A líder política argentina Eva Perón disse, na década de 1940, uma frase que ficou para sempre na memória popular: “Onde há uma necessidade, nasce um direito”. Essa frase concentra em poucas palavras todo o sentimento a respeito da relevância do papel e da presença do Estado na hora de gerar, ampliar ou restaurar direitos para reduzir a desigualdade. Quando as pessoas precisam de mais e melhor educação, saúde e empregos, de uma vida longe dos níveis de marginalidade e pobreza, é o Estado, com seus recursos, que deve auxiliar na institucionalização e universalização do direito à saúde, à educação e ao trabalho – essencialmente, o direito a uma vida digna.
Durante o último ano e meio, a América Latina e o Caribe testemunharam uma catástrofe humanitária de dimensões inimagináveis até então. A pandemia agravou os enormes déficits sociais da região, deixando-nos à beira do colapso humanitário. Os números falam por si. Segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento, levantados no relatório elaborado por Latindadd, Red de Justicia de América Latina y el Caribe (RJFALC) e Fundación SES sobre tributação das grandes riquezas, o 1% mais rico da região obtém 21% da renda de toda a economia, o dobro da média do mundo industrializado. Desigualdade à flor da pele. E, por trás desses números escandalosos, estão as vítimas, em carne e osso, de um sistema econômico que muitas vezes as exclui permanentemente.
Segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU (CEPAL), de 2020, 8 em cada 10 latino-americanos estão em condições de vulnerabilidade social. Isso se deve ao aprofundamento das desigualdades estruturais associadas ao forte crescimento da informalidade no emprego. Soma-se a isso o fechamento de 2,7 milhões de empresas e a queda de 7,7% no PIB. Estamos perante um retrocesso de 12 anos, em termos de pobreza, e 20 anos, em termos de pobreza extrema. Esse é o tempo estimado para que a região se recupere da crise.
Os altos níveis de pobreza, o acesso desigual à educação, as condições precárias de moradia, o menor acesso aos serviços de saúde e a maior participação no emprego informal afetam mais as mulheres, as crianças e os jovens. O fechamento preventivo de escolas para conter infecções por Covid-19 é contrastado pela falta de infraestrutura para assistir às aulas on-line. O isolamento social aumentou a sobrecarga de trabalho das mulheres, que realizam a maior parte do cuidado não remunerado.
Na atual conjuntura, é mais urgente do que nunca que os governos tomem medidas para proteger o emprego formal, a renda básica emergencial para cobrir os trabalhadores desempregados, aqueles em situação de informalidade e/ou de pobreza, para solucionar essa crise. Para isso, o fato é que o Estado precisa de recursos econômicos. E, seguramente a maioria dos leitores, se não todos, já ouviu falar que o Estado não tem esses recursos. É aqui que a justiça fiscal desempenha um papel fundamental no combate à desigualdade.
Além de poder gerar uma fonte sustentável de recursos econômicos públicos necessários para garantir os Direitos Humanos, os sistemas tributários podem ser uma ferramenta central para reduzir as desigualdades por meio de seu potencial redistributivo. No entanto, para que efetivamente possamos combater a desigualdade através deles, é preciso que sejam progressivos, ou seja, quem tem mais precisa contribuir proporcionalmente mais com o recolhimento de impostos.
A América Latina e o Caribe arrecadam muito com os impostos sobre o consumo, mas pouco com os impostos sobre a riqueza.
Atualmente, perdemos 26 bilhões de dólares por ano por não tributar as grandes fortunas.
Dos parlamentos e com o apoio do movimento social, deveriam ser promovidos impostos de emergência sobre grandes riquezas e lucros extraordinários, além de impostos pelo uso de jurisdições offshore. Isso inclui impostos sobre empresas da economia digital, como Amazon, Netflix, Google, entre tantas outras que viram suas fortunas crescerem astronomicamente durante a crise.
É fundamental também frear os fortes e crescentes abusos fiscais, que geram a saída de recursos dos nossos países e nos impedem de desenvolver Políticas Públicas inclusivas para acabar com a desigualdade estrutural e combater a extrema pobreza, que atinge 78 milhões de latino-americanos. Segundo dados da CEPAL, a cada ano, a região perde o equivalente a 6% de seu PIB em decorrência de fraudes fiscais. Além disso, é preciso melhorar a integração regional dos nossos sistemas tributários: atualmente não há cooperação em matéria tributária entre os países da região. Isso é como “voar às cegas”, porque não há transparência sobre o que acontece em termos de tributação de empresas nos países vizinhos. Precisamos aprofundar o combate às práticas fiscais prejudiciais e fortalecer o controle fiscal das grandes empresas por meio da abertura de seus relatórios contábeis, localização de subsidiárias e beneficiários finais.
Outro ponto é que nossos sistemas tributários são feitos sob medida para grandes corporações. Isso resulta em grandes perdas devido à concessão de benefícios fiscais, que chegam a quase 5% do PIB regional, excedendo o investimento regional pré-pandêmico em educação. É um montante que os países deixam de arrecadar e que passa a fazer parte do patrimônio dessas corporações. De acordo com o Estado da Justiça Fiscal 2020, relatório publicado pela Tax Justice Network (TJN), com a Internacional de Serviços Públicos (ISP) e a Global Alliance for Tax Justice (GATJ), a região deixa de arrecadar pelo menos 500 bilhões de dólares anualmente por causa de abuso fiscal corporativo. Perdemos também 320 bilhões de dólares a cada ano por sonegação fiscal, segundo a CEPAL.
O problema central da América Latina e do Caribe não é a pobreza, é a extrema riqueza concentrada em poucas mãos que os Estados não conseguem tributar e redistribuir.
Em muitos casos, isso se deve à falta de ferramentas para fazê-lo – não apenas técnicas, mas essencialmente políticas. Porém, em muitos outros, isso resulta da total impunidade das elites locais e do consentimento dos governos, que se tornam cúmplices da concentração de poder econômico.
Este artigo é uma reflexão de Adrián Falco.
Adrián Falco é líder da Red de Justicia Fiscal de América Latina y El Caribe (RJFALC), rede regional da Global Alliance for Tax Justice (GATJ). É também coordenador da Fundación SES, na Argentina, e membro da Red Latinoamericana por Justicia Económica y Social (Latindadd).
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.
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