Nos últimos anos, o ecossistema de impacto tem ampliado sua atenção para a questão da diversidade, especialmente para gênero e raça, que são marcadores importantes quando nos deparamos com os dados que versam sobre as desigualdades sociais estruturais no Brasil.
Embora o debate se faça urgente, a maneira como ele tem sido usualmente discutido no ecossistema de impacto tem vieses para os quais precisamos nos atentar, uma vez que as leituras e análises tendem a ser homogêneas e deixam de lado necessidades e formulações que escapam à maneira a qual a branquitude experiencia o mundo.
Isso porque um olhar atento sobre as equipes de trabalho no ecossistema de impacto revela que a maioria das lideranças (principalmente nas organizações do investimento social privado, negócios de impacto e organizações intermediárias) são brancas, com forte presença de homens. No estudo “Avaliação de Aceleradoras de Impacto” (2021), que a Move Social organizou com outras organizações parceiras, os dados levantados indicam que as lideranças das aceleradoras são compostas em sua maioria por pessoas brancas. O 3º Mapa de Negócios de Impacto Social + Ambiental, organizado pela Pipe.Social, por sua vez, mostra que o perfil das pessoas que fundaram negócios de impacto mapeados também responde a padrões percebidos no cenário de impacto: a maioria é homem, branco, entre 30 e 44 anos e com alta escolaridade. A Move Social também é permeada por essa realidade e estamos buscando construir estratégias para criar possibilidades e condições de ampliação da diversidade dentro de nossa organização e, na travessia, temos nos deparado com alguns dos desafios aqui expressos.
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A construção social e histórica do Brasil é repleta de paradigmas que foram construídos pela ótica da branquitude e no ecossistema de impacto não seria diferente. No contexto da avaliação, por meio do qual nos aproximamos de diversas organizações com a missão de contribuir para ampliar e qualificar o impacto social positivo das mesmas, temos nos provocado a pensar caminhos que sejam capazes de deslocar nosso olhar e que nos ajudem a ter uma leitura analítica do mundo mais acurada. Não temos a pretensão de esgotar o assunto e, tampouco, solucioná-lo, mas acreditamos que nosso papel como avaliadoras brancas é refletirmos sobre nossa prática, tendo como ponto de partida os desafios que são essencialmente de responsabilidade da branquitude.
Admitir que as questões estruturais transpassam o ecossistema de impacto, o qual é formado por pessoas que dedicam suas vidas às iniciativas que buscam melhorar o mundo é, em si, um desafio. Não basta ter equipes diversas sem olhar o espelho: é necessário assumirmos que a maneira a qual a branquitude vê o mundo não é universal e é, sobretudo, limitada. Falar diretamente sobre poder e privilégio branco (e também masculino) é em si uma potente interrupção de padrões. Quem fala, quem não fala, quando, por quanto tempo, quem decide são chaves para entender os padrões relacionais que mantêm as diferentes opressões no lugar. Neste sentido, criar mecanismos de combate ao racismo institucional (e também ao sexismo, ao capacitismo e à lgbtfobia) se torna urgente, inclusive, no ecossistema de impacto.
Ao nos depararmos com (as poucas) organizações que estão no movimento de estudar e olhar para as questões raciais a partir do lugar da branquitude, vemos que o interesse perpassa estudos, contratação de pessoas negras para cargos de liderança e vai além, fomentando espaços de participação dos grupos que recebem suas intervenções na própria construção de projetos e programas, posicionando a legitimidade desses para a formulação de soluções das problemáticas vividas.
Um dos projetos que avaliamos em 2020, o qual trilhou um caminho bastante interessante no âmbito da participação, teve como processo de construção um método que envolveu mapear organizações, especialistas, associações, grupos e coletivos que trabalhavam na área de atuação, para que fosse possível a co-construção de um edital público para a seleção de organizações que seriam apoiadas. Neste modelo, foi possível ouvir do campo, de forma ampla, quais eram as diferentes visões sobre a problemática em questão e, a partir deste olhar mais abrangente, construir uma iniciativa.
Com base neste contexto e com atrizes e atores sensíveis às questões de gênero e raça, foi possível implementar um processo avaliativo que priorizasse a participação de beneficiárias e beneficiários desde o mapeamento dos interesses na avaliação até a análise dos dados. Para tal, o processo foi amparado pela abordagem de avaliação culturalmente responsiva, a qual alinha-se a princípios e valores de justiça social e, portanto, teve como objetivo evidenciar os mecanismos que possibilitaram ou dificultaram o alcance da equidade, com olhar interseccional, analisando os efeitos da iniciativa nas distintas populações beneficiadas.
Além desta experiência relatada, vemos um crescente movimento do Investimento Social Privado voltado a fomentar iniciativas promovidas por organizações negras ou lideradas por pessoas negras. Além disso, percebe-se os negócios de impacto com mais ações de incentivo ao empreendedorismo negro e o mundo corporativo sendo pressionado a ser mais atento e proativo em relação à equidade racial e, em certa medida, respondendo a isso. A abordagem antirracista e o grupo de avaliadoras(es) negras(os) “Lente Preta: Avaliação e Equidade Racial” dão sinais de importantes movimentos no campo da avaliação.
Assim, vemos que existem avanços, ainda que o caminho seja longo para uma transformação, de fato. No entanto, para que os esforços aqui relatados sejam perenes, efetivos e gerem impacto positivo, se faz urgente que a branquitude se olhe, se reconheça como grupo racializado, se estude. Mas, principalmente, abra espaço para descentralizar o poder de decisão.
Leia mais sobre:
Experiências institucionais no enfrentamento ao racismo institucional: Política de Diversidade e Inclusão – Fundação Tide Setubal.
Manuais sobre Racismo Institucional – Geledés.
Cartilha combate ao racismo institucional – Ação Educativa.
Este artigo é uma reflexão de Juliana Moraes e Tânia Crespo.

Desde 2013 na Move Social, Juliana Moraes trabalha principalmente com processos de avaliação nas áreas de educação e assistência social, com forte atração pelos casos que envolvem questões de gênero e justiça social. No campo social, atuou na coordenação de pesquisas e na avaliação e monitoramento de iniciativas de Direitos Humanos. É mestre em Antropologia Social e Cultural pela Université de Provence (França)/UNICAMP e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP.
Mãe da Clara, a maternidade aflora sua visão de mundo, aproximando da temática do feminismo, o que lhe propicia diversidade de olhares.
Na Move Social desde 2012, Tânia Crespo atua em processos de avaliação de programas e projetos, planejamento estratégico e aprimoramento organizacional, em especial que envolvam Direitos Humanos, relações comunitárias e garantia de direitos. Tem experiência em gestão de organizações e projetos, trabalhou em organizações públicas e privadas no Brasil e na Argentina. É especialista em Tecnologias para a Inclusão Social pela UNILA, Comunicadora Social pela UMESP e tem formação em Psicologia Social pela Escola de Psicologia Social da Patagônia, Argentina.

Seu lado cuidadora floresceu e ganhou novos sentidos com a chegada de seu enteado Mateo e sua filha Flora; já sua “versão ativista” ganha força com a causa feminista e na atuação como PLP (Promotora Legal Popular na Fronteira Brasil/Argentina/Paraguai).
Este texto é de responsabilidade das autoras e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.
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Super importante este debate ?