Cada vez mais, as mulheres têm ganhado poder de fala na sociedade. Mas essa luta por espaço não é fácil: é preciso coragem para todos os dias se fazer ser ouvida em um país ainda muito desigual e violento. 16 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de agressão em 2018, segundo o relatório mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A maioria das ocorrências acontece onde, teoricamente, estamos mais seguras: dentro de casa.

É também em casa que as desigualdades ficam muito evidentes. A pesquisa “A inserção da mulher no mercado de trabalho”, desenvolvida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese),  revela que 95% das brasileiras gastam mais tempo com tarefas domésticas do que os homens. E a taxa de desemprego é maior entre elas. Muitas mulheres têm uma dupla jornada cansativa, alternando entre os afazeres em casa e o trabalho formal. Nas empresas, mais desafios de gênero: em média, elas ganham 22% menos do que os homens. Essa é a realidade de um país que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem mais brasileiras com Ensino Superior completo em relação a homens acima de 25 anos.

Durante o mês de março, entre os dias 1 e 23*, você pôde acompanhar histórias e relatos de diferentes mulheres líderes de suas organizações e negócios em nossas redes sociais, no especial #AupaMulheres. Além da dupla, às vezes, até mesmo tripla jornada, há o machismo reverberado em diferentes espaços do mundo do trabalho, como a diferença salarial e a possibilidade de ascensão ou de ocupar um cargo de liderança, dentre outras violências. A seguir, você conhecerá histórias de mulheres à frente de diferentes iniciativas e que almejam, dentre os pontos em comum, impacto social positivo.

Racismo e escolaridade: dificuldades para mulheres negras
Quando tentamos encontrar mulheres líderes no mercado de trabalho, os obstáculos aumentam. O estudo “Panorama mulher”, desenvolvido pelo Insper , feito com mais de 500 empresas no Brasil, mostra que ainda falta muito para alcançarmos a igualdade: em média, apenas 19% das mulheres ocupavam cargos de chefia no ano passado, como presidência, vice-presidência e diretorias. E quase todas eram brancas. Nas empresas presididas por mulheres, havia apenas uma negra. Nenhuma parda, amarela ou indígena.

“Enquanto mulher negra, eu sinto falta de representatividade em todos os lugares. A dificuldade que nós temos para ter igualdade no mercado de trabalho é o racismo. No começo da minha carreira, sempre se referiram a mim como: a menina da torta, do lanche, e sempre se surpreendiam. Nossa, é uma torta de cogumelos! Não era muito compatível com a imagem que estavam vendo ali, de uma mulher negra, então era sempre questionado: mas quem fez?”, lembra Priscila Novaes, proprietária e chef do afrobuffet Kitanda das Minas.  O empreendimento de impacto social tem cinco mulheres e dois homens na equipe fixa, incluindo os pais de Priscila, além de 20 mulheres freelancers.

Priscila diz que outro desafio por ser mulher negra é a escolaridade e a dificuldade para se locomover de casa, no extremo Leste de São Paulo, até o curso técnico. Por conta disso, ela precisou refazer um semestre e levou mais tempo para terminar as aulas.

“Isso sempre vai aparecer como despreparo, falta de responsabilidade, como uma pessoa menos inteligente. Na verdade, é falta de estrutura, de base, de incentivo”, explica Priscila.

Kitanda das Minas

Com apoio do Instituto Mulheres de Orì, a Kitanda das Minas é parceira em um curso voltado para mulheres negras que pretendem entrar no mercado de trabalho gastronômico ou ter o próprio negócio. O projeto, que recebe financiamento da Fundação Tide Setubal, oferece formação política, empreendedora e gastronômica. “É uma formação com foco para que essa mulher se veja nesse lugar de chef. Muitas mulheres negras não têm autoestima suficientemente construída para que se enxerguem como chef da sua própria cozinha, para que possam se intitular como cozinheiras”, afirma Priscila.

A baixa autoestima entre mulheres trans

A falta de confiança em um mercado sem representatividade também é uma realidade entre as mulheres transsexuais. Em São Paulo, o Coletivo Trans Sol  tenta mudar esse cenário. O projeto foi criado em 2016 pelas amigas Priscila Nunes e Mavica Morales, dentro da Incubadora Pública de Empreendimentos Econômicos Solidários, e já atendeu 30 pessoas. Junto com um professor de moda e um costureiro, o Coletivo oferece aulas de costura e bonecaria para que mulheres trans possam aprender a criar roupas agênero, como kimonos e shorts, como uma alternativa para evitar a prostituição.

Coletivo Trans Sol

Mas foi preciso conversar com as alunas para explicar que elas poderiam estar nos espaços da cidade para vender as peças. “No primeiro evento que fizemos, um leilão dos kimonos que elas criaram, só uma aluna foi. Elas não se sentiam no direito de estar naquele espaço. Demorou mais de um ano para que as alunas entendessem que tinham direito de ocupar os espaços e começar uma socialização”, conta Priscila.

O Coletivo tem apoio da Fundação Banco do Brasil, do Instituto C&A, do Mackenzie e da confecção Güle Güle, com estampas, maquinário e um curso para que as mulheres trans também possam aprender como é a parte financeira de um negócio. O grupo já esteve na Casa 1 e hoje aluga um espaço em um coworking no bairro do Bixiga. A convivência com pessoas que não são trans foi outro passo importante para que as mulheres atendidas pelo projeto se sentissem incluídas na sociedade. “É um espaço majoritariamente hétero e cisgênero, com muitos homens, e lá elas puderam ter um lugar de convivência, respeito e segurança, almoçando juntas e conversando. Isso faz diferença na autoestima e promove troca de conhecimento”, afirma Priscila.

As peças são vendidas em feiras pelas alunas trans como a Roberta, que participou do curso de costura logo no início do projeto e hoje consegue trabalhar em casa. Mas esse caminho não foi fácil. Ela sempre sonhou em criar roupas, chegou a fazer aulas em 2011 em uma escola, mas por falta de dinheiro deixou a costura de lado e passou a trabalhar nas ruas. Foi depois de conhecer o Coletivo que tudo mudou. A autoestima melhorou e Roberta voltou a acreditar nos sonhos. “O Coletivo me fez sentir que tinha capacidade de tomar um outro rumo na vida. Me apoiou e me deu força para sair das ruas. Decidi voltar a estudar e futuramente fazer faculdade de moda, que eu sempre quis desde criança”, diz Roberta.

Ame o Tucunduba

As jovens e a luta para mostrar conhecimento
Entre mulheres jovens, além da questão de gênero, uma das principais dificuldades no trabalho é o preconceito com a idade. “Eu percebia que só prestavam atenção em mim depois que eu dava as cartadas: sou oceanógrafa, conheço isso… Até então, as pessoas nem olhavam para incentivar a minha fala. Então, eu me fazia ser ouvida, como a gente tem que fazer toda vez”, afirma Micaela Valentim, que tem 24 anos e é presidente do projeto Ame o Tucunduba, em Belém. Junto com outras seis jovens mulheres, o grupo atua para conscientizar a população sobre a importância do rio Tucunduba, que faz parte da segunda maior bacia hidrográfica da cidade e passa por cinco bairros, quatro deles periféricos.

Em alguns pontos da margem do rio, o descarte de lixo é comum e a população sofre com a falta de saneamento básico. O “Ranking do saneamento”, do Instituto Trata Brasil,  apontou que somente 12,99% do esgoto de Belém é coletado. Problemas que só reforçam a importância da preservação de rios como o Tucunduba. Mas o grupo de mulheres alega que tem dificuldade de dialogar com o poder público. “Participamos de audiências públicas, do plano diretor e de reuniões para falar da macrodrenagem do rio Tucunduba. Mas, efetivamente, nunca tivemos a chance de chegar a propor soluções diretamente”, explica Mariana Guimarães, diretora de comunicação do projeto.

As jovens que trabalham no grupo são das áreas de oceanografia, geologia, comunicação e arquitetura. Uma das linhas de atuação delas é tentar entender melhor o projeto de macrodrenagem do Tucunduba, que acontece há cerca de 20 anos, não está disponível para consulta pública e já desapropriou centenas de famílias. Mas o trabalho principal é educar a população com expedições pelas margens do rio, da nascente à foz.

Outra iniciativa é o Fala Tucunduba, um curso de gestão participativa de bacias hidrográficas criado por elas, com apoio da Brazil Foundation e do Museu Paraense Emílio Goeldi, para oferecer aulas gratuitas a jovens da periferia sobre a dinâmica do rio. Micaela ressalta que a união entre as mulheres do projeto é fundamental para conseguir colocar em prática tantas atividades. “Tem mulheres que precisam cuidar da casa, outras que são mais livres e não têm tanto essa obrigação familiar. Então, ter um grupo de mulheres à frente nos deu essa liberdade para conseguirmos colocar o nosso melhor e levantar umas às outras”, conta Micaela.

Iniciativas para impulsionar negócios criados por mulheres
A Organização das Nações Unidas estabeleceu em 2010 uma série de princípios para o empoderamento das mulheres, que hoje são adotados por mais de 240 empreendimentos no Brasil. A igualdade de gênero  também é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pela ONU na Agenda 2030.

No Brasil, pequenas empreendedoras podem contar com o apoio de programas para impulsionar os negócios. Um deles é o Mulheres com Propósito, lançado em 2016 e desenvolvido pela FUNDES – consultoria que atua no fortalecimento de micro, pequenas e médias empresas na América Latina, junto com a PepsiCo. Por meio de uma plataforma online gratuita, mulheres que têm o próprio negócio podem fazer uma capacitação em gestão empresarial, desenvolver habilidades de liderança e conversar com uma rede de especialistas na área de interesse de cada aluna.

Empreendedoras também podem buscar apoio do Projeto ALI do Sebrae. O programa ajuda a impulsionar pequenos negócios inovadores no mercado e, apesar de não ser exclusivo para mulheres, a participação feminina tem crescido. Jacqueline Komura é uma das agentes do projeto que atende as empresas na região do Alto Tietê, em São Paulo, e diz que o número de mulheres subiu de 34% para 43%.

Mulheres no mundo corporativo

Nesse trabalho, ela percebeu que existem muitos obstáculos que ainda precisam ser superados, como a sensação de solidão, de não ter com quem falar para tomar decisões estratégicas, e a dificuldade de acesso ao crédito, com taxas desiguais entre homens e mulheres. Barreiras que muitas vezes impedem negócios femininos de crescerem. A pesquisa “Empreendedorismo no Brasil: um recorte de gênero nos negócios”, da Rede Mulher Empreendedora,  revela que apenas 34% das empresárias se sentem capazes de planejar o negócio, contra 50% dos homens.

Os obstáculos são perceptíveis também àquelas mulheres que alcançam cargos de liderança. E isso incluem também o ambiente de trabalho dentro do ecossistema de impacto. “Um dos maiores desafios que enfrentei, quando iniciei minha carreira com investimentos para negócios de impacto, foi ter ‘uma cara de menina’, segundo alegavam”, confessa Deborah Lilienfeld, diretora de sustentabilidade do Winds for Future. Um exemplo a transversalidade do machismo, com reflexos no ambiente corporativo.

Jacqueline acredita que o mercado precisa aprender a ouvir mais os interesses das mulheres para que o trabalho delas seja mais valorizado e respeitado. “No último mês de março, eu vi uma série de ações de empresas, órgãos e repartições para discutir a questão da mulher. E o que eu vejo ainda é que tem um estigma muito grande do que é o que a mulher gosta, do que ela precisa. Conecte pessoas que sejam interessantes e que as mulheres têm mais dificuldades de acessar”, afirma ela.

* O especial #AupaMulheres foi interrompido no dia 23 de março, devido às consequências e ao foco na cobertura do Coronavírus.
** Créditos das fotos: Reprodução.

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