a partir da observação do território que os indicadores de saneamento básico da Amazônia também ganharam destaque.

Segundo o UNICEF, enquanto, no Brasil, o índice de atendimento de esgoto é de 51,9%, no Amapá, Amazonas, Pará e em Rondônia, esse percentual não chega a 10%. “Levantamos a  discussão com os municípios para que pelo menos produzissem o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), de acordo com a exigência da Lei 11.445 de 2007. De pouco mais de 30 municípios até setembro do ano passado, cerca de 90 aprovaram seus PMSB e outros 362 iniciaram sua construção”.

De pouquinho em pouquinho, ações do Selo têm movimentado indicadores nacionais: entre 2004 e 2016, a taxa de abandono escolar nos estados comprometidos com o Selo caiu de 14% para 3%. Mais de um milhão de crianças e adolescentes deixaram de abandonar a escola e 55 mil crianças deixaram de morrer por causas evitáveis. Na comparação entre os municípios de cada região, o avanço de quem se compromete com o Selo tende a ser ligeiramente maior.

“É importante dizer ainda que, na medida em que o município abre espaço de participação e engajamento de adolescentes, há melhoria na autoestima de todos os envolvidos, pois melhoram os resultados escolares e cai dramaticamente o abandono escolar”, reforça Pietricovsky.

A voz dos adolescentes

Todos os municípios também devem formar um Núcleo de Cidadania de Adolescentes (NUCA), o principal meio de inclusão de jovens na discussão sobre a gestão pública. Cada núcleo deve cumprir uma série de desafios envolvendo direto à inclusão digital, alimentação saudável, práticas de enfrentamento ao racismo, emissão de título de eleitor, entre outros.

Foi lá que Wilmarques Cruz começou a se envolver no Selo, 13 anos atrás. Quando adolescente, ele foi membro do núcleo. Atualmente, é o articulador do Selo UNICEF em Itabaiana (SE). Como ele, muitos jovens têm encontrado vocação, motivação e oportunidades em 1.470 núcleos pelo país. “O que me motiva é saber que estou contribuindo direta ou indiretamente para a melhoria da qualidade de vida das crianças e adolescentes do meu município, sendo um agente transformador da realidade local para assegurar a equidade no acesso a direitos conferidos pela Constituição Federal e fazer valer o Estatuto da Criança e do Adolescente”, salienta.

Outro exemplo é Felipe Caetano, integrante do NUCA de Aquiraz (CE). Em depoimento ao UNICEF, ele conta que trabalhava para gerar renda à família desde os 8 anos. Aos 13, como agente do Selo, começou a refletir sobre sua situação: “Nossa, eu estou lutando pelos direitos de crianças e adolescentes, mas eu também estou trabalhando. Estou retirando meus próprios direitos. Estou tentando garantir os dos outros, mas os meus estão sendo tirados”.

Mesmo com a dificuldade financeira da família, Felipe buscou conscientizar seus familiares e evitou que a irmã mais nova também fosse vítima do trabalho infantil. Tornou-se um ativista. Aos 18, participou de uma reunião com o Conselho Executivo do UNICEF, em Nova York, em setembro de 2019. 

Os exemplos de representatividade são diversos: ainda no ano passado, 53 jovens integrantes de NUCAs de todo o país redigiram uma carta manifesto, lida no Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília.

Quando o próximo mandato começar…
Ao final de cada edição, quem comprova ter atingido os resultados esperados pelo UNICEF recebe uma certificação reconhecida globalmente e ganha o status de município aprovado pelo Selo, uma espécie de indicador positivo da gestão pública. A média de municípios certificados, no entanto, ainda deixa a desejar. Do número inicial de inscritos em cada edição, menos da metade ganha o Selo. Mas quem sempre ganha são as crianças e adolescentes – pontos para quem leva à frente os Direitos Humanos.

O ciclo 2017-2020 chega ao fim, mas o trabalho em prol das crianças e adolescentes ainda continua em muitas edições e mandatos governamentais futuros. Questionada sobre como se sente enquanto profissional e agente de mudança, a especialista Ida Pietricovsky afirma ter um “sentimento dúbio”: “Trabalhar com direitos humanos num país como o Brasil é lidar com avanços e retrocessos. Cada denúncia de destruição da floresta, de uma criança que morre por causas evitáveis, de um adolescente assassinado por ser negro e pobre, me dói na alma. Mas, ao mesmo tempo que dói, me dá energia para seguir lutando. Espero que minha luta seja a luta de muita gente, pois isso atinge a todos, indistintamente.”

Vale o lembrete: ainda que a obtenção do Selo UNICEF seja um indicador positivo aos gestores públicos, a proposta do UNICEF não passa de um reforço à execução de ações prioritárias na agenda de qualquer prefeito ou governador, independentemente da adesão ao Selo. Prezar pelas políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes ainda é dever de todos. Fique atento ao compromisso do seu candidato com as políticas pela infância na próxima eleição!

Alerta à pandemia:
Pela situação global vivida com o Covid-19, atividades do Selo como a Busca Ativa Escolar foram suspensas. Mas a mobilização continua: entre as prioridades do UNICEF estão o apoio para que sejam disponibilizados acesso a água, materiais de limpeza e higiene pessoal para as comunidades mais vulneráveis, além do suporte às equipes municipais dos Conselhos Tutelares e da Assistência Social para prevenção e encaminhamento dos casos de violência contra crianças e adolescentes.

O UNICEF também lançou, em parceria com Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), um documento com orientações globais para proteger crianças e escolas da transmissão do vírus. Acesse aqui.

*Conteúdo apurado antes da pandemia e das medidas de segurança com isolamento social.

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