A crise econômica provocada pela pandemia do novo Coronavírus pode levar 500 milhões de pessoas para a pobreza – renda inferior a US$5,50 (cerca de R$ 30 na cotação atual) por dia – e agravar ainda mais a situação de quem já vive em uma condição de vulnerabilidade. O dado alarmante foi divulgado pelo relatório “Dignity not destitution” da Oxfam International, no dia 9 de abril, e coloca em risco o objetivo número 1 de Desenvolvimento Sustentável da ONU de acabar com a pobreza até 2030. Nesse cenário, a discussão sobre inclusão produtiva vem à tona.

A inclusão produtiva é entendida aqui como “Geração de trabalho e renda de maneira estável, relativamente duradoura e decente para as populações em situação de pobreza e/ou vulnerabilidade social, de modo a facilitar a superação de processos crônicos de exclusão social”. A definição faz parte do estudo “Inclusão produtiva no Brasil”, realizado pela Fundação Arymax e pelo Fundo Pranay, em parceria com o Instituto Veredas.

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Nos últimos anos, ganhou relevância o entendimento de que, para que a pobreza seja reduzida de forma sustentável no longo prazo, a geração de renda via trabalho é uma estratégia fundamental. No entanto, essa percepção ganha novos contornos no contexto da pandemia, descrita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como 

"A pior crise global desde a Segunda Guerra Mundial”.

De acordo com o relatório “ILO Monitor: COVID-19 and the world of work”, monitoramento da OIT acerca da Covid-19 e o mundo do trabalho, que teve sua quinta edição divulgada em 30 de junho, a pandemia acabou com o equivalente a 305 milhões de empregos em tempo integral, atingindo, sobretudo, mulheres e jovens. Em todo o mundo, 61% da mão de obra está inserida na economia informal. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, estão entre os mais afetados pela crise ligada à Covid-19. Na última semana de junho, a taxa de desocupação no país subiu para 13,1%, o que corresponde a 12,4 milhões de brasileiros desempregados. O número foi divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e integra a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). O estudo da OIT aponta também uma queda de 18,3% de horas trabalhadas nas Américas no segundo trimestre de 2020, taxa superior aos 14% da média mundial.

A seguir imagens de trabalhadores e oficinas de integração. Clique para ampliar.
Fonte: Association St Benoit Labre.

Esses dados evidenciam, além da falta de emprego, o recrudescimento da precarização no mundo do trabalho. Panorama esse que já vinha sendo esboçado com a prolongada crise decorrente das transições tecnológica, demográfica, urbana e socioambiental que atravessam países do mundo todo. Enquanto instituições enfatizam a importância da empregabilidade para a mitigação da pobreza, vem o questionamento: ter um trabalho significa realmente ter condições de sair de uma situação de exclusão social?

Há questões conjunturais e estruturais que precisam ser levadas em consideração para responder a essa pergunta. Apesar de o Brasil ser um país extremamente diverso e apresentar desafios e oportunidades distintas, podemos olhar para o cenário internacional em busca de pistas.

A precarização do trabalho na França
Segundo o sociólogo francês Hadrien Clouet, pesquisador de pós-doutorado no Centro de Sociologia das Organizações (CSO), ligado ao Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e a Universidade Sciences Po Paris, ter um emprego em tempo integral na França significa quase sempre escapar da pobreza. “Dispositivos como salário mínimo e um setor informal reduzido em comparação com outros países permitem garantir o fato de que, na França, um emprego rime muitas vezes com condições de vida que são julgadas aceitáveis pelas estatísticas públicas e pela taxa de pobreza”. No entanto, essa realidade está cada vez mais ameaçada.

Hadrien Clouet. Crédito: Arquivo pessoal.
Claude Chiron. Crédito: reprodução LinkedIn.
Pierre-Yves Loaëc. Crédito: reprodução LinkedIn.

O país europeu também foi duramente afetado pela crise decorrente da pandemia do novo Coronavírus. Em abril, 4,5 milhões de franceses estavam desempregados. Desde 1996, a França não tinha um número tão alto de pessoas fora do mercado de trabalho. Para o especialista, o Pôle Emploi – agência governamental francesa responsável por indenizar os desempregados e acompanhá-los no retorno ao mercado de trabalho – terá dificuldade de absorver o grande volume de pessoas sem ocupação e deixará muitos desempregados à própria sorte.

Trabalhador e oficina de integração. Fonte: Association St Benoit Labre.

Apesar do agravamento da crise do emprego, o assunto já vinha sendo discutido no território francês desde dezembro de 2018, quando o movimento dos coletes amarelos ganhou as ruas em todo o país. Ainda que bastante heterogêneo, esse grupo de manifestantes era composto por trabalhadores insatisfeitos com a “uberização” das relações de trabalho – o aumento de contratos precários e empregos informais – a queda no poder de compra e da qualidade de vida. Hadrien Clouet lembra que o movimento dos coletes amarelos era constituído por trabalhadores de setores pouco sindicalizados. “Pela primeira vez um movimento contesta um pouco a separação entre a luta trabalhista e a luta política. As pessoas se deram conta de que o mundo político tem um papel essencial no mundo do trabalho e de que o Estado tem um grande poder de regulação”.

O Poder Público, ao lado dos organismos sociais e das organizações do Terceiro Setor, é um dos três grupos de atores que desenvolve intervenções no campo da inclusão produtiva.

“Não parece haver uma intervenção única, seguramente capaz de promover grande impacto, que indicaria um caminho destacadamente promissor no campo da inclusão produtiva. No entanto, é possível identificar um conjunto de intervenções com maior potencial de impacto, que pode ser considerado pelos tomadores de decisão”, aponta o estudo realizado pela Fundação Arymax.

Os “Escritórios do Coração” se abrem aos desabrigados
A combinação de diferentes tipos de intervenção norteia o trabalho da associação Saint-Benoît Labre, em Nantes, na França. Criada em 1953, a entidade atua na luta contra a exclusão de pessoas em dificuldades sociais e profissionais. Para isso, trabalha em busca de ações que permitam que indivíduos em condições de vulnerabilidade tenham acesso a direitos básicos como saúde, moradia e emprego.

Centro de Alojamento e Reintegração Social (CHRS). Fonte: Association St Benoit Labre.

“Estamos em um momento crucial para a perenidade dos nossos ateliês de inserção na vida ativa. Precisamos repensá-los ou corremos o risco de perdê-los. Queremos recolocar as pessoas no mercado de trabalho, queremos que elas sejam contratadas para trabalhar em uma empresa”, disse Thierry Pastou, funcionário da associação Saint-Benoît Labre há 28 anos.

Nesse contexto, a entidade foi procurada por um grupo de empresários do Centro de Jovens Dirigentes (CJD) de Nantes em busca de apoio ao projeto “Les Bureaux du Cœur” (“Os Escritórios do Coração”).“Nós sempre temos a tendência de apresentar o mundo social e o mundo empresarial como dois mundos à parte, o que eu acho realmente interessante nesse projeto é a tentativa de ação conjunta, de criar algo que, na minha opinião, todos saem ganhando”, analisa o responsável pelo setor de alojamento da associação.

A iniciativa “Les Bureaux du Cœur” tem como premissa abrir as portas das empresas para acolher pessoas sem abrigo quando os estabelecimentos se encontram vazios, ou seja, no período noturno e aos fins de semana. “O nosso único objetivo é abrigar, mas o fato é que quando você coloca uma pessoa para dormir em uma empresa, ela está em contato com os funcionários que podem constituir uma ajuda operacional nessa busca de emprego e ajudá-la por meio de sua rede de contatos”, explica Pierre-Yves Loaëc, presidente do CDJ e idealizador do projeto que virou realidade no fim de 2019, depois de um ano de preparação.

A estreia foi feita pelo dirigente Claude Chiron, da ACM Ingénierie. A ideia, que parecia “um pouco doida” para o empresário e que deixou os funcionários “inquietos e receosos” no início, foi tão bem-sucedida que ele torce pela expansão da iniciativa. A primeira “convidada” foi uma mulher vítima de violência doméstica que, mesmo trabalhando em uma cantina escolar, dormia dentro do seu carro até ser “adotada” pelo projeto “Les Bureaux du Cœur”. Durante dois meses, ela viveu no “apartamento”, uma área no térreo onde foi criado um quarto, com cama e armário, e inclui cozinha e banheiro com chuveiro.

“Meu desejo é que, a partir do momento que acolhermos uma pessoa, ela parta o mais rapidamente possível. O espírito é ajudar o indivíduo a se reintegrar e liberar o espaço para outro. Para mim, uma pessoa que fique seis meses seria um fracasso”, analisa Claude Chiron.

Já o primeiro “convidado” recebido pela agência de comunicação Nobilito, fundada por Pierre-Yves Loaëc, foi Buba Bas, de 42 anos. Vindo da Gâmbia, o imigrante tenta se estabelecer na França desde 2018 depois de passar por Itália, Suíça e Alemanha, mas esbarra na falta de documentação. Enquanto tenta legalizar sua situação, tem dificuldade para encontrar um emprego. Com isso, acabou indo viver nas ruas, “onde se pode perder a cabeça”, até ser ajudado pelo projeto “Les Bureaux du Cœur”. “Foi surpreendente para mim. Eu nunca pensei em morar com franceses dentro de um escritório. A acomodação é boa, e as pessoas estão felizes em me ajudar”, disse, em inglês.

Em contato direto com os funcionários da empresa, Buba recebeu auxílio para fazer um portfólio de apresentação de seu trabalho com mosaico de azulejos. Além disso, às vezes é chamado para tomar café e comer croissant com a equipe. 

"Eles são minha família agora”,

exalta o imigrante, que sonha em buscar os quatro filhos – entre 7 e 15 anos – para viver com ele na França.

Buba está hospedado nas dependências da empresa desde janeiro, incluindo o período de isolamento social em meio à pandemia. Cama, armário, geladeira, micro-ondas, chuveiro estão à disposição dele, assim como uma sala de reuniões dotada de um sofá e de televisão servindo de sala de estar. O seu dormitório é acessível pelo lado exterior do prédio da Nobilito e trancado à chave. “É fundamental para que o convidado mantenha em segurança seus únicos pertences que restam”, afirma o empresário Pierre-Yves Loaëc.

A segurança é uma questão central na iniciativa, já que as pessoas em situação de vulnerabilidade estarão inseridas dentro das empresas. “É um projeto muito interessante, mas que vai corresponder a uma parte ínfima, cerca de um terço da população que se encontra em situação de rua. Eu não posso enviar alguém que seja dependente químico, por exemplo, porque há muita proximidade com a empresa”, analisa Thierry Pastou, da associação Saint-Benoît Labre. Isso quer dizer que os indivíduos “empregáveis” estão entre os elegíveis para o programa, que é encabeçado por cerca de 12 dirigentes de Nantes até o momento.

Novas e urgentes ações no pós-pandemia
Nunca foram tão urgentes ações para que ainda se possa sonhar em atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU até 2030, como o ODS 11, que deseja “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. Ainda assim, uma questão persiste: “Que todo mundo tenha uma moradia, sim. Mas qual? Seria ótimo chegar lá, mas não a qualquer preço”, pondera Thierry Pastou.

E quando se fala no ODS 8, que visa “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”, o sociólogo Hadrien Clouet faz uma ressalva: “Não sei o que querem dizer com crescimento inclusivo, mas sei o que significa uma redistribuição social financeira. A pergunta é: como distribuir os frutos desse crescimento? Tenho a impressão de que tentamos apenas regular o mercado no lugar de criar uma verdadeira política pública que resolva a situação.”

Com a reconfiguração acelerada do mundo do trabalho, soluções utilizadas nas últimas décadas vêm encontrando novos limites. Além disso, uma situação de caráter excepcional como a pandemia exige ainda mais a necessidade de pensar abordagens inovadoras, sem, é claro, esquecer os contextos particulares de cada território.

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