Valéria Paye: “Precisamos ajudar os povos indígenas a compreender a importância de processos burocráticos e, ao mesmo tempo, apoiá-los em suas atividades tradicionais”

Conheça o Podáali, Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, cujo objetivo é que as comunidades indígenas consigam recursos e apoio para continuar a desenvolver suas atividades econômicas, baseadas em práticas de cuidado

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Durante o Encontro de Lideranças Indígenas da Amazônia Brasileira, em São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2011, os membros da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) discutiram a necessidade da criação de um fundo indígena que pudesse apoiar iniciativas na Amazônia Brasileira.

Um dos objetivos principais deste fundo, além do levantamento de recursos, é pensar estratégias que permitam aos povos indígenas ter autonomia e sustentabilidade para suas atividades produtivas.

Assim nasceu o Podáali, Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, iniciativa que surgiu a partir da experiência de 30 anos da COIAB, que atua na defesa da promoção de Políticas Públicas para os indígenas – sobretudo, diante das constantes ameaças sofridas por estes povos e agravadas no atual contexto político nacional.

Em entrevista, Valéria Paye, diretora executiva do Podáali, comenta sobre o fundo, seu significado, os principais objetivos e a dificuldade de criar, seja na sociedade, seja dentro das próprias comunidades indígenas, uma mentalidade que se preocupe com o futuro – ou seja, que desenvolva projetos que se sustentem a longo prazo. 

Podáali, Fundo Indígena da Amazônia Brasileira. Crédito: Fundo Podáali.

Aupa – Como surgiu a ideia da criação de um Fundo Indígena da Amazônia Brasileira?
Valéria Paye – Temos que reconhecer que a criação do Fundo se deu a partir de experiências amargas na gestão das instituições indígenas e foi resultado de muito debate entre as lideranças. Percebemos, após décadas de trabalho na COIAB que, cada vez mais, precisávamos de ferramentas que nascessem e tivessem continuidade dentro da comunidade indígena, para que a gestão de projetos aconteça de forma autônoma, o que fortalece as organizações. O fundo foi uma saída diante da grande e continuada dificuldade para conseguir acessar recursos por fontes financiadoras convencionais. É importante salientar que a ideia de criar um mecanismo para apoiar os projetos dessas comunidades há mais de 20 anos, pensando, além das comunidades em si, na conservação da biodiversidade dos territórios.

 

AUPA – O que quer dizer Podáali?
Valéria Paye – Podáali, na língua do povo Baniwa do tronco linguístico Aruak, tem a ver com reciprocidade, mas, no sentido ainda mais profundo seria “doar sem querer receber”. Está relacionada com gratuidade, celebração e, de forma mais geral, promoção do bem viver, da sustentabilidade e sobrevivência dos povos indígenas. Por isso, pegamos emprestado este termo, pois o que mais queremos é facilitar o acesso dos povos indígenas a estes recursos e que os povos indígenas possam, eles mesmos, gerir seus próprios territórios.

 

AUPA – Qual foi a trajetória percorrida até a criação do fundo?
Valéria Paye – Em 2012, um ano após a discussão inicial, com apoio de parceiros, começamos a pensar do ponto de vista técnico e jurídico, porém, questões financeiras e operacionais nos fizeram recuar. No ano seguinte, com participação das lideranças que fazem parte da COIAB e de parceiros e membros do Governo Federal, realizamos a “Oficina de Intercâmbio: Arranjos Institucionais para Criação, Implementação e Governança de Fundos de Apoio a Projetos Indígenas”, o que colaborou imensamente para fortalecer o protagonismo dos povos na gestão. Nosso objetivo sempre foi que os indígenas participassem ativamente e pudessem gerir esses recursos no futuro e não mais dependessem de pessoas externas nestes processos. Sabemos, contudo, que estes processos são demorados, seja pela dificuldade de acessar as comunidades, seja pelos obstáculos para conseguir recursos para treinamentos e formação, por exemplo. Então, apenas em 2017 a proposta ganhou mais força, também devido a um financiamento conseguido pela COIAB. É importante destacar o apoio de organizações governamentais e não-governamentais e também doações de pessoas físicas. A criação do Podáali, formalmente, aconteceu somente em 2020 – logo após houve o início da pandemia causada pela Covid-19, o que fez todos os projetos recuarem, mais uma vez. Por isso, durante 2020, trabalhamos para que toda a documentação fosse providenciada. Neste momento, no segundo semestre de 2021 e após um período de atendimento emergencial às comunidades indígenas, buscamos parcerias para que o fundo possa, efetivamente, começar a receber os recursos e distribuí-los entre as comunidades indígenas.

 

AUPA – Quais as principais dificuldades na criação do fundo?
Valéria Paye – São muitas dificuldades, afinal várias comunidades indígenas não têm CNPJ, fato que as impede de participar de editais ou financiamentos. Precisamos ajudar os povos indígenas a compreender a importância de processos burocráticos e, ao mesmo tempo, apoiá-los em suas atividades tradicionais, que hoje baseiam-se, sobretudo, na produção de alimentos e artesanato. Por isso, as investidas do Governo, por meio do Projeto de Lei 191/20, que regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas, por exemplo, chegam a ser violentas. É uma perspectiva predatória que não tem nada a ver com a economia indígena, baseada em atividades e práticas de cuidado.

 

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