Como é o cenário para empreendedoras no Brasil? Quais as dificuldades que organizações e empresas, dentro e fora do ecossistema de impacto, enfrentam quando lideradas por mulheres? Para jogar luz em caminhos possíveis para debater tais questões, a partir de dados, contextos e estudos de caso, a Aspen Network of Development Entrepreneurs (ANDE) lançou a pesquisa “Aplicando uma Lente de Gênero no Apoio ao Empreendedorismo: Insights do Brasil” (2020). O estudo foi feito pela ANDE, tendo como parceiros o Institute of Development Studies (IDS) e o programa Developing Inclusive and Creative Economies (DICE) do British Council.

Em entrevista exclusiva à Aupa, Cecília Zanotti, gerente do braço brasileiro da ANDE, comenta sobre as ações da organização, a importância de mais mulheres serem líderes no mundo dos negócios, investidoras e empreendedoras – considerando-se a realidade e as territorialidades de cada uma. Ela soma também à equipe a experiência como gestora de programas e Organizações da Sociedade Civil, desde 1998.

Sobre a quantidade de mulheres que trabalham na ANDE (Brasil), Cecília explica: “Sobre cargos de liderança, a gerente executiva é uma mulher e o cargo de diretor(a) executivo(a) está em processo de transição. No caso de uma contratação feminina, os dois maiores cargos da organização estarão ocupados por mulheres”.

A ANDE no Brasil prevê a contratação de mulheres negras em seu plano de expansão, já que, apesar da equipe no Brasil ser 100% feminina (formada por duas mulheres), nenhuma é negra. “A equipe mundial da ANDE, considerando a sede nos Estados Unidos e todas as equipes de todos os países, soma 43 pessoas: 32 são mulheres (74%) e 14 são negros (32%). Destes, 8 são mulheres (18% do total) e 6 homens”, explana a gerente.

Créditos: Equipe de Arte da Aupa.

AUPA – Sobre mulheres empreendedoras, ainda vemos uma série de obstáculos, como poucas mulheres em cargos de liderança nas empresas e organizações, além do fato de que poucas empreendedoras conseguem ter acesso ao capital e ao crédito. Colocando também um recorte de raça/etnia, este número é ainda menor. Quais ações da ANDE, feitas a partir do estudo, podem/poderão contribuir para a mudança deste cenário?
Cecília Zanotti – A ANDE está conduzindo em 2020 o projeto AGEI – Iniciativa de Equidade de Gênero (Ande Gender Equality Initiative), financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID) e pela Visa Foundation. Esse projeto acontece ao mesmo tempo nas regiões dos seguintes países: Brasil, Colômbia, México, Nigéria, Quênia, África do Sul, Índia e Tailândia, países onde a ANDE tem escritório. O estudo “Aplicando uma Lente de Gênero no Apoio ao Empreendedorismo: Insights do Brasil” nos deu a clareza e alguns dados sobre os quatro principais desafios no apoio ao empreendedorismo quando consideramos a questão de gênero: compreender vieses inconscientes; reconhecer a interseccionalidade; conectar mulheres aos investidores e atrair e reter mulheres em programas de apoio ao empreendedorismo. A partir dos desafios identificados, começa a busca por construir soluções.
O objetivo do projeto AGEI é justamente reunir atores relevantes do setor para ajudar a superar essas barreiras institucionais de exclusão que você menciona, por meio da construção de soluções para mudanças sistêmicas.
Faremos um processo de entrevistas com atores relevantes em julho e realizaremos uma série de encontros virtuais com um grupo específico de organizações, com orientação do MIT D-Lab, para a elaboração de soluções para o ecossistema de empreendedorismo se tornar menos desigual.
Além disso, a ANDE fará um evento internacional, fruto da parceria entre os escritórios da ANDE no Brasil, Índia e África do Sul, no dia 19 agosto. Serão apresentados casos de apoio ao empreendedorismo de organizações que conseguiram aplicar lentes de gênero em suas estratégias internas e externas. O objetivo é compartilhar como essas organizações fizeram para construir melhorias no combate às desigualdades de gênero e provocar a reflexão nos participantes sobre em qual estágio suas organizações estão dentro da escala de gênero da Organização Mundial da Saúde e que passos podem dar.

AUPA – Dentro dos obstáculos no empreendedorismo, há ainda a questão socioeconômica. Como o ecossistema de impacto poderia contribuir melhor para que as mulheres empreendedoras da base da pirâmide socioeconômica possam ser protagonistas e agentes que promovam mudanças estruturais – e não sejam apenas beneficiárias? 
Cecília Zanotti – Uma forma de fazer isso é garantir espaços de participação. Considerar, nos processos de elaboração de programas, a escuta e a participação ativa de lideranças de mulheres com esse perfil. E, quando falamos de mulheres da base da pirâmide socioeconômica no Brasil, estamos necessariamente falando de raça. Portanto, considerar mulheres negras nos processos é fundamental. Sermos pró-ativos no processo de identificação e convite à participação, garantindo que possam estar presentes. Contratar consultoras mulheres e negras, assim como colaboradoras mulheres e negras.
O ambiente virtual pode inclusive facilitar essa participação, como ouvimos da Jiselle Steele, da Social Starters, palestrante do webinar da ANDE sobre o estudo. Ela relatou uma maior participação das mulheres periféricas no programa depois que mudaram para o ambiente virtual, já que não exigia mais transporte, alimentação e menos tempo de dedicação do que o formato presencial. 
Outra forma de fazer isso é estabelecer parcerias para o desenvolvimento de programas. Ou seja, as lideranças e organizações representativas desse perfil podem ser executoras de programas junto com outras organizações, e não apenas beneficiárias. Um exemplo bem-sucedido de uma parceria como essa é a criação da ANIP, Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia, uma parceria entre Artemisia, A Banca e FGVcenn (Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV). As organizações que atuam nas periferias, fundadas ou geridas por lideranças das periferias, têm conhecimento e experiências muito grandes em articulação, mobilização, além de utilizarem canais e formas de comunicação que conectam com as empreendedoras e os empreendedores das periferias.

Nosso setor de impacto, que ainda é muito excludente, não faz na medida necessária. Precisamos fazer mais.

AUPA – Sobre as barreiras estruturais destacadas no estudo da ANDE: como os territórios podem contribuir e também dificultar ainda mais o desenvolvimento deste ecossistema empreendedor feminino, pensando no recorte brasileiro e suas muitas desigualdades?
Cecília Zanotti – O Brasil ocupa a sétima posição mundial no ranking de desigualdade de renda elaborado pelo PNUD (Relatório de Desenvolvimento Humano 2019 com dados de 2017). Essa é uma grande questão para ser levada em conta.
Empreender sendo mulher, negra e tendo nascido na periferia de uma grande cidade, sem dinheiro para transporte ou em um bairro de classe A ou B, podendo ter aprendido inglês em escola particular ou no intercâmbio, são realidades completamente diferentes.
Pensar o território é pensar em transporte, alimentação, apoio às mulheres que são responsáveis pelos cuidados dos filhos ou dos idosos da família, infraestrutura, acesso à internet e mais todas as questões sociais que influenciam a rotina das mulheres nessas localidades.

Pensar em soluções levando em conta o território diz respeito a formular programas de apoio ao empreendedorismo que possam ir até os bairros periféricos, além da construção de centros de empreendedorismo nessas localidades, do ensino de inglês gratuito ou a um custo acessível, já que o universo do empreendedorismo é cheio de termos nesta língua.

Pensando em quem nasceu e vive em um bairro de classe A ou B e quer apoiar o empreendedorismo, entendo que vale uma ação individual de apoiar e investir em iniciativas, empresas, organizações fundadas ou lideradas por mulheres. Para quem é branco, como eu, estudar e aprender como combater o machismo e o racismo. Há muitas fontes de recursos sobre isso disponíveis: livros, filmes, vídeos no YouTube. Seguir influenciadoras negras nas redes sociais. Aprender sobre a luta antirracista, a branquitude, o colorismo, a interseccionalidade, eleger mulheres brancas e negras que apoiam o empreendedorismo feminino, a igualdade de salários entre homens e mulheres.
No nível das empresas e organizações, fazer a avaliação dos perfis dos colaboradores e compará-los com os dados da nossa população. Se houver muita disparidade de representação, repensar processos internos, oferecer treinamentos sobre vieses inconscientes, garantir representatividade nos cargos de liderança e conselhos, aplicar as lentes de gênero ao planejar os programas e ao pensar a estratégia e as metas da organização.
No nível do ecossistema, apoiar organizações que estão pautando essas temáticas, participar de discussões e construções coletivas que visam transformar a situação atual, unindo os setores privado e público e a sociedade civil. Como a ANDE, a ONU Mulheres, o Movimento Mulher 360, Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e a Rede Mulher Empreendedora, por exemplo.

AUPA – No ecossistema de impacto, muitos acreditam que o futuro de seu desenvolvimento virá dos investimentos antes colocados no mercado de ações. Na pesquisa, vocês mencionam a importância de mais mulheres se tornarem investidoras. Como, então, atraí-las aos investimentos de impacto e aos negócios liderados por outras mulheres?
Cecília Zanotti – Criar programas pró-ativamente focados em atrair negócios de impacto liderados por mulheres e oferecer apoio financeiro e não-financeiro. O We Impact é um exemplo bacana.
Convidar mulheres investidoras ou grupos de mulheres investidoras a participarem do programa, assim como melhorar a comunicação sobre negócios de impacto liderados por mulheres, para que possam ser vistas e conhecidas pelas mulheres investidoras. Gerar mais conhecimento, como o estudo da ANDE, e programas para acabar com essa lacuna, como a ANDE está fazendo com o AWEF, Fundo Avançado para o Empoderamento das Mulheres (Advancing Women Empowerment Fund), que selecionou e está financiando oito propostas para resolver a falta de financiamento para as Pequenas Empresas em Crescimento lideradas por mulheres no Sul e Sudeste da Ásia. Serão até US$1,2 milhões em financiamento total ao longo de dois anos. Cada vencedor recebeu até US$150.000 em um ano para testar modelos que catalisam investimentos em Pequenas Empresas em Crescimento lideradas por mulheres por meio de abordagens inovadoras. Os vencedores podem ser encontrados aqui.
Além disso, é preciso continuar oferecendo treinamento sobre vieses inconscientes para investidores, incluindo mulheres. Um exemplo de presença de mulheres investidoras é a plataforma de empréstimo coletivo da Sitawi, onde cerca de 40% dos investidores são mulheres. [Saiba mais sobre a Plataforma de Empréstimos Coletivos da Sitawi aqui.]

AUPA – O estudo destaca o papel dos intermediários para as questões acerca de acesso ao crédito e aos investimentos. O quanto vocês entendem que os intermediários podem melhorar em suas ações para que esta ponte possa ser ainda mais efetiva?
Cecília Zanotti – O estudo cita que, de acordo com a IFC [International Finance Corporation], a diferença de financiamento para mulheres no setor de Pequenas Empresas em Crescimento nos países emergentes é estimada em US$320 bilhões. Há necessidade de diferentes produtos financeiros, especialmente focados em empresas que não sejam do perfil Vale do Silício ou Wall Street, com tamanhos mais adequados ou condições de pagamento mais flexíveis. Oferecer empréstimos entre US$5.000 e US$50.000 é particularmente importante, pois, muitos investidores tradicionais e de impacto consideram muito pequeno para garantir os custos de transação envolvidos ou deveras arriscado para os retornos. Criar soluções para esse desafio, usar alternativas de financiamento combinadas, soluções de blended finance, focadas no financiamento para mulheres empreendedoras, pode ser um caminho, pois os investidores tradicionais podem ser atraídos e a filantropia pode reduzir os riscos do investimento. 

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