Mundialmente, todo ano, em 1° de dezembro, se comemora o Dia Mundial de Luta contra à AIDS. O intuito da data é reforçar o debate sobre o tema, solidarizar com as pessoas que vivem com HIV e lembrar daqueles que partiram durante a jornada.

Ainda há muitos estigmas relacionados ao vírus, sejam eles por desconhecimento, estereótipos ou desinformação. Por isso, é fundamental abordar o tema em diferentes frentes. Sob a ótica do ecossistema, as mobilizações do Investimento Social Privado (ISP) na agenda – de diversidade – ainda são poucas. Iniciativas existem em centenas, porém os recursos, tanto privados quanto públicos, não chegam até a outra ponta. Tornando, assim, importante e urgente a sensibilização com o tema.

No player abaixo, o psicólogo Eduardo Oliveira explica sobre como se referir a pessoas com HIV e também como ressignificar os termos:

HIV x AIDS: quem é quem? 
HIV é uma sigla para vírus da imunodeficiência humana e sua principal forma de contágio é a via sexual. Ao contrário de outros vírus, como a gripe, o corpo humano não consegue “se livrar” do HIV. Então, uma vez contraído o vírus, você viverá com ele para sempre.

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) é o avanço dessa infecção pelo HIV, surge quando a pessoa – devido à baixa imunidade corporal, ocasionada pelo vírus – apresenta infecções oportunistas, como tuberculose ou pneumonia.

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Crédito: Equipe de Arte Aupa
Jonas Guerra, Designer. Crédito: Arquivo Pessoal
Jonas Guerra, Designer. Crédito: Arquivo Pessoal

Vivendo com HIV
Jonas Guerra nasceu em Manhuaçu, um município de 90 mil habitantes no estado de Minas Gerais. Em 2011, quando tinha 21 anos, deixou a pequena cidade para seguir o sonho de estudar a mais de 1.000 quilômetros distante de casa, em Curitiba. Lá, ele cursou Design na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Em um dos momentos mais importantes da vida, em que realizava o sonho de estudar fora do país pelo programa Ciências Sem Fronteiras, em 2015, o jovem designer descobriu que tinha HIV.

“Um mês depois que estava na Finlândia, apresentei alguns sintomas, como mancha na pele, garganta machucada. E realizei os exames lá. Estava com sífilis na segunda fase, fiz o tratamento e na semana seguinte saiu o resultado do HIV”, conta Jonas. 

Após a descoberta, vários exames foram necessários. Inicialmente, ele foi informado que o sistema de saúde finlandês cobriria os custos desses exames, porém, após realizá-los, o sistema disse que não iria cobrir os gastos. A conta ficou em R$12.000,00. 

A partir daí, Jonas travou uma extensa batalha para tentar o tratamento de HIV na Finlândia e terminar o semestre da bolsa do Ciências Sem Fronteiras. 

“O seguro saúde disse que não iria cobrir nada, pois era HIV. Iniciamos o diálogo com a embaixada brasileira para trazer o remédio brasileiro para lá, mas eles disseram que não tinha como. Entrei em contato com o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], e o órgão disse também que não conseguiria ajudar”, explica o jovem. 

Uma alternativa encontrada pelo designer foi solicitar um retorno temporário, na tentativa de conseguir o tratamento no Brasil e, depois, voltar ao intercâmbio. Após receber dois e-mails do CNPq confirmando que o retorno estava aprovado, uma terceira mensagem informava que o intercâmbio estava cancelado. 

“Tentei dialogar com todos os órgãos. Por fim, falaram que eu podia voltar, mas o médico precisava me dar um laudo e eu precisava pagar todos os custos do seguro. Mandei o laudo para o CNPq e a resposta que tive foi: ‘Prezado, não entendi sua solicitação’. Procurei apoio da Defensoria Pública de Manhuaçu, na  Justiça Federal e também no Núcleo de Práticas Jurídicas de uma faculdade, e ninguém me deu uma saída”, desabafa.

Todos esses entraves e a desorganização por parte de diferentes órgãos fizeram com que o então estudante não concluísse o intercâmbio. Além disso, o deixou com  uma dívida de mais de R$20.000,00, somando a devolução da bolsa, seguro saúde e hospital. Atualmente, o processo corre na justiça e Jonas solicitou o perdão da dívida.

“As pessoas que estavam lidando com o processo não tinham qualificação e nem buscaram entender o que estava acontecendo. Foi uma decisão precipitada e não foi profissional. Deveriam consultar alguém da área de Saúde”, afirma.

Apesar de todos esses desafios, Jonas relata que o apoio de pessoas próximas e a personalidade mais expansiva ajudaram nesse período. Eu sou da área criativa, tenho um olhar mais leve da vida. Conclui o semestre lá e voltei ao Brasil, fui recepcionado pelos meus amigos e minha família.”

Amante de jogos, ele afirma que o videogame e os jogos de tabuleiros colaboraram para tirar o foco dos efeitos colaterais do tratamento. O budismo foi outro apoio que o jovem encontrou. “Com a prática do budismo, os próprios budistas pediram para eu relatar a questão de superação. Entre maio e junho de 2017, assumi publicamente o meu status de HIV. Amigos e pessoas vêm até a mim pedindo para tirar dúvida”, conta.

Jonas é indetectável para HIV. Isso significa que, nos exames, a amostra do vírus é tão pequena, que não é possível detectar.

Nesta nota explicativa da UNAIDS, a instituição cita três estudos que afirmam que uma pessoa com carga viral indetectável há pelo menos 6 meses não transmite para outras pessoas em relações sexuais.

Mesmo assim, o jovem já enfrentou desafios com relacionamentos e também vivenciou preconceitos. “Já sofri preconceito sim, como ataques verbais. Falaram que saí contaminando os outros por aí, recebi mensagens anônimas, mas esses xingamentos diminuíram bastante”, completa. 

O acolhimento e a quebra de estigmas relacionados ao HIV é algo importante para a jornada de uma pessoa que testa positivo. O psicólogo Eduardo Oliveira, além de trabalhar com prevenção combinada no projeto PrEP 15-19, também presta atendimento psicológico para pessoas com HIV.

“Muita vezes, o estigma de uma pessoa com HIV está ainda associado a uma ideia dos anos 1980, uma culpa que essa pessoa tem que carregar, um castigo. Junto dessas pessoas, há a ansiedade e a tristeza profundas em virtude do estigma da discriminação”, comenta o psicólogo. 

Em São Paulo, 80,7% das pessoas que vivem com HIV entrevistadas para o Índice de Estigma relatam dificuldade para contar às pessoas sobre o diagnóstico, segundo pesquisa organizada pela UNAIDS (Joint United Nations Program on HIV/AIDS) e outras organizações.

Eduardo Oliveira  trabalhou no atendimento de prevenção e orientação no projeto PrEP 15-19. Crédito: Arquivo pessoal.
Eduardo Oliveira trabalhou no atendimento de prevenção e orientação no projeto PrEP 15-19. Crédito: Arquivo pessoal.
Crédito: Equipe de Arte Aupa

Outro ponto de reflexão é sobre a discriminação de pessoas com HIV estar ancorada a outros preconceitos. “Seja uma discriminação quanto à orientação sexual, à identidade de gênero ou até mesmo quando falamos de cor da pele. Acho que o estigma do HIV acaba dialogando com outros estigmas sociais, que tendem a deixar a pessoa ainda mais em situação de vulnerabilidade”, afirma Eduardo.

Para o psicólogo, é fundamental que o diálogo sobre HIV aconteça em vários espaços, para além do serviço de saúde. “Não temos educação sexual nas escolas, as pessoas crescem com medo do HIV justamente porque elas não têm acesso ao que é o HIV e  quais os tipos de prevenção que há. Ainda estamos em uma sociedade que costuma associar a prevenção à camisinha, quando, hoje em dia, já falamos em prevenção combinada, PEP (profilaxia pós-exposição), PrEP (profilaxia pré-exposição), testagens, outros aspectos”, explica.

Prevenção e tratamento
Atualmente, há diversas estratégias de prevenção e tratamento para o HIV. É a chamada prevenção combinada, que traz diversas possibilidades para evitar a infecção. 

Além do conhecido preservativo (masculino e feminino) e uso do gel lubrificante, a profilaxia pré-exposição, conhecida como PrEP, é ofertada pelo SUS. Ela consiste no uso diário de medicamentos antirretrovirais antes de uma exposição de risco ao HIV. 

“A pessoa pode tomar a PrEP por um, dois anos. Depois deste período, se ela não quiser mais, interrompe – afinal, a vida das pessoas não é linear a todo momento. Essas escolhas são feitas a partir da informação que o paciente tem sobre prevenção e do contexto de vida dele”, afirma Adriano Silva,  coordenador de prevenção da Coordenadoria de IST/Aids da cidade de São Paulo.

Outra forma de prevenção é a testagem para HIV, sífilis e hepatites virais B e C, além do diagnóstico e o tratamento das infecções sexualmente transmissíveis (IST), já que elas podem ser a porta de entrada para o HIV.

Para os casos de pessoas que foram expostas a uma relação sexual sem proteção ou que houve falha do preservativo, também é possível utilizar a PEP (profilaxia pós-exposição), que consiste em uma medicação antirretroviral ingerida até 72 horas após a exposição e por 28 dias seguidos. Essa opção pode ser escolhida por qualquer pessoa que se sinta em situação de vulnerabilidade para a infecção.

Mas e quando a pessoa testa positivo para HIV? Atualmente, há  medicamentos antirretrovirais (ARV) disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) para pessoas vivendo com HIV, sendo fundamentais para a qualidade de vida do paciente.

Segundo o coordenador de prevenção da Coordenadoria de IST/Aids, Adriano Silva, em 2020, na cidade de São Paulo, a média para iniciar o tratamento com os antirretrovirais após a descoberta do HIV é de 20 dias. Em 2016, o tempo médio era de 180 dias. 

“O tratamento precoce traz duas vantagens. Uma primária: quanto mais cedo a pessoa se trata, mais ela preserva a própria saúde. E uma secundária: a pessoa fica indetectável e não transmite o vírus, então quebra a cadeia de transmissão”, pontua Adriano. 

Todas essas alternativas podem ser encontradas na rede pública de saúde, de graça para a população. A cidade de São Paulo, por exemplo, tem 26 serviços municipais especializados em ISTs/Aids, que abrangem nove Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) e 17 Serviços de Atenção Especializada (SAEs). Confira os endereços aqui.

Ação de testagem. Crédito: Coordenadoria de IST Aids.

O trabalho dentro do ecossistema
Desde 1993, a Gestos vem trabalhando na garantia dos Direitos Humanos das pessoas que vivem com HIV e AIDS no Brasil. Um de seus trabalhos é no Recife (PE), onde está a sede da organização, que oferece gratuitamente serviços sociais, psicológicos e jurídicos.

Outra frente é a da formação política, chamada de “GTs em Ativismo”. O objetivo desses grupos de trabalho é fortalecer a incidência política na promoção de novas Políticas Públicas e específicas da agenda. Participam desses grupos mulheres, travestis, homossexuais masculinos e jovens (12 a 29 anos).

Alessandra Nilo, co-fundadora e coordenadora geral da Gestos. Credito: Arquivo pessoal.
Alessandra Nilo, co-fundadora e coordenadora geral da Gestos. Credito: Arquivo pessoal.

Alessandra Nilo, co-fundadora e coordenadora geral da Gestos, explica que essa atuação “expandida” é intencional: “Enxergamos que não é possível tratar o HIV e a AIDS apenas do ponto de vista da saúde. É preciso trazer os aspectos dos Direitos Humanos e a questão do desenvolvimento sustentável também”. Ela ainda completa que “A Gestos acredita que, sem um mundo sustentável, mais justo e equitativo, não será possível responder a esses números (do HIV/AIDS)”.

Entre os desafios atuais do tema, Alessandra cita o preconceito e a discriminação: “Ao observar o perfil das pessoas mais atingidas pelo HIV/AIDS – jovens, LGBTQ, mulheres, população negra – vemos uma parcela da população que historicamente vem sendo deixada para atrás pelas políticas públicas no Brasil”.

Outro desafio, segundo ela, é a sustentabilidade das organizações: “Nos últimos anos, o fato do Brasil se tornar um país de renda média (renda per capita anual entre entre R$17.400,00 e R$53.800,00, segundo o Banco Mundial) fez com que muitas agências de cooperação internacional saíssem do país. Elas foram incentivadas por um discurso de que existia uma política para AIDS muito consistente e consolidada”. Alessandra completa: “Porém, essa política não dá conta de cuidar das necessidades das pessoas e as desigualdades tornam essa questão ainda mais complicada, inclusive no Nordeste”, ela conta.

O trabalho de assessoria jurídica da Gestos, de 1995 até hoje, beneficiou diretamente mais de 3 mil pessoas. Em 2019, 141 pessoas foram atendidas, entre elas, 60 que tiveram seu primeiro atendimento. “Muitas pessoas chegam na Gestos, como indivíduos pobres e que estão sendo deixados para trás, sem ter nenhuma ciência dos seus direitos. Então, quando elas chegam na instituição e são atendidas na hora marcada por profissionais com um nível de acolhimento forte, amoroso e que gera confiança, elas ficam nos agradecendo, de uma forma, como se não tivessem direito aquilo. Mas todos têm o direito de ser bem atendido”, explica Alessandra.

Alessandra ressalta que “As Organizações da Sociedade Civil (OSC) são essenciais e fundamentais para o Brasil”, citando o contexto da Covid-19 onde essa percepção ficou mais evidente. “Mesmo o Governo Federal dizendo que não é sua responsabilidade cuidar das pessoas. Foram as OSCs que conseguiram – de alguma maneira – aliviar e continuam aliviando no momento em que as Políticas Públicas falham ou não possuem qualidade e capacidade de ajudar”, afirma ela, que completa: “O papel delas (OSCs) é fundamental, inclusive, na estrutura democrática e na promoção de direitos. Infelizmente, não temos um Estado que se preocupe em disseminar direitos na sociedade. Quem faz e vêm fazendo isso há anos são as OSCs”.

Ao citar o decreto federal de 2019, que oficializou a extinção de conselhos e comissões nacionais onde a sociedade civil participava, Alessandra alerta para necessidade de retomar a política de participação social no país. “O Estado brasileiro precisa reconhecer e respeitar o trabalho importante dessas organizações”, diz Alessandra, que enxerga o decreto como uma tentativa do Governo liderado por Jair Bolsonaro (sem partido) em acabar com o direito constitucional.

“Além da falta de cuidado e estímulo, o Governo Federal vem realizando um trabalho consistente para tentar criminalizar as OSCs e não proteger os defensores e as defensoras dos Direitos Humanos no Brasil. Um trabalho sistêmico para devastar essa política social”,

 salienta Alessandra.

Laiza Lopes

Laiza Lopes

Laiza Lopes é jornalista formada pela Universidade Metodista de São Paulo e especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela UFABC. Com mais de sete anos de carreira, já atuou em agências de comunicação e consultoria de responsabilidade social, além de escrever para sites com foco em causas sociais e periféricas.

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Leonardo Nunes

Leonardo Nunes

Leonardo Nunes é morador do distrito de Campo Limpo e jornalista formado pela FIAM-FIAM. Trabalhou com comunicação na AsBoasNovas.com, Embarque no Direito/Historiorama, Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), Malhação (Rede Globo), Prefeitura de São Paulo e SPTrans. Apaixonado por narrativas e histórias de vida, escreveu seu primeiro livro e já teve seu próprio projeto social.

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