O ecossistema de impacto adotou Pinheiros. Por aqui estão coworkings, aceleradoras, gestores de fundos e negócios de impacto. Morar aqui é um privilégio, o qual eu também usufruo. Aqui, serviços públicos funcionam, há ciclovias e ruas são recapeadas com frequência, como a rua Artur de Azevedo, via que cruza o bairro e liga o nobre Jardins ao Largo da Batata, margeando colégios tradicionais, como a Escola Estadual Fernão Dias Paes, na avenida Pedroso de Moraes, entre outras ruas, como a Mourato Coelho.

A última parte é plana e ideal para caminhar, especialmente à noite, quando muitas ruas estão desertas. Vazias de moradores, mas não necessariamente de trabalhadores. Juntam-se aos que recapearam o asfalto na madrugada, uma legião de entregadores à espreita de pedidos de restaurantes. Em uma noite qualquer de caminhada, presenciei algo inusitado e pouco visível para quem mora ou trabalha no bairro.

Atravessei a avenida Rebouças e lá me deparei com uma grande quantidade de entregadores em frente a uma igreja. A movimentação me causou espanto, pois, não era um restaurante, mas, sim, a porta de um templo. Me aproximei e vi também  moradores em situação de rua, todos retirando seu prato de comida. Entregadores (e não eram poucos) retiravam também marmitas ao lado dos que vivem nas ruas e que recebem doações em tempos de pandemia.

Doar também fez parte da rotina de grandes empresas durante a quarentena. O vírus fez o nível de doações explodir e isso é ótimo. Difícil criticar quem doa, seja uma igreja, uma empresa ou um banco. Cerca de R$5,4 bilhões foram arrecadados por inúmeras frentes em combate à Covid-19 e seguramente devem ter financiando uma rede de solidariedade da periferia ou ainda suprimentos médicos para os hospitais.

Como mencionei, é impossível criticar doações, mas é fácil desnudar intenções.

Em edição recente, a revista Forbes publicou uma lista com as 100 maiores empresas doadoras na pandemia. Entre elas está a XP, do fundador Guilherme Benchimol, o mais novo integrante dos 20 brasileiros mais ricos do mundo. A XP criou seu próprio programa de doações para ajudar na pandemia, com aporte de R$25 milhões, além de lançar um fundo de sustentabilidade inédito no país. O fundador disse em coletiva que o “Pico da Covid-19 nas classes altas já passou” e tem cerca de US$3 bilhões na conta. Qual notícia ou cifra lhe interessa mais?

Na verdadeira Pinheiros que vivo, há entregadores de comida sem direitos e sem janta e trabalhadores recapeando ruas enquanto deveriam estar em casa se protegendo do vírus. É repleta de ruas com nomes homenageando assassinos de índios e negros e cheia de desigualdades que permeiam nossa cidade.

Está tudo aí para todos verem, mas poucos enxergam e preferem venerar quem tem mais para mostrar quem doa mais.

Nem esses recursos e nem a boa vontade irão tampar a falta de políticas públicas para benefício de todos. Espero que os que adotaram Pinheiros e querem de fato impactar se protejam contra a vacina de mentiras sinceras e não genuínas. De boas intenções o mundo está cheio, basta escolher com qual verdade queremos ficar. Eu fico com a dos padres.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião de Aupa.

Deixe um comentário

Digite seu comentário
Digite seu nome