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Boa leitura!

Créditos das fotografias:
Pablo Pereira

Parelheiros é conhecida como “a zona rural” da capital de São Paulo. Localizado no extremo Sul, o distrito – e seus 153km² de extensão – ocupa 30% do território verde paulistano, segundo informações do Plano Diretor. Um local repleto de Mata Atlântica, com diversas unidades de conservação e comunidades indígenas, e atendido pelas águas dos Rios Monos e Capivari – os últimos limpos da cidade. Também, concentra a maior parte dos agricultores da metrópole: são mais de 400 famílias agrícolas entre grandes, médios e pequenos produtores.

Desde sua fundação, a região tem como principal atividade a agricultura. Por isso, serve de exemplo – e inspiração – para os debates relacionados à alimentação e às práticas sustentáveis para o meio ambiente. Despercebida pelo ecossistema de impacto (e seus atores), o território ainda não tem iniciativas (com a tarjeta impacto) atuando e recebendo investimentos. Vale citar alguém fora da curva: a Enjoy Orgânicos, um negócio de impacto do M’Boi Mirim – distrito vizinho – que realiza delivery de alimentos orgânicos, de produtores e produtoras de Parelheiros, para moradores das periferias da zona sul, como Jardim São Luís, Jardim Ângela, Santo Amaro, Capela do Socorro e Campo Limpo. Uma conexão periferia com periferia.

O caminho até Parelheiros (São Paulo/SP).

Antes, irei falar sobre mim
Internamente, venho questionando minha relação com a alimentação e onde é que minha ação de se alimentar, ou seja, fornecer aquilo que é necessário para que meu corpo funcione, está saudável e, até diria, correto. Das várias hipóteses, decidi voltar ao primeiro passo: o contato. Você se lembra da primeira vez que viu um abacaxi, alface ou abacate?

Dividindo com vocês: nunca tive uma relação próxima com a comida. Dentro de casa, alimentos são para comer e ponto final. Não importa de onde venham: sejam dos arcos dourados, da Rita – uma pasteleira da minha rua -, ou de algum mercado ou sacolão. Se “brotou” na mesa, é extremamente importante comê-lo. Tem alguma coisa errada aqui?

Querendo sanar minhas dúvidas, fui até Parelheiros saber dos moradores e produtores locais: “Afinal, alimentos são pra ver ou pra comer?” Depois de 28,4 km de viagem, do Campo Limpo – onde eu moro – até o distrito, minha primeira parada é na casa da Bê.

 

Bernardete Alcibíades em sua produção. Créditos: Pablo Pereira.

Fases de Bernardete
Maria Bernardete Alcebíades, conhecida como Bê, mora há 20 anos na região. A agricultura entrou na sua vida em meados de 1995, ao fazer um curso e se encantar por hidroponia – uma técnica de cultivar plantas suspensas (sem solo), onde as raízes recebem uma solução com água e nutrientes essenciais para seu desenvolvimento. No início, a ideia era deixar aos cuidados do irmão. Bê morava em Interlagos, Zona Sul de São Paulo, e tinha um emprego fixo. Cinco anos depois, seu irmão faleceu e tudo mudou. Lentamente, tomou conta da produção, contratou mão de obra, saiu do emprego e, ao mesmo tempo, se mudou definitivamente para Parelheiros.

Foram 15 anos com a hidroponia, fazendo feiras livres e entregas a domicílio. Alguns problemas começaram a surgir financeira e pessoalmente, até a mão de obra foi piorando. No limite da situação, Bê parou tudo e tirou um tempo para refletir. Mesmo assim, estava decida a parar com a horta. Vendeu metade de seus equipamentos e conservou cinco estufas.

Após o convite de uma amiga, participou de um curso de produção orgânica e no processo, conheceu o Ligue os Pontos – projeto da Prefeitura para promover e aprimorar o desenvolvimento sustentável do território rural – e através do investimento semente dele, foi possível trazer melhorias para sua horta. “Quando você voltar daqui dois meses, a horta vai ter outro visual. Comprei uma estufa, vou reformar duas e vou modificar uma. Comecei a investir em morangos, venho estudando sobre esse plantio”, conta Bê.

Ela detalha que seus produtos são orgânicos e certificado pelo IBD (Associação de Certificação Instituto Biodinâmico). Eles rodam a cidade inteira através de cestas, com entregas a domicílio para clientes em Pinheiros, Vila Mariana, Jardins e outras regiões. Sua área de cultivo – onde planta e colhe suas produções – chega à 700m² e para ela, é o tamanho ideal: “Pretendo ficar deste tamanho, assim posso dominar [a prática] e ter maior qualidade. Não quero ter quantidade e, sim, qualidade dos alimentos. Então, dedico a minha parcela [de espaços] para morangos, hortaliças [específicas] e para algumas PANCs [Plantas Alimentícias Não Convencionais]”. Bê é apaixonada por PANCs, sua preferida nas refeições é a ora-pro-nóbis, mas, no geral, é seu cultivo mais prazeroso e já sabe onde poderá vendê-las. [Pausa para o suco de cambuci e como é maravilhoso!]

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A produção da Bê
Fui conhecer de perto o pomar e a horta dela. Bê cultiva várias coisas. No pomar tem “pé” de tudo: acerola, amora, café, cambuci, cereja do Brasil, figo, jabuticaba, lichia, limão, manga, mexerica, pêra, romã e por aí vai. Nem todas as frutas são comercializadas, o que é ótimo para os parentes que não saem de lá. Entre elas, há algumas plantas medicinais como xantinon e também um pé de Pau Brasil – uma árvore comum na Mata Atlântica, porém ameaçada de extinção.

Na horta, encontro plantações de alface, abóbora, açafrão, beterraba, cará-moela, chuchu, couve, brócolis, fisális, mandioca, manjericão, mirtilo, pimenta, pimentão, salsa, shisô, tinguensai, zedoária. E, claro, as PANCs: azedinha, bertalha, capeba, nirá, ora-pro-nóbis e peixinho. Bê explica que cada cultivo exige um método diferente, como o slab (plantação em sacos) e o mulching (técnica que envolve a cobertura do solo). Para driblar as pragas, planta estrategicamente acelgas – um chamariz natural de insetos.

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Edna Celestino trabalha com Bê na produção. Créditos: Pablo Pereira.

O bendito morango
Durante a visita, conheci Edna Rodrigues Mariano Celestino – tirando as formalidades, só Edna. Há algum tempo, ela conhece e trabalha com Bê e também a auxilia na produção. Um pouco tímida, Edna conta que gosta bastante de mexer com a terra: “É glorificante, você plantar uma ‘mudinha’ e ver ela se desabrochar nisso. É muito bonito! Outro dia, eu plantei uma azedinha, depois vim aqui [na plantação] conferir se pegou [o cultivo] e se estava bonita. Cada dia, gosto de passar pelos ‘pés’ para ver como estão [risos]”.

Edna revela que sua plantação favorita é a de morangos e tem uma história por trás. Há 27 anos, ela enfrentou um sufoco com sua filha Nina (criança na época) por conta do morango. Vou explicar: tempos atrás não era tão fácil encontrar frutas fora da estação apropriada. Dito isso, Nina ficava reclamando muito que desejava comer uma certa fruta vermelha. Edna não sabia qual ela se referia, até colocar um pano de prato estampado com morangos. Nina ao reclamar de novo, apontou para o tecido e Edna finalmente entendeu. Então, começou a caça aos benditos morangos, que foi sem sucesso. Nina veio a ficar muito doente, por não comê-los. “Entendeu por que são meus favoritos?”, questiona Edna.

Morangos da produção da Bê. Créditos: Pablo Pereira.

São 46 anos como moradora em Parelheiros, nunca desejou mudar de região e por morar em uma terra muito fértil, em sua própria casa também há pequenos cultivos. “Tenho muitas plantas de vaso e uma mini-horta para plantar algumas coisas que acho bonito e interessante, como as PANCs. Nada pensando em comércio”, ela diz. “Esses dias, estava pensando como ia plantar morangos em casa. Tenho umas jardineiras, vou plantar lá. Acho que seria legal ter de enfeite. Quando vier uma visita, ela achará bonito”, acrescenta.

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Uma ex-moradora que tem um olhar pra lá
Troco alguns e-mails com a Mariana Belmont, ex-moradora do bairro de Colônia Paulista – um dos bairros que compõem o distrito -, membra da Rede Jornalistas das Periferias e colaboradora na Uneafro Brasil. Hoje, morando na Zona Oeste da cidade, Mari nunca deixou seu território para trás. Rememora com bons sentimentos: “Nasci no meio da Mata Atlântica, com alimentação saudável, horta em casa, convivia com agricultores e toda natureza em volta. Parece bonita e uma história romantizada, como se não houvesse problema, mas havia, claro”. Ela completa: “Meus sentimentos de quem nasceu, cresceu e foi criada em Parelheiros são os de liberdade e conexão justa com a natureza, com as brincadeiras e acampamentos. Me traz um sensação de privilégio nascer e viver ali. Sentimento de viver e poder viver de modo mais simples.”

Fã das verduras (escarola, azedinha, tinguensai, almeirão e afins), pergunto a Mari se alimentos “são pra ver ou pra comer”, ela traz a reflexão que comer pode – e é, de fato – um ato político: “Alimento é as duas coisas. Não se entende o ciclo da produção do alimento e toda a importância da agricultura familiar para a produção de água, economia local e preservação do meio ambiente. Comer é político e é privilégio também, por isso apoiar e fazer a informação desses alimentos girar é fundamental e necessário.”

Das coisas que a região marca a lembrança de Mari, fica uma recordação sobre o ato de preparar os alimentos: “Ver colher, guardar, depois lavar, preparar e armazenar, me emociona muito estar próximo e consumir alimentos tão necessários e importantes para o ciclo ambiental e social da cidade. Da infância, lembro do meu avô plantando, colhendo e preparando, eu chegava da escola e acompanhava esse ciclo de perto. Era nosso jeito de estar junto também.”

Localizada do outro lado da ponte (do Rio Pinheiros), Mari ainda tem acesso a alimentos orgânicos, porém os preços praticados por lá são altos:

“Ainda priorizo comprar os alimentos direto de Parelheiros, indo buscar ou recebendo as cestas aqui em casa. Além de ajudar a economia local girar, eu me alimento com o lembranças de afeto também”. 

Mariana Belmont, ex-moradora do bairro de Colônia Paulista, que compõe o distrito de Parelheiros. Créditos: Arquivo Pessoal.

Reflexões da viagem
Na volta para casa, verifico mentalmente se as dúvidas – do início do dia – foram esclarecidas. Boa parte delas sim, porém novas interrogações aparecem. Calma, que não existe espaço para mais perguntas nessa reportagem. Quem sabe na próxima? Das certezas, vejo que a alimentação nos dias atuais ficou automatizada. Praticidade é a palavra correta, porque o tempo é um moinho – como diria a música. Com internet e celular (ou computador) na mão, você pode pedir o que deseja: uma lasanha de quatro queijos até uva sem semente – nem vou comentar sobre esse item.

De verdade, ir até Parelheiros trouxe um sentimento de que “perder tempo” é necessário. É importante saber de onde vem aquilo que se encontra no prato, um simples ato de perguntar. As respostas não virão clara e facilmente, eu sei bem disso, mas fazem parte do processo. E para aqueles que não tem o privilégio de perguntas, leve as respostas (com cuidado e sem degraus). 

De volta à estrada. Créditos: Pablo Pereira.

*Conteúdo apurado antes da pandemia e das medidas de segurança com isolamento social.

1 comentário

  1. Texto muito sensível e leve. Os relatos de Bê e Edna carregaram o sentimento que com certeza elas tiveram durante as entrevistas. Leitura gostosa e fotos impecáveis, além do tema ser lindo! Parabéns 😉

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