A fala serena e tranquila de José Marcelo adiciona, com leveza, uma vastidão de conhecimento a cada resposta. Secretário-geral do GIFE, a associação de investidores sociais do Brasil, José Marcelo recebeu a Aupa para uma entrevista no terceiro e último dia do X Congresso GIFE, realizado entre os dias 4 e 6 de abril em São Paulo.
No começo de nossa conversa, José Marcelo destacou o balanço positivo das discussões no Congresso que, nesta edição, teve como tema Brasil, Democracia e Desenvolvimento Sustentável. “Além de 2018 ser o ano do décimo Congresso GIFE, também marca o aniversário de 30 anos da Carta Constitucional de 1988 e da experiência democrática brasileira”, recorda José Marcelo. “E vivemos um momento que nos desafia, primeiro, para não perder de vista o que caminhamos e construímos nesse período de vivência democrática, do ponto de vista institucional, social e da cidadania, da inclusão econômica e ambiental.”
Nesta entrevista exclusiva, José Marcelo também comenta sobre a posição do investimento social privado no que se referem os negócios de impacto socioambiental, os quais se fortalecem.
“Classicamente, você diria que não poderia haver contato entre essas partes. De um lado, não existe atuação no mercado, e, de outro, visa-se o lucro e resultados privados”, comenta. “Todavia, basicamente, cabe à filantropia e ao setor de investimento privado apoiar essa outra dimensão de forma positiva ao criar uma zona entre as partes.”
AUPA Sobre esses desafios da agenda pública, a gente está num ano especialmente conturbado. Apuramos, por meio da Aupa, que existem alguns projetos de regulamentação dos negócios de impacto socioambiental, mas estão parados. Que tipo de estratégia pode-se traçar para superar esse momento e voltar a propor essas pautas?
JOSÉ MARCELO ZACCHI Não será função de ninguém sozinho dar conta disso. Acho que todos somos parte disso, e isso extrapola a agenda imediata e as capacidades imediatas de todos nós. Trata-se de refazer as próprias condições de ação coletiva, cidadania, institucionalidade, de processamento do debate público e formação com efetividade da agenda pública e da pauta de política pública do país, tanto no legislativo quanto no executivo. Quer dizer, um contexto de crise institucional como a gente está vivendo interdita o avanço nas mais diversas áreas. Você, por exemplo, traz a situação da dificuldade de avançar com a tramitação numa pauta de regulação dos negócios de impacto, e poderíamos, também, trazer exemplos de outras áreas diversas. Eu lembrei, agora, de uma carta que a Ana [Luiza Vilela] e Marcos [Nish], que dirigem o Instituto Alana, fizeram para a rede de associados, por ocasião do lançamento de uma série que se chamou Política – Modo de Usar, veiculada pelo canal de TV fechada Globo News. A carta diz basicamente o seguinte: o Alana atua na agenda de crianças e adolescentes, de direitos, educação. A série não é uma agenda de institucionalidade pública, política. Então, por que estamos apoiando isso? Porque estamos vivendo um momento em que a plataforma está travada.
AGORA, EU CONSIGO CRIAR PROPOSTAS DE ATENDER, NESTE CASO, POR EXEMPLO, À POPULAÇÃO DE MENOR RENDA EM SOLUÇÕES QUE SE SUSTENTAM NO MERCADO. COM ISSO, TEM-SE UM ELEMENTO A MAIS NO REPERTÓRIO QUE PODE SER MUITO POSITIVO.
Se cada um de nós não pensar como se contribui para destravar o ambiente institucional onde as propostas e o debate público se faz, convertendo-se em políticas, haverá muita dificuldade para impulsionar e avançar em qualquer tema. A carta era um convite a uma reflexão, na rede, sobre a necessidade de nos conectarmos mais. Num marco que é a valorização da diversidade da pluralidade como um ativo, não como um problema. Quer dizer, o fundamento da ideia democrática é termos aqui atores com perfis variados, trajetórias, ideias, pontos de vista, programas distintos. A soma tanto da flexão entre essas ideias quanto da identificação entre elas, emerge mais no público no fim do dia. Outro ponto: é como avançar na criação de condições de novas formas de pacificação de transparência, de controle na vida pública, de aprimoramento das instituições públicas para que possamos, também, ter uma nova camada de construção, de aprofundamento, de qualificação da nossa vida institucional e democrática. Sem isso, não é possível avançar e, em regra, o paciente pode morrer.
TEMOS ACOMPANHADO A DISCUSSÃO DE CRIAÇÃO DE UMA ESTRATÉGIA NACIONAL DE APOIO PARA NEGÓCIO DE IMPACTO, INDÚSTRIA DE DESENVOLVIMENTO. ESTA INICIATIVA NOS BENEFICIARÁ MUITO.
Entrando especificamente na pauta de negócios de impacto, eu diria que é preciso manter a ação acompanhando aquilo que tem a ver com a funcionalidade pública, governamental e legislativa. Além disso, identificando, também, formas de caminhar e, naquilo que for pertinente, conter o retrocesso. Mas este momento, em especial, temos pouca margem para caminhar. Nesta circunstância que vivemos , o objetivo é trabalhar a sociedade para o fortalecimento dessas pautas e temas. Temos acompanhado a discussão de criação de uma estratégia nacional de apoio para negócio de impacto e indústria de desenvolvimento. Esta iniciativa nos beneficiará muito. É possível dizer, ainda, que a gente tem largo espaço para avançar, e eu diria mais: que o crescimento viria por meio do fortalecimento do macro sistema de negócio de impacto no país, ou seja, com empreendedores colocando novos negócios e atores de polinização, intermediação e fortalecimento do setor. Este é, ainda, um passo anterior ao da regulação, que é na própria disseminação da ideia e do conceito que está por trás do fundamento do negócio de impacto.
AUPA Ainda no assunto de negócios de impacto, como as fundações e a filantropia podem se encaixar nesse paradigma de impacto socioambiental por ferramentas de mercado?
JOSÉ MARCELO ZACCHI Classicamente, diríamos que não poderia haver contato entre essas partes. De um lado, não existe atuação no mercado, e, de outro, visa-se o lucro e resultados privados. E é bem neste ponto que um tipo de “muralha chinesa” foi construída. É possível perceber que um gerará receitas no mercado e o outro, mesmo não gerando receitas, produzirá apoio de recursos e doações de indivíduos, fundações etc.. Todavia, basicamente, cabe à filantropia e ao setor de investimento privado apoiar essa outra dimensão de forma positiva, criando uma zona entre as partes. A partir disso, a gente cria um dégradé da situação. Nele, há a ideia de que é possível produzir resultados de interesse público atuando no mercado, sendo essa uma ideia muito bem-vinda. Na perspectiva de negócios de impacto nasce, então, a reflexão: ‘como eu, na minha atuação de mercado, vou tentar conjugar o resultado econômico com o resultado para a sociedade’. Nesse sentido, os negócios de impacto são um passo adiante na reflexão sobre o lugar das empresas e do setor privado na coletividade. Já na perspectiva da filantropia, a reflexão que procede é: ‘na minha atuação orientada a causas de interesse, como incorporo no meu repertório e no meu baralho de alternativas, a possibilidade de arquitetura de mercado com sustentabilidade e produzindo com potencial de escala’. Essa constatação, todavia, soará familiar para nós aqui e para boa parte dos leitores da Aupa. No entanto, é um conceito que ainda tem muito para avançar na nossa formação clássica. É como um mantra mental: reconhecer que essas duas “casas” não precisam ser estanques. Entretanto, a ideia de responsabilidade social, ambiental e corporativa, de um lado, é chamada de muito positiva para o mercado como um todo , mas neste estágio estamos, basicamente, no ponto de abster-se de produzir efeitos negativos. Depois, entramos no momento onde o indivíduo (eu e você, por exemplo) , parcela da coletividade, deve aportar recursos para fazer sua parte na construção e na ação coletiva na sociedade. Depois disso, a gente chega ao terceiro ponto, que incorpora a possibilidade dessa inserção positiva na sociedade no próprio modelo de negócio e na própria atuação. Com isso, a ideia de que o mercado existe tanto na sociedade quanto na coletividade, faz com que cada cidadão passe a buscar e a perseguir resultados sejam privados, sejam públicos. Isto é algo muito bom. Uma dimensão disso, que gosto muito de destacar, é a convocação do mercado a cumprir seu melhor papel conceitualmente. O vigor dessa atuação é a grande vitória do mercado, assim como sua capacidade de identificar demandas de alguma forma não atendidas, possibilitando a inovação na sociedade e respondendo diretamente a ela.
NA PERSPECTIVA DE NEGÓCIOS DE IMPACTO NASCE, ENTÃO, A REFLEXÃO DE COMO ‘EU, NA MINHA ATUAÇÃO DE MERCADO, TENTAREI CONJUGAR O RESULTADO ECONÔMICO COM O RESULTADO PARA A SOCIEDADE’.
AUPA Mas, a seu ver, a solução para os grandes dilemas passam sempre por esse vigor da iniciativa privada?
JOSÉ MARCELO ZACCHI Do ponto de vista da produção de bem público, a gente sempre gosta de dizer, que resolver tudo no âmbito do mercado ou dos negócios é evidente que não conseguiremos, nem temos que pensar nesses tempos. . Quer dizer, temos uma série de situações relacionadas à vida comunitária, com a formação da vida cidadão, a vida democrática com enfrentamento de quadros que estão na esfera pública. Mas por outro lado, tem uma série de dimensões de demanda em que o negócio de impacto abre caminho para a resposta. Poderia dar vários exemplos, mas ninguém pode supor que, em nenhum lugar do mundo, é possível resolver a demanda de habitação social sem políticas públicas muito rigorosas de regulação urbana. Isso depende de política pública, que naturalmente depende da atividade acadêmica, da formação de massa crítica para essas políticas de regulação, da movimentação social para o debate e para a construção e disputa dessas políticas. Mas é possível conseguir criar propostas para atender, por exemplo, a população de menor renda em soluções de aprimoramento habitacional, de produção habitacional, que se sustentam no mercado etc.. De fato, a partir dessas ações há elementos a mais no repertório, o que pode ser muito positivo.
AUPA: Porque a maior ferramenta de distribuição de renda continua sendo o salário…
JOSÉ MARCELO ZACCHI Exatamente. E aí, quando se fala de repertório, acho que a beleza e a dificuldade de se falar de agenda e soluções públicas é que nunca haverá uma solução. Quer dizer, eu acabei de exemplificar uma situação onde se mobiliza atores, ferramentas e elementos diversos. E, isto, é um verdadeiro desafio, pois em cada tema e contexto é preciso encontrar o melhor balanço, a melhor composição entre eles. Daí surge a pergunta: O que a gente precisa no plano de regulação? Bom, você mesmo falou sobre as leis. Há outras perguntas que se levantam: E o que se necessita no plano da produção de conhecimento e da formação do debate público? O que se pode fazer no plano de negócios e mercados? Como é possível fomentar e apoiar isso? E de posse dessas respostas, podemos encontrar o melhor balanço e melhor composição, ou seja, se está no melhor dos mundos na capacidade de produção, mas acho que tudo que estou colocando aqui também dialoga com o lugar específico do GIFE, porque para nós é isso. Daí, quando eu falo de mapa mental, estamos na zona de investimento social, da profissão de bem público. Para nós, o papel é desenvolver projetos que não se remunerarão no mercado, e sim apoiar a ação civil em projetos dessa natureza. Na verdade, por tudo que a gente falou aqui, incorporar esse repertório é chave e pensamento positivo.