A pandemia do novo Coronavírus deixou evidente algo já sabido: a ciência e a vacina salvam vidas. E, nesta corrida do combate ao vírus, universidades, instituições, Governo e indústria farmacêutica exercem papel fundamental.
A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), por exemplo, liderou a fase 3 dos testes da vacina Oxford/AstraZeneca, que é produzida pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e já está sendo aplicada no país em caráter emergencial.
Soraya Smaili, a reitora da universidade, foi voluntária nos testes. Ela é doutora em Farmacologia e compartilha, em entrevista, a experiência dela e da instituição com os testes, além da importância da colaboração de organizações da sociedade civil e do setor produtivo para conter o avanço da pandemia.
“É muito importante essa parceria com as instituições do Terceiro Setor, pois podemos desenvolver um projeto de pesquisa, produzir conhecimento e estas instituições têm mais capilaridade na sociedade. Então, elas podem acabar levando o conhecimento que é produzido na universidade de uma maneira mais rápida”,
explica Soraya Smaili, reitora da Unifesp.
AUPA – A Unifesp liderou os testes da fase 3 da vacina de Oxford no Brasil. Poderia comentar brevemente quantas pessoas participaram e como funcionou essa fase de teste, por favor?
Soraya Smaili – No Brasil, foram 10 mil participantes. O estudo foi coordenado pela Unifesp, mas cada região teve centros próprios. Eu participei como voluntária, achei que era algo bem importante a se fazer, pois eu tinha que dar o exemplo também. Adotei uma frase que o pessoal usou bastante depois: “Eu tenho medo da Covid, não tenho medo da vacina”. Então, eu já sabia dos estudos anteriores feitos em seres humanos, que ela tinha passado no teste da segurança. Me candidatei e entrei no estudo. Apesar do licenciamento, o estudo continua, porque os participantes vão continuar sendo acompanhados. Essa pós-fase 3, que é uma espécie de fase 4, é para monitorar as pessoas depois da vacinação, durante todo o período.
Para as pessoas que participam do estudo, há uma dedicação de duas a três horas no Centro de Referência Imunobiológicos Especiais, o CRIE, na Unifesp. Teve a primeira visita e, depois de 28 dias, a segunda – após dois meses, houve a terceira, depois de mais três meses teve a quarta e, agora, a próxima será daqui seis meses.
Certamente, para a nossa universidade foi muito importante, nos sentimos privilegiados. O nosso Centro de Referência Imunobiológicos Especiais, liderado pela doutora Lily, tem sólida experiência na área e trabalhou muito, com uma equipe que nem é tão grande, e nem teve tantos recursos para isso. Nós fizemos um trabalho considerado excelente.
AUPA – Poderia dizer brevemente algumas das diferenças entre a vacina de Oxford e a da CoronaVac?
Soraya Smaili – Primeiramente, são metodologias diferentes. A da CoronaVac utiliza o próprio vírus inativado, que é uma tecnologia já conhecida. Já a de Oxford/AstraZeneca é uma tecnologia de construção de biologia molecular, que é um vetor viral não replicante, utilizando “vírus vivo”, como um adenovírus. Esse vetor levará o pedaço do vírus para dentro do organismo e estimulará a produção de anticorpos – e essa fatia do vírus engana o sistema imunológico. Então, parte do vírus que não produz a doença e, no outro caso, é o próprio vírus, só que sem a capacidade de produzir, de infectar, que é o vírus inativado, então são metodologias diferentes. Colocando todos os custos no papel, a vacina da parceria Oxford/AstraZeneca tem o valor de cerca de US$3 e a da Coronavac, US$10. No caso da vacina de Oxford é um valor calculado pelo número de doses de acordo com o montante que será fabricado pela Fiocruz. Então, pela tecnologia que está sendo transferida e que possibilitará a produção no futuro de um número bastante grande – acredito que mais de 100 milhões de doses -, o custo realmente compensou para o Brasil.
AUPA – A Fiocruz divulgou um comunicado sobre a eficácia da vacina nos idosos, em contrapartida, a Anvisa solicitou mais testes para comprovar eficácia da vacina nessa faixa-etária. Isso é um dado preocupante, uma vez que os idosos são os que mais têm sofrido com o vírus?
Soraya Smaili – Em São Paulo, a doutora Lily incluiu um grupo de pessoas acima de 70 anos – meu marido foi voluntário, inclusive. É um grupo menor – ainda não temos resultado de um grupo maior. Tudo indica que ela protege. O que sabemos até aqui é que tem uma eficácia semelhante (porém, não a mesma), pois, em pessoas acima de 70 anos o sistema imunológico muda. Então, ela pode responder um pouco menos, mas o que sabemos até o presente momento é que tem uma boa resposta.
AUPA – Temos uma dependência de importação de insumo, conhecido como IFA. Como o Brasil poderia superar isso? Temos capacidade para produzir 100% localmente? Você acha que o investimento social privado poderia também exercer um papel de incentivar essas iniciativas?
Soraya Smaili – No momento, não temos capacidade de produzir localmente. O que precisamos pensar é por que isso acontece? O Brasil teve um desinvestimento em ciência. Isso é uma cadeia, conforme você tem um investimento na ciência, você possibilita novas tecnologias, que podem ser transferidas para um setor produtivo, que, por sua vez, produzirá algo que beneficiará a população, isso em todos os setores, não só nessa área da vacina. E, na indústria farmacêutica, o Brasil já teve, sim, dez vezes mais capacidade de produzir os seus insumos do que tem hoje. Atualmente, o Brasil depende cerca de 40% dos insumos farmacêuticos da China, não só da vacina. Então, precisamos trabalhar muito, é necessário ter muito investimento, voltar a ter tecnologias novas. Isso gerará mais empregos, mais desenvolvimento e teremos um país mais autônomo, mais soberano.
A nossa luta agora, enquanto comunidade científica, é pela liberação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é um fundo que já existe desde 1969. Tudo o que pedimos é que ele seja aplicado na própria ciência e na tecnologia, não precisa de nada de novo. Hoje, 90% do fundo fica contingenciado, fica preso no Tesouro Nacional.
AUPA – A Unifesp tem uma parceria com a Fundação Tide Setubal. Inclusive, divulgaram uma seleção de proposta para desenvolver pesquisa sobre a Covid-19. Como essas parcerias com fundações/institutos e o Setor de Investimento Social privado podem ajudar a impactar mais pessoas nesse contexto de pandemia?
Soraya Smaili – É preciso realmente uma união em torno desse enfrentamento que precisamos fazer frente à pandemia. É muito importante essa parceria com as instituições do Terceiro Setor, pois podemos desenvolver um projeto de pesquisa, produzir conhecimento e estas instituições do Terceiro Setor têm mais capilaridade na sociedade. Então, elas podem acabar levando o conhecimento que é produzido na universidade de uma maneira mais rápida. Por exemplo, recentemente, a nossa universidade foi solicitada por algumas instituições da sociedade civil, organizações e coletivos para produzir uma cartilha sobre a vacina. Aceitamos o desafio e estamos fazendo isso juntos, com uma cientista que tem prática em fazer divulgação científica. Estamos produzindo um material que será utilizado por diversas ONGs, que vão levar isso para as pessoas que fazem parte daquela entidade ou instituição ou que dependem dela. Com a Fundação Tide Setubal, foi uma parceria, com cerca de 100 bolsistas, para desenvolver o mapeamento do impacto social da Covid-19. Estudamos 16 regiões de São Paulo e da Grande São Paulo para saber quais são os grupos sociais mais atingidos pelo novo Coronavírus; o estudo está em fase de revisão. Fechamos também uma parceria com o Fleury, para estudar a dinâmica da carga viral nos pacientes de Covid-19. Então, o paciente que é mais leve, quanto de vírus que ele carrega? O paciente que é mais grave, quanto de vírus tem nele? Uma parceria público e privada ajuda a produzir um resultado que pode auxiliar a resolver o problema relacionado à Covid-19.
AUPA – O Brasil é um dos piores países nos índices da pandemia. Algumas matérias divulgaram que, no ritmo atual, o Brasil levaria quatro anos para vacinar toda a população. Como você vê isso? Quais fatores influenciam esse prazo tão longo?
Soraya Smaili – A notícia tem a ver principalmente com o ritmo que está agora. Mas eu acredito que isso não vai ser assim, acredito mesmo que nós vamos conseguir mais imunizantes e, este ano, tudo indica que vamos conseguir vencer, pelo menos, esta parte dessa batalha. Tem outras possibilidades, a ciência não está parada, tem muitas outras vacinas em estudo e acho que as coisas vão caminhar. Lógico que há entraves e barreiras, mas temos que trabalhar para superá-las, tanto da parte da ciência, quanto da tecnologia, dos insumos e da política também, que é bastante determinante.
AUPA – Além da pandemia, a ciência tem que lidar com diversas fake news que são disseminadas. Na sua visão, o que precisa ser mudado para combater essa onda de desinformação neste momento tão delicado? Qual o papel das instituições de ensino?
Soraya Smaili – É um papel importante, porque tem muita desinformação e as informações de confiança hoje são dadas por algumas instituições. Então, as nossas instituições de ensino, principalmente as universidades públicas – que fazem muita pesquisa – e os institutos de pesquisa, não nasceram hoje. Há uma história, uma construção, investimentos grandes por parte dos diferentes governos. Portanto, são instituições que são do Estado brasileiro, não deste ou daquele governo. Essas instituições têm a credibilidade adquirida ao longo de muitos anos de estudo, de pesquisa, de profissionais que foram formados com muita dedicação. Temos cientistas reconhecidos no mundo.
Temos que fortalecer quem tem conhecimento para dizer, trabalhar a comunicação de uma forma fácil para as pessoas também entenderem. A ciência, às vezes, é um pouco difícil de entender para quem não é da área, então temos que combater isso com informação de boa qualidade.
AUPA – Há uma corrida mundial pela aquisição e pela produção das vacinas. A saúde pública e gratuita para viabilizar a imunização tem papel fundamental nisso. Você acha preocupante se o setor privado começar a vender vacinas nesse cenário?
Soraya Smaili – Realmente, não há condições de fazer um atendimento privado, antes de ter o atendimento pelo SUS. Temos que priorizar a vacina universal, o Sistema Único de Saúde é para todos. O rico, o pobre, todos vão vacinar pelo SUS – e, se focarmos nisso, todos receberão a vacina mais rapidamente. Então, o mais importante agora é ter um plano para os mais vulneráveis, depois, para ter uma fila. E essa fila não é quem chega primeiro, é a sequência por ordem de prioridade e de maneira disseminada e transparente. Então, tem que ter transparência também: quem é que recebe e porque recebe.
Ao longo desse mês, a Aupa promove – no site e nas redes sociais – o especial #AupaMulheres. Serão conteúdos com diversas vozes de protagonistas do ecossistema propondo reflexões sobre a atuação e os obstáculos no setor.
No IGTV, o #SigaEssasMulheres traz cinco líderes, nos mais variados pontos de vista do campo, em um debate sobre um mundo mais igualitário.
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