Agora sim, tudo nos trinques

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A Banca ajudou a transformar o Jardim Ângela, em São Paulo, e fomenta o tema de empreendedorismo social nas periferias. Mas um deslize burocrático quase pôs tudo a perder

Texto Tiago Mota | Fotos agência Ophelia | Vídeo Ação Luz

“De fato tomei um chapéu de burocracia por não me atentar aos prazos.” O depoimento de Marcelo Rocha, o DJ Bola, poderá não ser uma novidade para muitos empreendedores que já se enrolaram por alguma questão jurídica ou burocrática da empresa. Fundada por Bola, A Banca nasceu em 1999 como um movimento de música, cultura e educação popular no bairro do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Com o tempo, o movimento se reconheceu enquanto negócio social e, atualmente, tem CNPJ de associação e título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Porém, mesmo depois de passar por tantas orientações, um dos deveres requeridos dessa razão social acabou passando batido, o que cobrou um custo alto. “Não podíamos sacar, receber, emitir nota ou fechar novos negócios.”

A Empresa

A Banca nasceu como movimento muito antes de qualquer noção sobre empreendedorismo social chegar no Jardim Ângela. Era um tempo particularmente difícil para o bairro, que, em 1996, foi considerado pela ONU como o mais violento do mundo. Diante de um desafio tão grande, A Banca surgiu como um movimento juvenil que sonhava viver de hip-hop e usá-lo como ferramenta de cidadania e educação. “Nós não tínhamos acesso a muitos livros”, relembra Bola. “Meus livros foram meus discos. Racionais MC, Sabotage, Sistema Negro e tantos outros.”

A falta de grana, porém, sempre foi um problema. No início, já com uma pegada de produtora musical, A Banca segurava as pontas e pagava as contas realizando eventos de música no comércio local. Somente em 2007 houve uma virada. O ainda movimento participou de um programa chamado Expedição Jovens Empreendedores, da Artemísia, que buscava dar mentoria e oportunidades para iniciativas juvenis das periferias.  Naquela época, A Banca começou a se entender como negócio social.

“Não queríamos que nosso sonho morresse por falta de grana”, relembra Bola. “Foi quando a gente virou a chave para montar um plano de negócios. A gente se ligou no significado do que é empreendedorismo e eu pensei: ‘Mano, isso eu já sou há quinze anos ali na quebrada’.”

Atualmente, A Banca atua em três frentes para manter-se financeiramente. O primeiro continua sendo o braço da produtora musical, que leva arte, música e cultura da quebrada em eventos pela cidade. O segundo é um programa desenvolvido para escolas, universidades e fundações que convida jovens de outras regiões a se confrontar com a realidade da periferia. Por fim, o braço mais recente é a Aceleradora de Negócios Periféricos, que já está na sua terceira turma de negócios acelerados dentro da periferia.

O Erro

Na época de profissionalizar o trabalho d’A Banca, Bola e sua equipe optaram por um modelo jurídico de associação, em vez de um CNPJ de empresa ou de ONG. O modelo permite a realização de atividades econômicas para manter ou ampliar seu patrimônio, mas não autoriza a geração de lucro para seus associados. Por não ter fins lucrativos, goza da imunidade de impostos.

Para criar uma associação, é preciso criar um estatuto social, com a assinatura de dirigentes e associados, que deve ser renovado a cada mandato de quatro anos. Foi aí que a coisa ficou venenosa. No fim do primeiro mandato, em 2011, Bola e seu time não atentaram para os prazos de renovação. “A gente não se ligou”, relembra. “E isso bloqueou toda nossa movimentação financeira. A gente não podia mais emitir nota fiscal. Tínhamos até entregue um trampo, mas não podíamos receber dinheiro na conta.”

Isso não é necessariamente o fim do mundo. Mas burocracias levam tempo para ser resolvidas. Na prática, A Banca ficou sem seu estatuto nos trinques por quarenta dias. Mais de um mês, portanto, sem poder mexer no próprio dinheiro. Sem, inclusive, tirar d’A Banca a renda que mantinha as famílias em torno dela. “Eu tinha acabado de ganhar a minha filha. Tivemos que recorrer à família e aos amigos, pedindo grana emprestada para poder ter o mínimo para sobreviver.”

A Solução

Talvez pareça um erro bobo, mas uma comida de bola dessa, que qualquer um poderia ter cometido, pode colocar tudo a perder. Marcílio Guedes Drummond é advogado especializado em atender startups e alerta para a importância de estar por dentro dos deveres legais de um negócio, seja de qualquer tipo de razão social. “O empreendedor precisa entender que as normas são as regras do jogo”, avisa o advogado. “O descumprimento delas geralmente ocasiona alguma punição ou impedimento. Inclusive o empreendedor deve estar atento aos detalhes jurídicos para saber quais riscos corre, caso decida ignorar ou cumprir algum ponto.”

Em se tratando especificamente de associações, Marcílio conta que é comum encontrá-las em irregularidade por não manter seus estatutos e atos societários atualizados. Um modo de organizar a casinha, segundo o advogado, é reforçar a regularidade de assembleias gerais ordinárias a cada ano, de forma a manter uma cultura de transparência, e a cada quatro anos, para realizar eleições.

No caso d’A Banca, a estratégia foi mesmo se precaver quanto aos prazos para não perdê-los de novo. O tema jurídico e administrativo acabou ficando mais importante: hoje há uma sede d’A Banca só para assuntos criativos e outra que cuida apenas da papelada.

Buscar ajuda profissional de um advogado pode ser um diferencial. “Eu sinceramente indico auxílio jurídico desde o início das atividades”, aconselha Marcílio. “Mas para startups e negócios sociais é preciso buscar um profissional com mentalidade moderna. O serviço de mentorias, normalmente mais em conta, podem ser bons para essas demandas por serem mais flexíveis.”

Os Desafios

Hoje, principalmente com o braço de aceleradora, A Banca assumiu a missão de fomentar o tema de negócios sociais e negócios de impacto na periferia. Atualmente, é vista como referência para quem buscar entrar em contato com esses conceitos ou por quem começar um negócio na quebrada.

Para continuar atuando, Bola diz que o desafio é ampliar o networking e continuar levando a voz da periferia para o centro, fazendo pontes, de forma a ter acesso a novos clientes e a novos recursos.

“O mercado de captação para a periferia sempre foi zero. A gente não conhece essas pessoas que estão na tomada de decisão para fazer esse investimento com retorno”, relata. “Mas a gente acredita que tem uma transformação. Na nossa equipe, com meus filhos, com os filhos dos meus manos e também as pessoas que participam das nossas atividades. Todos trazem como é importante ter essa troca em diferentes realidades.”