Amanda Souto Baliza preside a Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero (CDSG) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Goiás, é colaboradora da Aliança Nacional LGBTI+, onde oferece assistência jurídica para pessoas trans em vulnerabilidade socioeconômica, e lidera uma frente do projeto Cumpram-se, que reivindica o cumprimento de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a população LGBTI+.
Ela é a primeira advogada trans a assumir a presidência de uma Comissão Especial da OAB e também a primeira a retificar seu registro profissional na seccional do estado. Contudo, narra o fato com surpresa, pois imagina que muitos outros advogados e advogadas ainda não tenham buscado realizar a retificação permitida desde 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça – só não se sabe quantos.
A busca por mais dados sobre a parcela transexual da população faz parte do dia a dia de Amanda. Além de ter entre as prioridades de sua gestão na Comissão da OAB o recenseamento de profissionais trans no país – defasado, porque cada seccional reúne seus próprios dados de forma independente -, a advogada reconhece que o levantamento de números nacionais sobre transexuais e travestis ajudará a consolidar políticas de defesa aos direitos LGBTI. Saiba mais na entrevista a seguir.
AUPA – No país que mais mata pessoas trans, qual é o papel do instrumento jurídico?
Amanda Souto – Temos um problema muito grave no Brasil: não há leis federais de proteção às pessoas LGBTI+. Todos os direitos garantidos vieram do judiciário ou via decreto. É grave, pois sem a lei federal fica mais difícil aplicar na ponta.
A decisão do STF de criminalizar a LGBTfobia completou dois anos em junho de 2021 e nesse tempo só tivemos uma condenação pelo crime no Brasil – em Alagoas, onde uma mulher trans foi expulsa do banheiro de um shopping. O caso foi peculiar, tanto pela grande visibilidade que ganhou na mídia quanto por envolver uma figura incomum em processos como esse – o assistente de acusação, figura que auxilia bastante o Ministério Público, intervindo na ação penal pública. Mas, se em dois anos só houve uma condenação e foi um processo tão peculiar como esse, só há duas possibilidades: ou o Brasil virou um país onde a LGBTfobia não existe, ou que a decisão do STF não está sendo aplicada. Me parece que é o segundo caso.
AUPA – Qual é a responsabilidade da OAB na atual conjuntura do país, onde é evidente uma crise multifacetada, que passa pela política e pela representatividade?
Amanda Souto – A OAB tem papéis distintos em momentos distintos. Às vezes, precisa se colocar como mediadora da sociedade, nas pautas do dia a dia e em momentos de conflito. Mas, quando se fala de questão de Direitos Humanos, penso que a OAB precisa ter um papel ativo na militância por tais direitos, que são inegociáveis.
AUPA – Qual é o papel da sociedade civil e da OAB nesse contexto e qual a importância dessa vigilância?
Amanda Souto – No Direito, temos a figura do titular da ação penal, ou seja, a pessoa que oferece a denúncia. O titular da ação penal é o Ministério Público, então o que a OAB pode fazer é criar diálogo entre as instituições, como tem sido feito, por exemplo, na Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero e na Comissão da Mulher Advogada da OAB. O objetivo é criar espaços de diálogo para discutir questões relevantes acerca da diversidade sexual e de gênero, sempre reunindo pessoas do Direito, da academia e da sociedade civil em campanhas, audiências públicas e elaboração de documentos. O diálogo precisa existir.
Tenho feito esse mesmo trabalho também pela sociedade civil, na Aliança Nacional LGBTI. Ao identificar decisões do STF sobre essa população que não estão sendo cumpridas, buscamos conversar com Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e Secretarias de Segurança Pública e de Justiça. A partir disso, realizamos reuniões, conversamos com servidores, criamos memorandos de entendimento dessas organizações em parceria com a Aliança.
AUPA – De que forma organizações como a Aliança impactam na criação de uma futura legislação federal contra a LGBTfobia?
Amanda Souto – Para criar Políticas Públicas, nós precisamos de dados. Mas esses dados muitas vezes nem existem. No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 apenas 11 Estados contabilizaram casos de violência contra LGBTI. Isso sem falar nos fortes indícios de subnotificação. Em Goiás, o Anuário registrou três homicídios de pessoas LGBTI em 2019, enquanto o Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) registrou seis, um número superior, correspondente ao assassinato de pessoas trans no mesmo período. A conta não fecha.
Começamos a fazer esse mapeamento e descobrimos por que não temos esses dados: há sistemas utilizados para registrar ocorrência onde não existem os campos de motivação do crime e de orientação sexual da vítima. Ou, às vezes, há os campos, mas não são preenchidos, então é impossível saber o perfil da vítima. Cada Estado tem um tipo de sistema e ainda falta capacitação e treinamento para que seja preenchido corretamente.
A Aliança LGBTI tem criado mecanismos para disseminar ideias que deram certo em algum Estado, colocando pessoas para conversarem entre si. Muitas instituições enfrentam hoje questões orçamentárias e usam isso como justificativa para não implementar novas ideias. Mas é possível ter soluções baratas. Em Goiás, por exemplo, já foi assinada a portaria para criar um grupo especial de combate a crimes de racismo, intolerância religiosa e LGBTfobia, que funcionará na Escola Superior da Polícia Civil, então todos os policiais que passarem pelo curso de formação passarão também por uma delegacia que evita a vitimização, humaniza o tratamento e, com certeza, preenche o campo de motivação.
AUPA – O que falta para que a iniciativa privada também invista em espaços de inclusão e minimização de violências? E o que ela ganha ao fazer isso?
Amanda Souto – Ainda é uma questão tímida, mas pelo menos as grandes empresas têm começado a mudar esse posicionamento. Hoje, por exemplo, existe o Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, do qual a Aliança LGBTI faz parte, composto por mais de 100 das maiores empresas do Brasil, onde CEOs e pessoas com alto poder de decisão debatem questões de inclusão. Acho que vai demorar um pouco para a sociedade entender que é um movimento que precisa estar em todas as empresas. Não sei se está na velocidade ideal, mas, mesmo caminhando a passos lentos, acredito que seja melhor do que não estar caminhando.
Particularmente, creio que as instituições funcionam como espécies de animais. Uma espécie de animal com pouca diversidade genética tende a ter problemas congênitos no futuro. Então, da mesma forma, quando as instituições têm pouca diversidade dentro delas, elas ficarão com aquele pensamento engessado, retrógrado e não conseguirão tomar decisões que acompanham os avanços sociais. Quando há pessoas com diferentes orientações sexuais, identidade de gênero, classe e localidades, ideologias diversas, é possível juntar tudo isso e, a partir de múltiplas visões de mundo, ter mais bagagem e opções na hora de decidir. Muitas vezes, trata-se de uma pessoa cuja opinião agregaria à empresa e ao Poder Público – porém, não acessa esses lugares simplesmente por um preconceito.